Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 7
VI - A Crueldade




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VI

A Crueldade


— Estou com fome. E com sono — disse a Menina Sem Nome. Já haviam caminhado por aquele deserto por tanto tempo que sua mente estava entorpecida. Haviam parado para dormir umas cinco vezes, e isso só antes do anoitecer. Estava tão desidratada e faminta que talvez desmaiasse se caminhasse os próximos cinco metros sem engolir alguma coisa além de saliva grossa.

Annik suspirou. Ela fazia poucas coisas além de andar, parar, olhar e suspirar. Suspirar, na verdade, era bem menos frequente que as outras três ações. Era um suspiro de cansaço, o que era muito estranho. A Menina, desde que começaram aquela caminhada sem fim, não se lembrava de ter visto-a dormir.

— Eu vou procurar algo para você — além disso, ela era extremamente formal. Nada de “pra”, apenas “para”. Nenhum pronome oblíquo no início de frase. — Fique aqui e não saia enquanto eu voltar, entendido?

— Ahm, tudo bem. Eu acho.

— Ótimo.

Acatar ordens dela não era difícil. A voz dela soava bem convincente e tranquila. Mas caso você tivesse alguma dificuldade, a visão do taco de baseball sujo de sangue seco já tornava aquilo bastante simples.

A Menina se sentou na areia enquanto via Annik desaparecer atrás de uma duna, uma onda de areia.

Realmente, o deserto parecia um mar bravio, cheio de ondas, no caso, as dunas. Annik, quando lhe explicou mais sobre aquela língua esquisita que ela falava, falou um pouco sobre o Deserto e o Mundo. Chamavam aquele lugar de Mar de Areia, ou, na língua estranha, Bior Das Sand. Havia uma única palavra que resumia aquilo, caso três palavras fossem muita coisa: Sanduur. A Menina fez questão de decorá-las, mas não teve e provavelmente nem teria coragem de pronunciá-las depois da primeira explicação.

O tempo parecia nunca passar naquele lugar. Parecia estagnado. Annik desaparecera havia… não sabia quanto tempo. A Menina usava um relógio no pulso esquerdo, mas não sabia como medir o tempo nele, nem mesmo sabia como se media o tempo ali. Os ponteiros já haviam viajado de norte a sul, leste a oeste no visor transparente, mas nada acontecia. O sol não nascia e nem Annik voltava com a comida.

Então ela apenas esperou.

Sentou e ficou pensando em Annik, a princípio, a única coisa que tinha a pensar. Era a única pessoa que conhecia.

Depois, ficou repetindo mentalmente todas as palavras da língua estranha que ouvira e imaginou o que algumas, cujo significado não sabia, poderiam significar.

Cansou-se de ficar sentada e deitou-se.

Olhou as estrelas (e como o céu noturno do deserto era bonito!).

Dormiu.

Acordou com o vento frio.

Nada aconteceu, então dormiu de novo, tentando ignorar a brisa gélida.

Acordou de novo.

Seu ponteiro pequeno, que antes estava no doze, já estava no três, mas o ponteiro maior não mexia. O relógio tinha parado. Nem mesmo olhar para os ponteiros se mexendo ou ouvir o tic-tac deles serviria como distração.


Ouviu um tiro.

Aquilo a fez pular. Os olhos, meio sonolentos, se assustaram com o estampido. Tentou localizar de onde o barulho veio, e parecia ter vindo após a duna que Annik mergulhara.

Ela se levantou. Contrariou a ordem de Annik, mas… bem, ela que a perdoasse, mas aquilo era necessário. E se alguém tivesse a visto? E atirado nela? Ela não conhecia Annik muito bem, mas a Menina deveria ficar preocupada, não é mesmo? Ela tinha sido… solícita para com ela. Talvez perto de bondosa, mas ainda não chegara a tanto. É verdade que, sempre que a Menina perguntara, ela respondia. Sempre que pedia, ela cedia. Porém, aquilo não significava bondade. Apenas disposição para fazer o que pedido ou responder o que perguntado.

Quando a Menina se aproximou da base da duna que Annik escalara, dois corpos engalfinhados desceram rolando a onda de areia, quase atropelando a pobre Menina, que não entendia nada daquilo.

Ela não reconheceu os dois seres a princípio. Quando ambos chegaram a um ponto plano, onde não rolariam mais, a Menina pôde notar que um dos corpos estava sobre o outro, segurando o colarinho daquele que estava sob o primeiro, esmurrando-lhe a cara.

E na luz das galáxias, estrelas, quasares, luas e outros corpos celestes distantes (ou nem tanto), a Menina pôde ver que o corpo vencedor era, na verdade, o de Annik, que socava o primeiro na face repetidamente.

Ela pensou em correr para apartar a briga, mas… não. Não. Medo. O taco de baseball sempre a fazia pensar duas vezes. E agora sabia por quê. Era aquilo que acontecia àqueles que discordavam dela?! Não tinha certeza, mas tinha medo daquilo ser a verdade.

Annik se levantou do corpo. O rosto já estava bastante inchado e cheio de hematomas. Havia um corte no supercílio. A briga iria acabar ali, pelo visto.


Pensando bem, melhor não.


Ela, impassível, tirou o taco das costas devagar. Aquilo nem mesmo serviu de tortura psicológica, porque os olhos do homem estavam tão inchados que devem ter visto apenas vislumbres do que aconteceu.

A Menina soube que aquele era o momento em que deveria correr e impedi-la de cometer aquela atrocidade desumana, mas o taco de baseball… Argh, maldito taco de baseball. Parecia servir como uma chantagem. Não faça isso e eu não te bato. Faça isso e eu te espanco até a morte. E então ela presenciou um ato tão… nojento… nauseante… desprezível. Um lado daquela mulher que ela realmente jamais imaginaria que sequer existia. Nem mesmo passou pela cabeça o fato de que ela teria covardia suficiente para fazer aquilo.

Primeiro, começou com uma paulada na cabeça. Bem forte. TAC! O barulho fez a Menina pular onde ela estava e finalmente tomar sua primeira ação contra aquela desumanidade.

— Annik, PARA!! — ela gritou, já assustada. Assustada com o que poderia vir, na verdade. Aquilo ali havia sido só um aquecimento. Seus olhos já estavam marejados de medo e pânico, o corpo trêmulo, olhos arregalados, respiração rápida, boca entreaberta. Mas ela não ousaria sair do lugar para caso de ter o mesmo destino.

Annik também não moveu um músculo, a não ser para desferir o segundo golpe, que seria mais forte. Outra paulada, também no rosto. E o nariz do homem se partiu, explodindo em sangue. Para Annik, o cheiro de sangue já começava a se misturar com o de suor.

O homem ainda estava consciente. Não sabia como, porque inúmeros golpes na cabeça e depois duas pauladas já eram o suficiente para qualquer um desfalecer, se não morresse na primeira pancada com o taco.

No terceiro golpe, saiu mais sangue. Mais cortes no rosto. O barulho da madeira contra carne e ossos era doloroso até para um espectador. Um barulho tão violento que qualquer um poderia sentir a dor na pele. Podia ouvir ossos se partindo, caso fosse atento. E a Menina era bastante atenta a sons e pôde ouvir, no segundo golpe, quando o nariz se partiu, e agora, outra parte do crânio se rachando.

Se Annik continuasse batendo nele com a mesma força que fazia, talvez até quebrasse o pescoço dele. Isso se ele não morresse por traumatismo craniano depois do terceiro golpe.

Os golpes de taco pararam por aí, tanto que ela até o largou com descaso na areia. Entretanto, aquilo não queria dizer que a violência havia parado.

Annik aproximou-se e pisou na cara do sujeito. A Menina, antevendo o que aconteceria, fechou os olhos bem forte, escondendo o rosto e as lágrimas de medo e pena com as mãos. Annik pisou repetidas vezes. O barulho de sua bota batendo contra a carne. Um barulho meio abafado por causa da pele, mas no fundo havia um sonzinho da bota alcançando o osso.

Annik bateu tantas vezes no rosto do homem que, em seu nariz, havia uma fratura exposta. A Menina, quando tirou as mãos do rosto vermelho, viu o nariz numa posição tão estranha que ela quis simplesmente vomitar. Havia um corte feio, muito feio, que deixava à mostra as cartilagens do nariz. O corte do supercílio havia aumentado de tamanho e escancarado de um jeito tão asqueroso que pôde ver os músculos na fissura que se abrira. Se Annik continuasse pisando nele daquela forma, também iria virar uma fratura exposta como foi com o nariz.

O homem já estava definitivamente morto, mas Annik prosseguia com sua… sede por violência, tripas e sangue (ainda não havia tripas e a Menina esperava que não houvesse, de fato).

Ela olhou para o chão e viu o taco, molhado de vermelho. Ele não estava nas mãos dela. Então seu medo de agir diminuiu bastante. E, olha que bom, ela não estava usando as mãos daquela vez. As chances de ela levar uma surra eram bem menores. Nada mal. Correu para Annik, segurou-a pelo braço e tentou empurrá-la dali, para que parasse com aquela crueldade – na verdade, aquilo era mais que cruel, mas não havia outra palavra melhor para definir.

Annik, então, finalmente deu por si e parou com aquele ato repugnante. Olhou para o lado e viu a Menina chorando, tentando impedi-la a esmo — porque já estava feito — de fazer aquilo. E sentiu-se mal por ela. No entanto, não se arrependera de ter matado. Era aquilo que se tornara, era aquilo que havia pagado para ser, e era aquilo que teria e seria.

— Por que fez… isso?! — a Menina chorava copiosamente, obviamente aterrorizada.

— Ele… ele tentou me matar… — a voz de Annik soava quase incólume. Quase, se não fosse por um leve, levíssimo, toque de surpresa por causa da reação da Menina.

— Você… Meu Deus… Isso não… — ela nem mesmo conseguia falar de tanto que chorava e pensava e revia as cenas que havia visto e que nunca esqueceria, para sua tormenta. – Você não deveria ter feito isso!

— Este não é o melhor momento para falarmos disto.

— Você ao menos entende o que você fez?

Annik assentiu com a cabeça. Ela o fez silenciosamente, olhando para o corpo. Para a destruição que havia causado. Ela estava apática. Surpresa. Talvez com remorso.

— Da. Sim. E eu não sinto nada em relação a isto.

Ela era uma psicopata. Um ser que era tudo menos humano. Um demônio. Uma aberração. Um monstro assassino. Nem todas as palavras que a Menina conhecia seriam suficientes para descrever aquela cena de pura crueldade. Annik era a pessoa solícita, sim, mas excluíra todas as possibilidades de ela carregar algum traço de bondade. Ela era solícita e cruel. Ela não conhecia outras pessoas, mas ninguém, ninguém, poderia cometer algo tão bárbaro quanto aquilo. Ou poderia…?

— Como você pôde…?

— Eu sei o que fiz – ela a interrompeu. – E eu não me arrependo. Porque eu paguei por isso. Um preço alto, e que no final não valeu à pena. Mas eu paguei e eu vou receber. E eu recebi isto. Tornar-me o que sou. Eu sempre achei que estava fazendo a escolha certa, mas eu sempre estava errada. Sempre. Esta foi uma de minhas escolhas. Eu me arrependo de tê-la feito agora. A escolha de me tornar… algo… sem alma. Sem coração.

Suspirou profundamente, e então continuou, explicando-se:

— Eu me arrependo de ter matado este homem desta forma… desumana. Não me arrependo de tê-lo matado, pois ele foi injusto e tentou me matar primeiramente. Está em minha natureza, em meu kra'vstan, ser uma assassina, porém, não desta forma repugnante. Mas… o ódio me consome. Coisas… que aconteceram no passado e que me afetam agora. E o descontrole me leva a cometer atrocidades como… esta. Ele merecia uma morte limpa e não a tortura a qual eu o submeti. Enfim, é melhor pararmos de falar sobre isso. Em outro momento distante, talvez. — Ela virou-se, parando de observar o corpo e fitando apenas a Menina. — Eu trouxe algo para comer — retirara de um dos bolsos de seu casaco cor de areia uma ave preta morta. — Não é muito, mas foi tudo o que achei.

— Bem, nesse caso… obrigada… eu acho. E… ahm… me desculpe por ter… você sabe, gritado com você sem ter entendido o que passou na sua cabeça…

— Aranek. De nada. E tudo bem. Você estava certa. Eu… eu perdi o controle. Eu só espero que isso não aconteça novamente. — Ela jogou o corvo para a Menina, que, sem esperar aquilo, o pegou com um misto de nojo e surpresa. — Vamos prosseguir viagem.

Havia sinceridade nas palavras de Annik. A menina conseguia ler, em cada sílaba que ela pronunciava, seu remorso. Ela não precisaria falar naquela língua estranha (kra'vstan, a Menina se corrigiu mentalmente) para que a Menina soubesse que ela falava a verdade. Não sabia por que, apenas sabia que sim. Sentia aquilo. Talvez alguns chamassem isso de confiança.

A Menina pôde detectar mais um sentimento nas palavras sussurradas de Annik, e não era o ódio que ela afirmara ter anteriormente.


Era tristeza.


E a Menina, então, sentiu .


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