Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 50
XLIV - As Luzes do Norte




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XLIV

As Luzes do Norte


Mais uma vez, a Menina Sem Nome escorregava para dentro da mente de Annik.

Viu o mesmo tipo de imagens que vira anteriormente: os sonhos quebrados e falhos, imagens caóticas que pareciam vir de uma mente incompleta. Muitas eram incompreensíveis, então a Menina não se importou em prestar atenção no que via.

Normalmente, ela apenas continuaria a assistir àquela espécie de televisão quebrada e depois seu próprio subconsciente daria um jeito para que ela saísse dali. Entretanto, depois de ouvir o conselho de Ahmed, forçou sua mente a ficar lá dentro para que conseguisse adentrar mais profundamente nos pensamentos de Annik, até que finalmente mergulhou em sua direção.

Não soube como nem por quê — parecia pura sorte, coincidência, destino, aleatoriedade ou qualquer outra coisa inexplicável. Apenas entrou, e era tudo que precisava saber naquele momento.

Voltou a ver uma imagem que já tinha visto antes: o mar gigantesco e a pequena ilha, longe da figura da Menina Sem Nome. Daquela vez, o mar não estava revoltoso como de antes. Supôs que fosse pelo fato de Annik, a dona daquela mente, não estar desperta naquele momento.

Não sabia para onde ir. Não sabia se afastava-se do pequeno litoral da ilha, se mergulhava,  ou se nadava em direção ao amontoado de terra no meio do mar. Um oásis no meio do mar. Nos desertos, é normal que um oásis seja constituído de sombra e água fresca, mas naquela multidão de água, um oásis estava mais para um monte de areia e um pouco de aridez.

Resolveu planejar sua estadia na mente de Annik da seguinte forma: primeiro, mergulharia até o mais fundo que pudesse para encontrar algo que pudesse despertá-la. Se não encontrasse, iria até a ilha. Não sabia por quê, mas algo lhe chamava a atenção naquele pequeno monte de areia. A última tentativa que faria caso nenhuma das anteriores desse certo seria nadar a fim de se afastar da ilha. Deixou-a por último, pois tinha medo de que saísse da mente de Annik ao fazê-lo, então tomaria cuidado para aproveitar cada segundo — ou milésimos? Ou horas? Ou tempos incontáveis? Não sabia. O tempo, quando inconsciente, parecia passar de modo diferente.

Como tinha planejado, primeiro mergulhou. Já tinha se acostumado àquele mar respirável, em que a água não era líquida, sólida ou gasosa. Imagens e mais imagens surgiram. As imagens estavam intactas, para a surpresa da Menina. Aquilo parecia indicar que o subconsciente, ou como diria Ahmed, o verdadeiro “eu” de Annik, estava inalterado. Porém, sua consciência, seu pensamento, estava afetada. Talvez as imagens quebradas que tinha visto em seus sonos anteriores fossem fragmentos de pensamentos, não de sonhos.

Nadou em direção ao fundo do mar etéreo mais rápido que da primeira vez. Não estava se importando muito com as imagens que via, apesar de algumas lhe atraírem o interesse. Contudo, manteve seu pensamento focado em chegar ao solo o mais rápido possível e as ignorou. Mesmo nadando muito mais rápido que anteriormente, Alice ainda assim demorou em alcançar o ponto mais baixo do mar, o ponto mais profundo da subconsciência de Annik. Talvez aquele ponto nem mesmo devesse ser chamado de subconsciência, de tão obscuro ele era.

Obscuro não apenas por não haver luz, mas também por conter coisas ainda mais terríveis que as que habitavam a parte onde havia luminosidade. Da mesma forma que um mar de verdade, que esconde seres medonhos e assustadores nas profundidades mais baixas, ali também havia fatos ou pensamentos perturbadores de Annik. Eles existiam em menor quantidade, porém, ainda em uma quantia muito grande. Ela guardava muitos sentimentos ou desejos perturbadores ali, muito mais que uma pessoa normal poderia guardar. Também, da mesma forma que nos mares há peixes que vivem quase desprovidos de luz, as imagens também eram quase desprovidas de luminosidade. A maioria das memórias que residiam naquele lugar de escuridão eram palavras, vozes, cheiros, mas não imagens. Alice só pôde visualizar uma imagem boiando ali, e que, em contradição ao ambiente, era bem clara, feito uma luz no fim do túnel.

Alice aproximou-se mais e percebeu que alcançara o local mais profundo do mar; sentiu que suas mãos tocavam em algo que parecia terra, logo, não havia mais para onde nadar.

Aquela era toda a extensão da mente de Annik. Todo aquele mar, não apenas verticalmente, mas horizontalmente, continha quase tudo o que fazia Annik ser quem ela era. Quase tudo. Apesar de sua mente estar localizada ali, a aparência de Annik era externa. E por aparência, não havia apenas a descrição física, mas tudo o que não era intrínseco àquela pessoa, como fingimentos, por exemplo. Ou pelo menos, era aquilo que Alice tinha absorvido da explicação de Ahmed sobre kayrn e kra’vstan.

Aqueles eram dois termos que pareciam ter uma interpretação diferente para cada pessoa daquele mundo, mas ao mesmo tempo, significar uma coisa só. Era como se cada pessoa tivesse sua própria explicação para o que aquela palavra significava. O kra’vstan era uma língua cujos significados das palavras eram claros, mas apenas para aqueles que o falavam. Para a Menina, bastava se contentar com as explicações que lhe eram ditas. Talvez ela pudesse entender o kra’vstan, afinal, mas a seu modo estreito e sem detalhes. Quanto mais explicações ela reunisse, talvez ela conseguisse entender de fato o que o cada palavra significava, através de diferentes pontos de vista.

A imagem que via no fundo da mente de Annik lhe atraía. Ela parecia crescer cada vez mais, apesar de a Menina não estar se aproximando dela. Ela cresceu tanto ao ponto que a engoliu, e Alice tornou-se uma mera espectadora de lembranças afogadas.

Era uma manhã. Embora ventasse bastante naquele antigo deserto ali representado, Alice não pôde deixar de sentir uma sensação de sufocamento. Parecia estar abafado ali. Tinha a sensação de que sua cabeça estava presa numa caixa, e que o ar que respirava ficava preso ali dentro. Também se sentia como se a roupa que vestia grudasse em sua pele, uma hipersensibilidade que a incomodava bastante.

Havia duas figuras — uma era obviamente Annik, e a outra era um homem que Alice não conhecia — caminhando pelo deserto, com olhares inexpressivos. Alice ouviu algo falar, mas que não parecia ser as vozes de nenhum dos dois. Pareciam pensamentos, pensamentos de Annik, a dona daquela memória:

Eu preciso... — a consciência de Annik disse de modo etéreo. A voz dela ecoava por toda aquela memória, mas as figuras passadas dela mesma e do homem não ouviam. — Eu preciso fazê-lo... Se não agora, quando? Precisa ser agora. Precisa ser agora. Agora. Ou não será nunca. Tem de ser agora.

A consciência de Annik continuou a falar incessantemente, mas eram tantas as coisas que ela falava que elas poderiam preencher páginas e mais páginas de livros. As múltiplas vozes de Annik se sobrepunham de tantos pensamentos a respeito daquela memória, muitas vezes visitada e refletida sobre. Cada voz dela naquela lembrança era uma assinatura de quantas vezes ela tinha estado ali ponderando sobre ela, além dos seus pensamentos originais, no momento quando ocorreu a cena. Havia vozes calmas, outras em pânico. Não havia vozes em tons iguais ou que repetissem a mesma coisa. A única semelhança entre uma voz e outra era a tristeza, presente em todas elas e em diferentes intensidades.

A figura de Annik parou, o vento balançando seu cabelo e suas roupas incessantemente. Ela trazia um olhar agora mais duro, diferente do inexpressivo de outrora. O homem percebeu que ela parara de andar e virou-se em sua direção.

— Você vai ficar aí parada? — ele perguntou. — Não vamos chegar na Fonte se você ficar parando toda hora.

A figura Annik não o respondeu. Sua consciência tinha parado de falar. Annik provavelmente nunca mais visitou aquela memória a partir daquele ponto ou simplesmente não sabia o que pensar daquele momento. A explicação para o súbito silêncio em sua mente foi logo dada: a sua figura havia retirado um revólver do sobretudo e apontado para o homem. Este, surpreso e não entendendo o que estava acontecendo, levantou as mãos em uma rendição malfeita.

— O que você está fazendo?! — ele questionou, olhando de um lado para outro. Seus olhos oscilavam entre a face de Annik, a arma e o deserto ao redor.

Estranhamente, a face de Annik não demonstrava ódio ou nojo; continuava firme, porém sem sentimentos. Era estranho, mas começou a fazer sentido para a Menina, que apenas observava. Aquela cena lhe era familiar, mas não soube por quê. Nunca a tinha visto, nem mesmo sabia quem era o homem ali, apenas sabia que algo parecia chamá-la naquela cena.

— Adam, me perdoe — Annik disse. E atirou.

O homem, Adam, foi atingido no peito e caiu de joelhos no chão. Annik apenas observou a cena. Ele pôs a mão sobre o ferimento ensanguentado, uma careta de dor em seu rosto, e depois seu corpo não mais conseguiu aguentar, fazendo-o cair totalmente sobre a areia. Sua consciência voltou a falar. Foi apenas uma camada de voz e no idioma kra’vstan:

Drajde’nie, Adam... — a voz etérea de Annik falou e foi se dissolvendo, se dissipando, assim como a memória. Aquela “fala” pode ter quebrado o silêncio por alguns pequenos instantes, mas o silêncio que se seguiu depois foi ainda mais audível do que o anterior.

A Menina Sem Nome deixou de ser uma observadora e voltou a navegar entre as memórias de Annik. Nada havia acontecido depois de Alice visualizar aquela memória, ou pelo menos ela achou que não. Emergiu da água-que-não-era-água e seguiu seu plano: naquele momento, começou a nadar em direção à pequena ilha.

A Menina não sabia nadar, afinal, qual seria a utilidade de saber nadar num deserto? Contudo, na mente de Annik, Alice sabia nadar como uma atleta. Talvez fosse porque aquela água não fosse água de fato, ou talvez porque aquele “mundo” não era o real, apenas uma ilustração de um subconsciente. Mas o mundo lá fora também não parecia muito real, para ser sincera. O subconsciente de Annik era muito mais crível e verossímil para a Menina do que o deserto lá fora, com mudanças climáticas súbitas, dias e noites que demoravam muito para passar ou quase nada, distâncias e tempo incalculáveis... O Deserto parecia ter vontade própria, feito uma criança mimada. Mudava as suas próprias regras a seu bel prazer, fazendo com que o Mundo não tivesse regras, no final das contas. Era um completo caos. O inconsciente de Annik estava longe de ser organizado, mas ao menos não era uma imensidão desconhecida como o Deserto. Era um universo pequeno e Alice podia se sentir confortável dentro dele, mesmo que a própria Annik não se sentisse assim.

Estava aproximando-se da ilha. Daquela distância, a Menina conseguiu notar que havia uma figura deitada ali. Imediatamente, Alice lembrou-se da figura que estava sentada, pensativa, quando invadiu a mente de Annik pela primeira vez. Ao chegar mais perto, percebeu que aquela figura era uma representação física da própria Annik naquele mundo. Aquilo a fez nadar mais rapidamente. Quando chegou à terra, logo correu para a figura caída de Annik e tentou acordá-la.

— Annik, acorda! Acorda! — a Menina dizia, cutucando o corpo inerte de Annik. Aquilo a lembrou de quando a viu pela primeira vez, deitada no chão do deserto, dormindo o que parecia ser uma hibernação.

Annik se remexeu e gemeu desconfortavelmente, como se não estivesse gostando de ser acordada. Talvez não estivesse. A Menina sentiu-se até mal por ter de acordá-la. Annik não dormia desde que Alice a tinha acordado. Ela deveria estar gostando do merecido descanso que estava tendo, mesmo que não se desse conta disso. Mas era necessário. Se Alice não a acordasse, para onde iria? Não poderia ser um estorvo para Ahmed, apesar de que ela duvidava muito de que ele fosse desgostar daquilo. Ele sempre tratou tanto Annik quanto ela própria como rainhas, sempre atendendo aos seus desejos no momento exato. Mesmo assim, Alice ainda não poderia se ver livre de Annik assim tão cedo. Não poderia se ver livre dela em momento algum. Há pouco tempo, todo o mundo da Menina Sem Nome constituía apenas em um deserto e a companhia de Annik. Agora, ela não tinha nem o deserto nem Annik.

Annik pareceu começar a despertar. Seus olhos se moviam sob suas pálpebras e tinham espasmos, como se ela estivesse tentando piscá-los mesmo fechados. Logo, seus olhos se abriram. As íris castanhas refletiam o luar e as estrelas da eterna noite na mente de Annik.


Annik, acorde.


Annik levantou-se a ponto de ficar sentada no chão. Aquilo era familiar... De onde tinha sido? Ah...! Aquele dia fatídico no deserto escaldante em que acordara pela primeira vez de seu primeiro sono.


Deserto. Saar.


— Annik...?! — A Menina perguntou, surpresa.

Annik não respondeu. Ainda parecia estar absorvendo tudo, assim como da primeira vez em que acordara.

— Eu... — ela começou a falar, mas parou no meio, como se estivesse cansada, e caiu nos braços de Alice.

— Não, não, você tem que acordar! — Alice começou a chacoalhar o corpo de Annik. — Você não pode dormir, Annik, não agora!

— Mas eu quero tanto...

— Eu sei, mas você tem que acordar agora e vai acordar nem que eu te obrigue.

Alice segurou Annik pelos braços e a arrastou até o mar. Annik acordou num sobressalto quando sentiu a água fria e salgada do mar encostar em sua pele e entrar pelo seu nariz. Ela pôs-se de pé e saiu da água gelada caminhando de volta à praia, tossindo por causa da água que havia respirado.

Alice, no entanto, parecia menos desperta. Um sono terrível tomou conta de si. Bocejou e sentou-se na praia enquanto Annik tirava seu sobretudo molhado e o torcia. O sono ficou cada vez pior e a Menina não aguentou; deitou-se no chão e fechou os olhos. Antes que pudesse dormir, no entanto, ouviu um barulho estrondoso ao fundo, na direção do mar, e sentiu algo a molhando como se alguém lhe desse um banho de água fria.

Abriu os olhos, assustada, mas não mais viu a praia ou o mar. Viu-se novamente no quarto na casa de Ahmed, deitada ao lado de Annik, no mundo real. Ou pelo menos no que achava que era o mundo real.

Olhou pela janela. Era noite, mas uma noite bem diferente da que estava acostumada a ver no deserto. Havia cortinas coloridas se mexendo pelos céus e elas ventavam com o sopro do sarlik. Virou-se para o lado e percebeu que Annik ainda dormia. Segurou suas mãos e sentiu-a quente e viva. Ela respirava ritmadamente. Aquilo era um bom sinal. Um ótimo sinal. Alice não conseguiu segurar o sorriso de felicidade que estampava seu rosto. Mas até quando ela dormiria? Será que ela voltaria a ser uma pessoa normal (se é que havia pessoas normais naquele mundo) que conseguisse dormir quando sentisse sono? As respostas para aquelas perguntas não viriam tão cedo, mas já se sentia muito aliviada e feliz apenas de poder sentir o sangue circulando nas veias de Annik.

Voltou a olhar pela janela, mas antes que pudesse se concentrar na seda colorida que se mexia a céu aberto, algo se remexeu ao seu lado.

— Hm... Alice...? — Era Annik, que finalmente tinha acordado. Ela ainda estava letárgica por causa do sono. Passava a mão no seu rosto constantemente numa tentativa de limpar o resquício de sono que sobrara dentro de si.

— Annik! — Alice abraçou-a apertado. Annik não pareceu entender tudo aquilo, mas abraçou-a de volta também.

— O que houve...?

— Eu achei que você tivesse morrido!

— Q-quê...?

— Você não lembra?

Annik não lhe respondeu imediatamente. Ficou em silêncio, parecendo vasculhar a própria mente por alguns instantes, até que arregalou os olhos.

— S-sim... eu... eu me lembro! No Deserto de Sal... Onde estamos agora?

— Na Tundra.

— Não é possível...

— Então olha pela janela. — Alice apontou a janela para Annik, que se esticou para observar através dela.

— Como...?

— A gente tá na casa de um homem chamado Ahmed — tentou imitar o modo de como ele falava, mas se arrependeu logo depois. Soou ridículo. Ela não sabia falar daquele modo aerado que Annik e Ahmed faziam quando falavam. — Ele chegou no deserto num... num avião!, por incrível que pareça, e levou a gente pra cá, onde é a casa dele. Nós... nós cuidamos de você, Annik... Eu fiquei preocupada. Muito. Não me assuste de novo. Por favor. — Lágrimas nasciam dos olhos da Menina, mas ela foi cuidadosa em tentar escondê-las. Não havia motivo para chorar mais. Annik estava ali, e era ela tudo do que Alice precisava naquele mundo.

—... Eu... eu agradeço. Densk, Alice. — Annik fez uma pausa e depois limpou a garganta, mudando de assunto: — E onde esse homem, Ahmed, está?

— Vou chamar ele. Fica aí, certo?

Annik assentiu, e Alice levantou-se para procurar o anfitrião pela casa. Ele estava em sua sala, mas diferentemente das outras vezes em que Alice o via lá, não estava com os olhos fechados em posição de meditação. Estava sentado, mas com os olhos bem abertos e atentos.

Maesir Annik acordou — ele simplesmente disse quando Alice entrou na sala. Esta, em resposta, apenas assentiu e voltou ao quarto, Ahmed atrás de si também se dirigindo para o aposento.

Ao chegarem lá, a reação de Ahmed foi no mínimo pouco usual: ele se curvou perante Annik, contradizendo todas as pessoas normais — ou pelo menos o que Alice achava normal, mas a ideia de normalidade era difícil de conceber naquele mundo — do Deserto. Até mesmo a própria Annik pareceu estranhar a atitude do homem com um franzir de sobrancelhas.

Maesir Annik — ele disse respeitosamente.

Ela apenas assentiu com a cabeça, sem tirar os olhos do homem.

— Foi uma honra servi-las, maesirva — Ahmed continuou.

— O-obrigada, Ahmed — a Menina agradeceu, sem saber o que pensar daquela reação.

Densk, mae’ster — foi a vez de Annik manifestar agradecimento.

Aranek, maesirva — Ahmed respondeu-lhes. — Se há algo mais em que Ahmed possa ser útil, por favor, avisem-no.

— Eu, ahm... — Annik pareceu constrangida. Fez menção que iria se levantar da cama, mas só foi perceber naquele momento que estava vestida apenas com roupas de baixo. — Minhas roupas — ela falou, corando e sentando-se na beirada da cama ao invés de colocar-se de pé.

Da, maesir. — Ahmed fez uma última reverência e saiu do quarto, deixando Annik e Alice sozinhas mais uma vez.

Houve um breve silêncio constrangedor até que Alice, percebendo aquele clima e sentindo-se incomodada com ele, resolveu quebrá-lo, mas não com palavras. Voltou-se para Annik e a abraçou novamente. Annik foi mais calorosa respondendo àquele abraço do que ao primeiro. Ela acariciou seus cabelos e apertou-a mais forte. Alice ouviu-a chorar baixinho, mas não comentou nada a respeito, apenas deslizou a mão sobre seu rosto, limpou suas lágrimas e voltou-se para o abraço silencioso e apertado.

Maesir Annik, Ahmed está de volta com... Minha presença está atrapalhando-as?

Elas subitamente desfizeram-se do abraço.

— N-não, tudo bem — Annik respondeu. — Eu... eu que devo agradecê-lo, Ahmed. Por tudo. Por ter cuidado de mim e principalmente de Alice. Densk. — Ela o olhava bem nos olhos. Alice se arrepiou com aquilo. Annik parecia abrir um pedaço de seu coração e oferecer um pedaço de sua alma quando ela olhava nos olhos de alguém e respondia algo em kra’vstan.

Aranek, maesir, aranek... — Ahmed fez mais uma reverência, dessa vez mais profunda e respeitosa. Ele deixou as roupas de Annik dobradas sobre a cama enquanto falava: — Se me permite a palavra, maesir, eu gostaria de lhes recomendar um lugar para ir.

— Diga. Se pudermos ir até lá, com certeza o faremos.

— Ahmed conhece um amigo que sabe bastante sobre os nomes. Ahmed acredita que maesir Kra’vstanlas iria gostar de ir até lá para ter algumas de suas perguntas respondidas. Basta seguir a Rodovia e vocês o encontrarão. Acredito que vão saber quando encontrarem o lugar. É bem peculiar.

— Iremos seguir sua sugestão. Mais uma vez, eu devo agradecê-lo imensamente. Densk, mae’ster Ahmed.

Aranek, maesir Annik, et mraivenir. Por agora, Ahmed irá deixá-las a sós. Quando estiverem prontas para partir, avisem a Ahmed.

Annik assentiu profundamente, e Ahmed retirou-se para seus aposentos.

Annik pegou as suas roupas e começou a desdobrá-las devagar, quase como se não estivesse realmente interessada em fazer aquilo. Alice logo depois percebeu o porquê.

— Ah, e-eu também vou deixar você sozinha pra se vestir. Vou, er, comer. — Sorriu timidamente para Annik, que sorriu de volta, e saiu do quarto com o rosto queimando de vergonha. Annik poderia ser uma pessoa muito próxima de Alice, mas com certeza não se sentiria confortável sendo observada se vestindo. Aquela tinha sido a mesma reação de quando vira a Menina também trajando apenas vestes de baixo na casa de Isaac. Embora as duas fossem de certa forma muito íntimas, Annik era uma pessoa que tinha um certo pudor em relação àquele tipo de coisa.

Ahmed estava certo ao falar que precisariam comer algo antes de partirem. O estômago de Alice estava roncando de fome, mas felizmente na cozinha havia bastante comida. Carnes de todos os tipos, queijos, pães, sucos e até mesmo algumas bebidas alcoólicas. A Menina não se arriscou a bebê-las, porém comeu e bebeu do resto que estava sobre a mesa. Annik chegou logo depois, já vestida com a roupa que Alice estava acostumada a vê-la e também carregando seu bastão de baseball, que Alice também tinha levado e limpado todo o sangue seco que nele havia. Agora parecia um bastão um pouco menos ameaçador.

Era estranho pensar naquele objeto depois de tanto tempo. Lembrava-se de como tinha um medo anormal daquilo e de Annik. Agora se sentia tão ligada a ela que também não se imaginava sem ela. E quando ao bastão, bom... ele era apenas um bastão de baseball, agora.

— Você já tá pronta pra ir embora? — Alice perguntou, ainda saboreando um pedaço de queijo.

— Sim, mas você pode terminar de comer. Eu espero — Annik respondeu, sentando-se à sua frente.

Sendo assim, Alice comeu mais, enquanto Annik a aguardava em silêncio. Aquele provavelmente seria o único momento de sua vida em que iria comer algo tão bom e com fartura, diferente da comida horrível e escassa de Annik. Aquele era o único ponto negativo de tê-la de volta: ter de comer a comida horrorosa que ela preparava. Ainda bem que era escassa. Se fosse muita, a Menina provavelmente iria vomitar no prato antes mesmo de dar a primeira colherada. Argh. Aquilo até lhe fazia perder o apetite, então procurou pensar em outra coisa para continuar comendo até seu estômago dizer “chega”.

Quando sua barriga finalmente começou a doer e pesar de tanto comer, Alice levantou-se — com dificuldades por causa do peso da comida — e avisou:

— Acho que já podemos ir. Comi até demais.

— Melhor comer demais do que de menos, porque a viagem será longa — Annik replicou, também se levantando. — Irei chamar Ahmed.

Ela saiu da cozinha e voltou logo depois trazendo o anfitrião consigo. Ele abriu a porta para elas, antes dizendo alguns adeuses:

Tel, maesirva, et mraivenir. — Ele se curvou.

Tel, Ahmed. Densk. — Annik também abaixou a cabeça respeitosamente.

— Adeus, Ahmed. E obrigada por tudo — a Menina também agradeceu, sorrindo. Ahmed sorriu em resposta para as duas.

Abrir a porta foi como dar olá para o mundo novamente. Por alguns tempos, seu cosmos havia sido resumido em uma pequena casa, escura porém confortável, e tudo o que havia lá fora lhe parecia inalcançável. Foi quando deu o primeiro passo para fora de casa e para dentro da neve macia da Tundra que soube, que teve certeza, de que o Mundo era mais real do que parecia. Nunca o frio lhe pareceu tão verdadeiro. Ele agia como se por vingança: açoitava-a como punição por ter duvidado de sua veracidade. O sofrimento parecia bem mais real do que antes, todavia, a beleza também. As cortinas luminosas e coloridas ainda serpenteavam nos céus da noite nevada. Alice olhou para elas com admiração.

— Temos de ir — informou Annik, a voz alta sobrepujando o vento. — A viagem daqui até o Deserto será longa, e do Deserto até o Fim do Mundo irá ser maior ainda.

Alice assentiu e mergulhou seus pés na neve fria. Pareceu-lhe que ela ultrapassava suas camadas de roupas e consumia todo seu corpo com o frio. Ele se espalhava dos seus pés até sua cabeça a ponto de sentir calafrios pelo seu corpo.

A noite continuou de pé à medida que suas pegadas foram sendo formadas e encobertas por mais neve que caía dos céus. Os vultos coloridos — que Annik tinha chamado de “aurora boreal” — também permaneceram. E a longa viagem, que parecia não acabar nunca, também era perene.


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