Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 59
LII - As Palavras Não Têm Poder


Notas iniciais do capítulo

https://www.youtube.com/watch?v=kTqwzjzQo54
Beach House - Rough Song.



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LII

As Palavras Não Têm Poder


O galope do cavalo fazia um som hipnotizante em contato com a areia. Ao invés de fazer o usual som duro, casco contra rocha, fazia um som abafado, como se suas patas estivessem envolvidas em tecido. O movimento feito no ato de trotar era desagradável, no entanto, e o contato das pernas da Menina e de Annik contra a pelagem grossa de Dusk também. Era surpreendente o vigor do animal em conseguir cavalgar tão rápido carregando duas pessoas sobre si, a Menina na frente e Annik atrás.

A noite, para a Menina, não estava tão bonita quanto costumava ser antes de elas irem para a Tundra ou até mesmo tão bonita quanto a da Tundra. Estava mais escura que o usual, e Alice se sentia mais desprotegida, como se qualquer perigo fosse surgir das sombras das dunas e atacá-la.

— E então, para onde vocês vão, senhoras? — Dusk perguntou com um amargor na última palavra que Annik fez questão de ignorar. As vozes, mesmo quase sussurradas, pareciam sempre altas demais naquela noite silenciosa.

— Para Os Nômades — ela respondeu quase sussurrando, mas mesmo assim, a Menina sentiu como se seus tímpanos estivessem quase estourando de tão altas as vozes lhe soavam. — Vou guiar você até lá. Apesar de serem nômades, eles não se deslocam pelo deserto com uma frequência tão grande, então acho que sei onde estão.

— Vai finalmente responder ao chamado de Seth? — ele perguntou de modo maldoso, incitando-a a responder.

Seth. Mais uma vez aquele nome. Felizmente a Menina foi feliz em lembrar-se da primeira vez que o ouviu: foi quando matara pela primeira vez. Sendo uma ocasião difícil de se esquecer, não soube por que aquele evento ficou tão escondido em sua memória. Talvez pelo fato de tanta coisa ter acontecido naquele meio tempo. Começou com a invasão à Universidade; depois o primeiro ataque ao carro que ferira Alice; o segundo, que quase matara Annik e a ida à Tundra.

— Como você sabe que ele tem me procurado?

— A Rainha tudo ouve, tudo vê, tudo sabe.

— Hum. Eu já imaginava que seria ela. Não sabia que ela revelava pedaços dos seus planos para os outros. Ela não costumava ser assim. — Costumava? Aquilo indicava que Annik, além de saber da existência daquela tal Rainha, também a tinha conhecido. Aliás, havia alguém naquele mundo que Annik não tinha conhecido? Do jeito que ela falava das pessoas e das coisas do Mundo, às vezes dava a entender que ela era quase uma anciã. Vivera momentos históricos, conhecera as personalidades mais importantes e inclusive era uma delas. Se o povo do Mundo contasse o tempo, talvez Annik fosse considerada uma mulher muito velha.

— Ah, ela não revela seus planos para qualquer um. Mas eu nunca fui qualquer um para ela. Ela se sentiu no dever de revelar algumas coisas a mim, assim como revela algumas coisas ao seu conselheiro. Mas há detalhes que apenas ela sabe e apenas ela saberá. Talvez ela até mesmo saiba que você esteja viva, aliás.

— Como se isso fosse fazer alguma diferença. Independente de eu estar viva ou morta, não imagino que ela vá querer me ver novamente. — “Ver novamente”. Aquilo era a prova de que Annik e aquela mulher já tinham se esbarrado em algum momento. Quando, porém, já era bem mais difícil de se calcular.

— Nunca julgue a Rainha. Ela é uma mulher cujas intenções são difíceis de serem observadas a olho nu. A propósito, qual a sua intenção em ir aos Nômades?

— Eles podem me ajudar a chegar aonde quero chegar. Ao Fim. Eles têm uma relação muito... Como explicar? — Ela pôs a mão no queixo, pensativa. — Uma relação diferente com o Deserto, e acredito que isso pode me ajudar.

— Que tipo de relação?

— Os Nômades dificilmente se comunicam através de palavras. Sua comunicação se deve, na maior parte, através de gestos e expressões faciais. Para nós, que acreditamos que as palavras exercem uma influência enorme sobre nossas vidas e sobre o Mundo como um todo, ver o modo de vida dos Nômades ou até mesmo viver como um é algo completamente diferente. Por isso digo que eles têm uma visão completamente diferente. Para eles, as palavras não têm poder, mas os gestos têm. Palavras, para eles, são coisas mundanas.

— Sempre ouvi falar que eles eram um grupo isolado... Imagino que esse seja o porquê. Você parece saber muito sobre eles.

— Será que sua Rainha também sabe tanto quanto eu sei sobre eles? — Ela sorriu de modo maldoso. Não era normal ver Annik agindo daquela forma, mas a Menina a compreendia. Aquele cavalo, Dusk, era tão insuportável, principalmente quando falava daquela mulher (que a Menina nem conhecia e também já odiava), que Annik não via a hora de devolver na mesma moeda.

Dusk bufou em desagrado e continuou a cavalgar sem respondê-la. Mas a própria Annik quebrou o silêncio:

— Você tinha me dito que a Serpente tinha morrido na Tundra, não é mesmo?

— Sim, por quê?

— Eu a conheci. — Daquilo a Menina já sabia. Tinha visto fotos antigas de Annik na casa de Isaac, e foi uma surpresa encontrar uma cobra lá. — É uma pena. Eu gostava dela.

— Ela também gostava. Isso antes de reencontrar com Adam. Depois que ele lhe contou o que você fez a ele, ela passou a desprezá-la.

— Não a culpo. O que eu fiz foi algo realmente desprezível, e eu mesma me desprezo por ter feito aquilo.

— Então por que você o fez?

Annik umedeceu os lábios, mas ao invés de respondê-lo imediatamente, ficou alguns segundos em silêncio, para depois tornar a falar:

— Não vale a pena saber — a voz dela não estava firme como antes, e sim quebradiça. Ela engoliu em seco, como se percebendo que sua voz soava abalada, e prosseguiu com mais segurança: — E por acaso saber o porquê vai diminuir a minha culpa?

— Talvez. Vai depender do porquê.

— Humpf. Eu jamais contaria a alguém que não confio plenamente o motivo que me levou a fazer... — Ela inspirou e expirou, controlando-se —... aquilo. Isso não é do seu interesse. Você não merece saber. E saber o motivo não vai diminuir a minha culpa. Na verdade, acho que só vai aumentá-la. Eu não tenho vontade nem coragem de contar isso a ninguém, muito menos para Adam. Ele... Eu... — Ela abaixou a cabeça. A Menina pôde sentir a respiração dela acelerar. Queria fazer algo para não deixá-la daquele jeito, mas não sabia o que fazer.

— Annik — pegou-se dizendo aquilo. Sua boca agiu mais rápido que sua mente, e ela disse antes mesmo de pensar no que dizer a ela.

Annik levantou a cabeça e a respondeu:

— Sim?

Olhou para os lados, sem a mínima ideia do que dizer. Em poucos instantes, ela estava do mesmo jeito que Annik estava agora há pouco: sem saber o que dizer e com a respiração acelerada. Dizer algo na frente de Dusk, um desconhecido, era ainda pior. Do jeito que aquele cavalo era, ele parecia estar sempre a julgando mentalmente.

Annik percebeu o desconforto de Alice e limitou-se em pôr sua mão sobre o ombro da Menina. Mesmo vestindo o casaco grosso que ela lhe dera havia muitos tempos, Alice pôde sentir que seu toque era caloroso. Aquilo não queria dizer que suas mãos eram, literalmente, quentes. Pelo contrário; as mãos de Annik eram bastante geladas. Todas as vezes em que encostara em suas mãos, sentira-as muito frias, como se ela fosse um cadáver ambulante. No entanto, o seu toque era confortável. Independente da temperatura das suas mãos, aquilo fazia a Menina se sentir segura em meio à escuridão e ao silêncio do Deserto.


“Totems in the night

I want to forget

All that wasn’t right

I need to leave…”¹

— Beach House; Rough Song.


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Notas finais do capítulo

¹"Totens na noite / Eu quero esquecer / Tudo o que não foi certo / Eu preciso deixar...".



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