Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 47
XLI - O Comensal


Notas iniciais do capítulo

Agora sim, o capítulo na ordem correta.

Para lembrá-los, mesmo que você já tenha lido este capítulo, leia o anterior e releia este. Isso vai situar vocês melhor na história e lhes darem um compreendimento melhor das tramas que estão acontecendo.



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XLI

O Comensal


Para Kurt, a festa estava insuportavelmente chata.

Ele não queria saber de regozijo ou de festividades, apenas de caos. Ver aquele pessoal que nem conhecia festejando às suas custas, à custa de seus feitos, era horrível. Um bando de parasitas, isso sim.

Porém, algo o fazia sorrir. Parecia que todas as estrelas estavam alinhadas em sua direção. Sabia que o Faraó iria lhe recompensar muito bem por causa de seus conselhos e também por causa da conversa com a Rainha, a misteriosa mulher que visitara na Fortaleza de Areia. É claro que, se o Hasir descobrisse de sua interação com a Rainha, ele com certeza não iria ficar satisfeito, mas Kurt era discreto o bastante para não deixar ninguém saber de que era aliado de mais alguém além do Faraó. De qualquer forma, ele iria sair ganhando, tanto pelo lado do Faraó quanto pelo lado da Rainha.

— Um brinde a Kurt! — Um dos convidados levantou o copo em brinde. — Houve comemorações e levantes de copos por todo salão de festas. Kurt, para não soar rude, também se juntou ao brinde. No entanto, o sorriso não foi verdadeiro, nem o levantar de seu copo. Sequer bebericou do vinho; depois que finalizou o brinde, colocou-o de volta sobre a mesa a qual estava sentado.

Limitou-se a observar as pessoas dançando aos sons da música ao redor, outras cambaleando de tanta bebida alcoólica e outras simplesmente conversando — ou tramando. Jan era um dos que conversavam, e como conversava. Pior: ele conversava olhando para os lados, como se debatesse algum assunto secreto com seus companheiros e não quisesse que ninguém os bisbilhotasse.

O corvo de Jan também estava repousando no ombro de seu mestre. Lembrou-se que a Rainha lhe pedira para matar a ave. Aquele momento seria ótimo para realizar o primeiro serviço para sua nova dirigente. A ave bebericava constantemente do copo de vinho de Jan. Se Kurt pudesse ir até lá e despejar veneno no copo, iria realizar aquilo com facilidade. Porém, era arriscado, principalmente no meio de uma festa e com o perigo de também matar Jan além da ave. Que pena. Aquilo teria que ficar para depois. O momento não estava propício para mortes, mas sim para júbilo.

Kurt continuou a observar as pessoas na festa. Alguns, os mais beligerantes, travavam quedas de braço e lutas desajeitadas por causa do efeito da bebida alcoólica. O velho Vlad, o Guia da Tortura, parecia berrar com outros convidados por conta de alguma coisa que o estava incomodando. O Grão-Mestre também observava a todos, assim como Kurt. Era um homem esperto, mas tinha suas falhas como líder. Não parecia nunca tomar a iniciativa, não parecia sequer existir. Era apenas uma figura decorativa. Quem realmente dava as ordens para Os Corvos eram os Guias, que tinham poder abaixo do Grão-Mestre.

— Vejo que você não parece tão feliz — uma voz surgiu detrás de si. Kurt virou-se e deparou-se com o Hasir, que se sentou ao seu lado com um copo de vinho na mão. O Faraó provavelmente já não estava tão sóbrio como de costume. Não era de seu feitio agir amigavelmente, no entanto, Kurt não reclamou da rara demonstração de cordialidade. — O que está achando da festa, senhor Kurt?

— Animada de mais para mim. — Deu um sorriso de lado.

— E a bebida?

— Ótima como sempre, senhor, mas hoje não estou com a cabeça muito boa para encher a cara. — Era estranho pensar que as pessoas normais ficavam violentas ao beberem demais, mas o Faraó era o contrário: era violento quando sóbrio, mas afável quando bêbado.

— É uma pena, senhor Kurt. Mas está feliz com a notícia?

— É claro. Como não poderia estar? — Na verdade, estava pouco se lixando para Annik. Nunca teve medo dela, diferente do resto do Mundo. Quais as probabilidades de ela o encontrar? Não havia motivos para temê-la, principalmente agora. Ela estava morta, não havia nada para ameaçá-lo. Nunca houve nada para ameaçá-lo, para falar a verdade. Annik era como um desastre distante, que jamais o alcançaria. E, de fato, nunca o alcançou. — Bem, é uma pena que perdemos dois ótimos aliados, mas não conseguiríamos matá-la se não fosse por eles. — Outra mentira. A vida daqueles dois Obatenva nunca fez diferença para eles. Não importava se eles estavam vivos ou mortos ou se Annik estava viva ou morta: o que importava é que Kurt ascendia aos céus enquanto seus outros companheiros ficavam presos à terra.

— Realmente uma pena, senhor Kurt... — O Faraó assentiu longamente. — Felizmente, seus sacrifícios tiveram resultados e não foram em vão. Confesso que imaginei que não daria certo, mas quando ouvi as notícias dos corvos, fiquei num estado de torpor. Achei que estava em um sonho. Era irreal.

— Bem, o senhor conseguiu o que mais desejava, não é mesmo?

— Claro, claro... Apesar de que todos os Legionários remanescentes são meu foco, não apenas um ou outro. Mesmo assim, os que ainda vivem não são uma ameaça tão grande para mim. De qualquer forma, senhor Kurt, você tem me prestado serviços bastante eficientes. Talvez nem mesmo o kra’vstan mais profundo demonstre o quão grato estou. — Ele esboçou um sorriso.

— Não há problemas, senhor. Eu posso ver em seus olhos que está de fato profundamente agradecido. Por trabalhar tanto com a mente das pessoas, sei como pensam, quando falam a verdade. Sei da natureza das pessoas, senhor Hasir.

O Hasir mais uma vez sorriu — dessa vez um sorriso largo — e levantou-se, também erguendo o seu copo de vinho.

— Senhores e senhoras — ele proferiu —, eu gostaria de fazer outro brinde ao senhor Kurt, não apenas por ele ter realizado serviços muito importantes para a Aliança, mas porque também quero informar de que ele é o meu mais novo braço direito. A partir de agora, o senhor Kurt é um homem que deve ser obedecido por todos vocês, e como meu braço direito, responderá apenas a mim e a mais ninguém. — Em meio a sons de copos tilintando (alguns até mesmo quebrando) e “Vivas!” dos outros convidados, o Hasir voltou-se para Kurt, que sorria timidamente, e disse: — Densk, Kurt.

Aranek, Hasir — respondeu.

Houve uma salva de palmas que encheu o salão de festas. Kurt, no entanto, não ficou surpreso com aquilo. Sabia que o Faraó iria lhe presentear com algo tão grandioso. E havia mais por vir, é claro. O que o Faraó lhe oferecera como recompensa não chegava nem perto do que ele desejava. Para falar a verdade, independente de o Hasir recompensá-lo ou não, Kurt teria o que desejava. A Rainha havia lhe prometido e ela falava a verdade. Não pôde deixar de se sentir superior. Antes, tinha sido um nada; agora era o segundo em comando do Faraó. Jamais imaginou que sua ambição poderia tê-lo levado tão longe, mas agora que já estava distante, ele queria terminar o percurso. Contudo, não iria conseguir terminar o percurso tendo apenas o Faraó como seu guia pela estrada do poder e da ganância.

— Ora, ora... — outra voz surgiu e, assim como os aplausos, parecia encher todo o salão de festas. No entanto, essa voz era calma como água parada, diferente dos aplausos, que eram como correnteza. Era uma voz retumbante, grave, que fazia até mesmo as paredes tremerem. E não tremiam apenas por causa das ondas de sua voz, mas do medo que sentiam por ela. Ao sentirem aquela voz permeando o ambiente, todos os convidados emudeceram. Calaram-se como se algo os fizesse temer o ato de falar, como se suas línguas pudessem ser arrancadas caso pronunciassem uma simples vogal. Mesmo os convidados que tendiam à violência e à crueldade permaneceram quietos como criancinhas amedrontadas, sombras de quem eles eram. Ou talvez uma verdadeira mostra de quem eles realmente eram por trás daquela camada de brutalidade. — Que bela festa... — a voz saía de lugar nenhum, mas ao mesmo tempo, ela pairava pelo aposento como se seu dono estivesse em todos os cantos do salão de festas.

Kurt não sabia a quem pertencia aquela voz, mas sentiu-se ameaçado por ela, por sua calma perigosa, seu cuidado com as palavras. Era uma voz de quem estava pronto para dar o bote. Uma voz felina, caminhando devagar para não assustar suas presas. No momento em que estivesse pronto, iria pular, saindo da camuflagem da grama alta, e cravaria os dentes no antílope que era seu alvo.

Uma figura negra e gigantesca surgiu em meio às sombras do salão de festas. Era mais alto do que qualquer um ali presente e mais ameaçador do que qualquer outro ser existente no Mundo. Quem eram Annik, o Faraó ou o Grão-Mestre perto daquele homem! Ele inspirava medo e terror sem precisar fazer nada além de falar. Quanto aos outros, eram apenas seres inconstantes ou que fingiam uma austeridade inexistente para criar uma aura ameaçadora em torno de si. Não possuíam o verdadeiro talento de inspirar medo, terror, como aquele homem fazia naturalmente, sem precisar fingir ou usar de violência para tal. Até mesmo Kurt, que era um homem de poucos medos e receios, sentiu-se intimidado diante daquela figura que aparentava ser a materialização das sombras. E também viu-se fascinado por aquela habilidade do homem de canalizar medo tão facilmente. Se Kurt pudesse imaginar quem aquele homem seria, imaginaria que era o Obaten do Medo.

Oneiros — várias vozes murmuraram, inclusive a do Faraó. Kurt reconheceu o nome. Lembrou-se de que, quando se reuniram para discutirem sobre o plano de matar Annik, aquele nome também tinha sido citado várias vezes. Aquele homem era Oneiros, o Príncipe dos Sonhos. Kurt não apenas conhecia aquele nome como também conhecia seus feitos, apesar de que jamais havia se encontrado cara a cara com tal figura. E gostaria que as coisas tivessem continuado daquela forma.

— Também vejo que estão surpresos com a minha presença. Vocês estão certos em ficarem surpresos, já que eu não fui convidado. — E não apenas por aquele motivo. Oneiros não era um homem que gostava de aparecer publicamente. Vê-lo era sempre uma surpresa. E normalmente, uma surpresa ruim. — No entanto, quando soube das notícias, quis festejar, é claro. Afinal, é um bom dia para festejar. — Oneiros tomou um copo da mão de alguém e bebeu todo o seu conteúdo.

Ninguém lhe respondeu.

— Vão ficar silenciosos em minha presença? — ele instigou.

— S-s-senhor On-neiros... — começou o Faraó. Kurt nunca o tinha visto tão assustado, mas imaginou que essa seria sua reação. O Faraó nunca foi um homem corajoso, apenas fingia que era um para poder criar temor e intimidação sobre sua figura, e claro, para que todos o respeitassem como o Faraó que era. Mas o recém-chegado inspirava um medo real. Era um homem corajoso, e Kurt soube daquilo quando Oneiros jogou o copo que segurava na direção do Hasir, que se abaixou e por pouco não foi atingido na cabeça.

O corvo de Jan começou a crocitar irritantemente por causa do barulho. Jan tentou fazê-lo calar o bico, mas Oneiros também resolveu aquele problema: pegou a ave barulhenta e a esmagou com apenas uma mão. Sangue, tripas e penas explodiram em sua mão, mas Jan limitou-se a observar seu bichinho de estimação sendo arrebentado. Ele também não era tolo a ponto de questioná-lo, diferentemente do Faraó. Kurt, no entanto, sentiu que devia um agradecimento a Oneiros. Ele havia matado dois coelhos com uma cajadada só: havia calado aquele bicho insuportável e também o matado. A Rainha provavelmente ficaria satisfeita em saber que ele nem precisou pôr as mãos no corvo. No entanto, ela não ficaria feliz em saber sobre a aparição inesperada do Mestre dos Sonhos.

Vocês comemoram sem ter ideia do que está acontecendo! — Oneiros bradou, sua voz quase causando um terremoto de tão poderosa. — Não sabem o que Annik carregava consigo, não fazem ideia da IDIOTICE que fizeram!! — O homem respirou fundo e maneirou no tom de voz: — Annik carregava o Kra’vstanlas! Ela carregava uma menina sem nome! E VOCÊS A DEIXARAM ESCAPAR!! DEIXARAM-NA ESCAPAR E AGORA COMEMORAM SEM MOTIVOS!!! Vocês acharam que ela era a única ameaça que existia, mas existe outra e PIOR!! — era surpreendente o modo de como sua voz alcançava extremos em questão de segundos; ora calma, ora furiosa.

Ninguém ousou respondê-lo, provavelmente com medo de serem acertados por um copo assim como o Faraó, ou explodidos feito o corvo de Jan.

— Uma testemunha viu a menina, a Kra’vstanlas. Ela a viu em um dos locais onde vocês exercem influência! E vocês comemoram... — Oneiros disse a última frase com escárnio. — Você, Faraó, é um covarde. Quis que Annik fosse morta porque ela o traiu. Ah... mas é claro que ela o traiu! Um covarde como você, até eu teria traído. Todos vocês são covardes! Se juntaram a esse homem que só sabe se esconder atrás de sua pirâmide reluzente enquanto outros fazem o trabalho por ele! É por isso, Faraó, que eu não tomo partido na briguinha infantil de vocês. Eu nem sei por que eu vim aqui, para ser sincero. Eu realmente quis ajudá-lo, Faraó, achei que você estivesse mais sensato, mas vejo que eu me enganei. Me arrependi de ter lhe dado informações a respeito de Annik, ou melhor, da menina que ela carregava consigo. Vejo que você realmente não cresceu nada quando se trata de sensatez e responsabilidade. Ao invés de ter garantido que todos saíssem mortos, deixaram uma sobrevivente, e ainda comemoram! — Ele balançou com a cabeça numa indicação de desaprovação. — Ah, e antes de eu ir embora, devo dizer que Annik era muito mais corajosa que você. Que todos vocês, na verdade. Ela pode não ser a pessoa mais amigável do mundo, mas às vezes, Hasir, eu gostaria de vê-la arrancando sua cabeça. Ah, como eu gostaria...

E Oneiros foi engolido pelo chão. Kurt tomou um susto com aquela saída ainda mais inesperada que a entrada, mas vindo daquele homem que ouvira falar tanto quanto Annik, tudo era possível, imaginava. Por outro lado, os outros convidados não aparentaram assombro; se tomaram susto, não deixaram transparecer. O Faraó nem mesmo prestou atenção na cena. Contudo, aquilo era compreensível; depois de receber um jorro de informações daqueles, a última coisa em que estaria pensando era na saída triunfal de Oneiros.

Ninguém mais falou nada. Nem mesmo o Faraó, taxado de covarde, ousou retrucá-lo ou desafiá-lo. Ele estava trêmulo e descrente no que havia acontecido. Ele até mesmo suava frio e estava vermelho de nervosismo. Kurt, entretanto, também não estava muito calmo. Aquele homem era o conceito vivo de ameaça. Não pôde deixar de sentir um arrepio na espinha e, claro, uma admiração pela coragem e pela atmosfera de sombras daquele homem. Também não pôde deixar de sentir desprezo pelo Faraó. Como um homem daqueles poderia ser um líder? Um homem que, no fundo, temia e acovardava-se na primeira oportunidade? O próprio Faraó, naquela ocasião, também se acovardou. Ele levantou-se, trêmulo, e anunciou, num estado de nervosismo fora do comum:

— Senhoras e senhores, agradeço pela presença, mas... mas a festa acabou! — E saiu do salão sendo seguido apenas pelos olhares indecifráveis dos convidados, que, como se estivessem enfeitiçados pelo medo, não ousavam emitir um som sequer.


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