Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 49
XLIII - Sonhos Apocalípticos


Notas iniciais do capítulo

https://www.youtube.com/watch?v=KQH2Kq1QXaI
Tame Impala - Apocalypse Dreams.



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XLIII

Sonhos Apocalípticos


A casa de Ahmed era escura, porém quente e confortável. Ele vivia perfeitamente como um fungo ali: um lugar com pouca luz, úmido e quente. Já a Menina, apesar de gostar do calor, não se sentia confortável na escuridão nem na umidade, e imaginava que Annik, onde quer que a consciência dela estivesse, também não.

Maesir gostaria de uma xícara de chá? — Ahmed perguntara, sempre bondoso e respeitável. Não parecia se importar que, das duas visitantes que tinha, uma não possuía nome e a outra, além de estar num estado quase de coma, era a pessoa mais temida do Mundo. Ele parecia apenas conformar-se com a situação enquanto as tratava do melhor modo possível. A Menina devia concordar que, num mundo onde poucas pessoas eram confiáveis, Ahmed era uma exceção.

— Não, obrigada.

Aranek, maesir. Estarei nos meus aposentos fazendo o taalan. Caso maesir necessitar de Ahmed — ele falava o próprio nome como se ele fosse um jorro de ar, com exceção da letra “D” ao fim, que soava dura —, pode procurá-lo — também falava sempre na terceira pessoa, como se referir-se a si mesmo fosse errado. Aquilo incomodou a Menina por alguns tempos, mas já tinha visto um homem que não conseguia falar uma frase sem palavrão e uma mulher que não tolerava erros gramaticais. Um homem que se tratava pela terceira pessoa era só mais um dos inúmeros vícios linguísticos naquele mundo, ela supunha.

— Não se preocupe, não vou te incomodar. — Sorriu desajeitadamente. A bondade de Ahmed a fazia se sentir desconfortável, como se não a merecesse. Ela estava acompanhada de um dos seres humanos mais vis, cujos nomes eram mais que vocativos: eram ameaças, logo, qualquer ajuda que recebesse a faria se sentir daquele jeito. Ahmed, em resposta, apenas curvou-se, o seu turbante branco quase caindo da cabeça, e então saiu do quarto onde dormiam a Menina e Annik.

A Menina voltou-se para Annik, prostrada na cama. Ela parecia morta, e a Menina realmente teria largado-a para trás se não fosse Ahmed. Ele vasculhava objetos no deserto de sal e, coincidentemente, encontrara-as lá. Se fosse qualquer outra pessoa normal, ela provavelmente iria ter fugido ou tentado matar a Menina por se aliar com aquele demônio. Mas não Ahmed. Não soube se ele as ajudara de coração ou se tinha ficado comovido com a tristeza da Menina, mas Alice lhe era grata independente do motivo. Então ele levou Annik e Alice para seu avião e as levou para seu lar na Tundra.

Era estranho pensar naquilo, mas Ahmed tinha um avião. Quando perguntado por Alice sobre como havia conseguido o avião, ele dissera que tinha pegado partes de um outro avião maior que tinha caído nas Montanhas e o construíra sozinho. Também era estranho imaginar que tinham saído do extremo calor do Deserto para o frio intenso da Tundra. Alice estava tão acostumada com a cor de areia e o calor do deserto que parecia ser até uma alucinação pensar que o que estava além das paredes da casa de Ahmed era neve, camadas espessas de pura neve.

Em sua casa, Ahmed providenciara um aposento para elas e, todos os dias, parecia fazer uma espécie de meditação. Alice também tinha lhe perguntado o porquê daquela meditação diária, e ele a corrigira:

— Não se chama meditação, maesir, e sim taalan. O taalan é o que poderá ajudar maesir Annik a se levantar. É a sua única esperança de acordar.

— O que é “talan”?

Taalan, maesir, ta-a-lan — ele pronunciou cada sílaba devagar. — Prolongue o “A”. O taalan pode parecer uma meditação, mas é muito mais profundo que isso. Não sei se maesir pode ser capaz de compreendê-lo a não ser que seja capaz de fazê-lo. Algumas coisas no Sanduur são inexplicáveis usando palavras sem profundidade, e o taalan é uma dessas. Apenas os falantes do kra’vstan são capazes de entender o seu verdadeiro conceito.

— Bem, então tem alguma coisa que eu posso fazer pra ajudar a Annik que não seja esse “taaaalan”?

¡Nir! — Ele balançou a cabeça freneticamente. — Ahmed bem que gostaria que maesir Kra’vstanlas pudesse fazer algo, mas é impossível. — Apesar de a Menina ter dito a Ahmed que ele poderia chamá-la de Alice ou simplesmente de Menina, ele se recusava a fazê-lo, chamando-a apenas de “maesir Kra’vstanlas”. Alice não sabia o que maesir significava, mas sabia o significado sem profundidade de Kra’vstanlas.

Desde então, Alice sentiu-se impotente, como uma parasita abusando da boa-vontade de Ahmed. Não havia nada que ela pudesse fazer para ajudar Annik. Tudo o que tinha feito para ajudar tinha sido despir Annik e lavá-la de todo suor, sangue e areia que impregnara em seu corpo. Depois disso, sua função na casa era observá-la e tentar acordá-la de alguma maneira, mas todas falharam.

Imaginou que ela já estivesse morta e que Ahmed tinha atraído-a para uma armadilha, mas sentiu-se desconfortável demais para questioná-lo a respeito. E, bem, se Annik realmente já estivesse morta, também não haveria muito pelo que continuar a viver naquele mundo. Mesmo assim, tinha tido a coragem suficiente para perguntar a Ahmed sobre o estado de Annik:

— Ahmed — o nome do homem soava sonoro demais em sua boca, não se parecia nada com o quase sussurro que ele usava para se referir a si mesmo —, você não acha que a Annik já tá morta?

Mas ele não se importara com o uso errado do seu nome.

Nir. Maesir Kra’vstanlas, você precisa entender o que se passa com maesir Annik. Ahmed não lhe explicou o que aconteceu com ela. Maesir pôde observar o que houve naquele momento, mas não pôde compreender. — Ele fez uma pausa, inspirou e expirou. — Maesir Annik dorme, é o que basicamente está acontecendo. Entretanto, maesir não consegue acordar. É como se maesir estivesse presa dentro de sua própria mente, assim como nós ficamos presos dentro de nossas mentes quando dormimos. Porém, nós conseguimos acordar. Ela, não. O que mae’ster David fez com sua mente foi extremamente violento. É como se ele tivesse... — ele gesticulou, mas apenas pedaços entrecortados de letras saíam de sua boca enquanto ele tentava procurar uma palavra para encaixar ali —... escurecido a mente de maesir Annik. Agora, maesir Kra’vstanlas, gostaria de um pedaço de queijo? Acredito que a conversa a tenha cansado.

Alice não queria pedaços de queijo ou xícaras de chá, por mais incrível que parecesse. Tudo que ela queria era arrumar uma forma de acordar Annik. Sentia-se cansada de não poder fazer nada e ingrata ao não poder retribuir a gentileza de Ahmed ao não conseguir ajudá-lo. Também se sentia extremamente mal por não ajudar Annik, ela que foi a única pessoa capaz de protegê-la durante todo aqueles tempos em que estivera no Deserto. Se alguém era digna de gratidão da Menina, essa pessoa era Annik. Vê-la deitada na cama a todo o momento também era muito doloroso. Saber que ela não estava morta a aliviava, mas não tanto. Ainda sentia-se pesada porque, mesmo ela não estando morta, estava quase lá. Estava presa dentro da sua própria mente, e nem Alice conseguiria adentrá-la como tinha feito várias outras vezes.

Era paradoxal, mas mesmo Annik estando viva, ela estava morta, e aquilo fazia Alice se sentir como se tivesse perdido uma parte de si mesma. Annik e ela tinham desenvolvido uma conexão enorme, e a Menina sequer conseguia imaginar-se sem ela. Perdê-la foi como perder a própria vida. Tudo o que restava de si mesma era um espectro ambulante e isento de vida.

Ahmed tinha dito que a consciência de Annik tinha “se escurecido”, mas ao mesmo tempo tinha dito que ela estava presa dentro de sua própria mente. Lembrou-se de como tinha acordado-a da primeira vez, sussurrando apenas uma palavra, e talvez aquilo pudesse ser a solução. Uma chama de ânimo esquentou-a por fora e esfriou-a por dentro. Talvez desse certo! Ahmed tentava o método do taalan para acordá-la porque ele não sabia o segredo de Annik, imaginava, mas Alice sabia e poderia usá-lo para acordá-la! Correu para perto de Annik, mantendo seu rosto bem próximo dela. Tocou em sua testa e disse a palavra que tinha dito no dia em que a acordara, mas ela não surtiu efeito.

Alice apenas sentiu as lágrimas descerem, mas nenhuma tristeza arrasadora seguiu-as como haviam seguido-as no dia da “morte” de Annik. Aquela tristeza era diferente da tristeza de perder alguém querido, uma tristeza que gritava e esperneava; era uma tristeza desanimada, uma tristeza de desesperança. Se aquele método não tinha funcionado, que outro iria? Ahmed não conseguia acordá-la, mesmo com grandes esforços, e a Menina também não. Não restava nada a ser feito.

— Palavras não poderão ajudá-la, maesir — a voz de Ahmed surpreendeu-a. Ele tinha observado-a durante todo aquele momento. — Sinto muito. Drajde’nye, maesir. — E se retirou.

Alice debruçou-se sobre Annik e chorou, apenas. De fato, não restava nada a ser feito. Annik continuava fria, agora morta por completo. Sua consciência poderia estar viva em algum lugar dentro de sua cabeça, mas de que adiantava sendo que ela jamais poderia emergir? Ela já estava morta. Seu corpo estava morto, frio, pálido e com as extremidades roxas, mas sua consciência estava presa e implorava por ajuda.

Ou pelo menos Alice achava que sim.

Apesar de ter achado que não poderia invadir a mente de Annik, poucos tempos depois Alice sonhou. Contudo, como não sonhava de fato, soube que só poderia estar invadindo a mente de alguém. Não imaginava que era a de Ahmed, todavia. Via imagens estranhas em seus sonhos, como se elas estivessem erradas, e a mente de seu hospedeiro não parecia ter nada de errado.

Via imagens que pareciam estar quebradas. Todas elas pareciam erradas, invertidas, com cores erradas e eram rápidas demais, como flashes. Às vezes não havia imagens, apenas sons. Quando havia sons, eram sons esquisitos, e muitas vezes também sem cenas. Parecia a mente que tinha invadido era uma televisão quebrada ou imagens modificadas por computador com bugs e glitches. Eram sonhos tirados de um campo de guerra mental, sonhos sobre o caos da consciência, sonhos apocalípticos. Reconhecia Annik em algumas imagens, mas às vezes era impossível de enxergar qualquer coisa naqueles sonhos quebrados.

Foi na terceira vez que resolveu contar a Ahmed a respeito de seus sonhos. Assim que acordou de seu sono caótico, correu para a sala onde Ahmed fazia o seu taalan e lhe disse que queria contar algo — apesar de que seu tom de voz deu a entender que o que fazia era muito mais que contar, era um confessar. Sempre calmo e respeitoso, Ahmed ouviu-a, mas não se manifestou nem durante nem logo depois que ela terminou de contar sobre seus sonos atribulados.

— Ahmed? — ela tentou chamá-lo de volta para a realidade quando viu que ele não a respondia. — Por que você não me responde?

Maesir Kra’vstanlas — ele então disse com a maior trivialidade do mundo, como se toda aquela pausa não tivesse acontecido —, você sabe por que Ahmed se refere a si mesmo pelo próprio kayrn?

— O que isso tem a ver com o que aconteceu?

— Tudo. Preste bem atenção, maesir: Ahmed não se refere a si mesmo como “eu” pois o verdadeiro eu está preso em minha mente. Ahmed é só uma imagem, já eu sou um conceito. Creio que maesir já tenha ouvido falar dos kra’vstanva, ¿nir hat ust?

— Eu já ouvi falar.

— Pois bem. O meu kra’vstan, Mayabaar, sou eu. Já Ahmed é isto. — Ele passou a mão sobre o rosto. — O que foi preso dentro da mente de maesir Annik foi seu eu, foi seu kra’vstan. Através do taalan, eu tento recuperá-lo. Nir Ahmed. It taalant. Lembre-se: Ahmed, meu exterior. Meu interior, minha mente, Mayabaar. A mesma coisa acontece com Annik.

— E comigo?

Maesir Kra’vstanlas, Ahmed já ouviu histórias sobre você, mas ele não é a pessoa mais correta para lhe responder essa pergunta. Entretanto, Ahmed conhece uma pessoa que poderá ajudá-la com isso. A única coisa que Ahmed pode lhe responder é que maesir é capaz do taalan. O que tem ocorrido com você durante esses tempos é o taalan.

— Então isso é o “talan”? Eu já fiz isso várias vezes antes! Annik e Isaac me falaram que era como invadir mentes e sonhos. Por que você não falou que era isso?

— O taalan — ele deu ênfase nessa palavra, como que para corrigir a pronúncia horrível da Menina — não deve ser visto como uma “invasão”. Invadir é entrar sem permissão, é entrar com rudeza. O taalan é natural. É como mergulhar na mente, sem violência ou indelicadeza. E maesir consegue fazê-lo tão bem quanto eu ou quanto mae’ster David. Meu taalan tem se provado inútil e sem resultados, mas o de maesir é forte. Você consegue enxergar o eu de maesir Annik. Meus esforços, entretanto, não me levaram tão longe.

— O que eu tenho que fazer pra acordar a Annik, então?

— Siga o eu de maesir Annik. Ela está perdida, presa dentro de sua própria mente. Siga seu apelo, siga seus gritos, mergulhe no mar onde ela se afoga e maesir a encontrará.


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