Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 40
XXXVI - Sal & Sangue




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/653186/chapter/40

XXXVI

Sal & Sangue


O deserto de sal parecia um caminho imaculado. A branquidão se estendendo por quilômetros de quilômetros de distância fazia com que parecessem andar sobre os céus, numa estrada para o Paraíso. Porém, a verdade era exatamente o contrário. Iam descendo ao Inferno mais e mais, e aquele lugar, por mais paradisíaco que parecesse, estava mais para um Purgatório.

Ao longe, beeeem no fim do horizonte, algo então quebrou a homogeneidade do sal. Erguia-se tímido, mas se deslocava da visão branca do deserto.

A Menina era a única que parecia ter noção da existência daquilo, seja lá o que fosse, mas Annik parecia não perceber o que havia mais à frente. Certamente ela notara aquilo, pensava a Menina, mas não acreditava que fosse algo com o qual se preocupar, por isso não demonstrou reação alguma, a não ser com a inquietação de Alice, que ora erguia a cabeça, ora a abaixava.

— Por que você está agindo assim? — a atitude da Menina parecia tê-la incomodado devido à quase rispidez de sua fala.

— Assim como?

— Não fica quieta por um segundo.

— Eu só tô olhando o que tem ali na frente.

— Onde?

— Ali. — A Menina apontou para a coisa que se aproximava cada vez mais enquanto Annik apertava os olhos para ver melhor. E daquela vez, junto com a revelação de que não era uma coisa, mas duas, bem distantes e pequenas como formigas.

— Ah. Aquilo — ela disse numa calma que dava a entender que aquelas coisas eram normais, levianas, ordinárias. E talvez fossem, para Annik agir daquele jeito. Annik não era uma pessoa de errar em suas deduções, e a Menina confiava nela. Mas se tinha algo em que Alice confiava mais que Annik era em sua leitura de mundo, e sua leitura não era falha. Nunca tinha sido.

— Você sabe o que é?

Ela ergueu os olhos para observar de novo. Ela não iria querer falar qualquer besteira, então reavaliar o que estava à sua frente era importante.

— Provavelmente só algumas pessoas que estão vagando para algum lugar.

— Você tem certeza?

— Não — ela pareceu um pouco relutante em dizer isso, como se não ter certeza daquilo fosse um demérito. — Mas vamos passar por ali em breve e saberemos quem são.

Annik estava certa ou quase isso de que não havia nada ali. Por que haveria de ter, afinal? Porém, a Menina não estava tão certa. Não gostava de ver pessoas vagando num deserto além delas próprias. Pelo pouco tempo que estivera ali, aprendera que: a) não deveria confiar em ninguém além de Annik; b) pessoas significavam mais problemas do que soluções. Sem falar que sentia... algo. Não sabia o quê, mas sabia que lhe deixava extremamente desconfortável. Um mau-pressentimento, talvez.

— Não me sinto bem com isso — disse.

— Não precisa se preocupar com isso. Mesmo se acontecer algo, não vou deixar que nada aconteça com você.

— Isso não é suficiente. A sensação que eu tenho... nem você pode evitar, entende? É como se... — Procurou as palavras para descrever o que sentia, mas nem mesmo ela tinha certeza do que sentia —... se o que quer que esteja pra acontecer fosse inevitável.

— Você diz que uma forma muito certa sobre isso que está para acontecer. Como você sabe que isso realmente vai acontecer?

— Eu... é muito forte... Eu sinto que vai acontecer. Vamos esperar. Vamos esperar até que... que eles vão embora.

— Nós não podemos esperar o dia todo. Se esperarmos tempo demais, a Organização vai nos alcançar.

— E se eles forem da Organização?

— Impossível. A Organização não seria estúpida de enviar apenas duas pessoas contra nós. Eles sabem que são necessárias mais pessoas para acabar conosco, e que duas pessoas apenas não dariam conta disso. É impossível que seja pessoas da Organização ou afiliadas a ela. Os membros mais poderosos da Organização vivem na Pirâmide do Faraó e jamais conseguiriam chegar a tempo até onde estamos. Fique tranquila: mesmo se eles forem idiotas o suficiente para nos atacar, não irão durar muito tempo.

Mesmo assim, aquilo não foi capaz de tranquilizar a Menina. Aquela sensação era como asma; ia crescendo, impedindo sua respiração, a Menina entrava em desespero dentro de sua mente, corria aos prantos internamente, sua mente ofegava. No entanto, em seu exterior, Alice apenas acatara com Annik num menear de cabeça e seguia aparentemente tranquila a viagem, observando o deserto de sal ao longe e imaginando até quando aquela visão monocromática, branco de sal e negro de asfalto, iria durar.

Os momentos seguintes foram desprovidos de som, ou pelo menos foi o que Alice pensou. Ela, no seu desespero interno, só conseguia pensar no que ocorria dentro da sua cabeça. Não ouviu o barulho do motor do carro, das rodas deslizando pelo asfalto ou até mesmo o som da própria respiração. Aqueles momentos abafados e arrastados que pareciam ocorrer quando o clima ficava quente — quase insuportável — e quando a situação ficava perigosa voltavam a aparecer.

Já para Annik, tudo permanecia normal, apesar de que o incômodo da Menina com aquelas figuras ao longe também começava a afetá-la. Será que havia algo de mais naquilo? Só saberia quando se aproximasse. Embora aquilo a desagradasse, agora de forma tão grande quanto à Menina, não poderia se dar ao luxo de esperá-los ir embora. Tinha de manter o pé apertado no acelerador e continuar seguindo.


O carro ia deslizando de forma rápida e lenta ao mesmo tempo. Rápida porque a velocidade do carro ainda era alta, mas lenta pois parecia que cada segundo durava horas. Na verdade, naquele mundo as coisas sempre pareciam decorrer daquela maneira. Noites duravam dias, dias duravam uma eternidade.

A cada vez que a Menina pensava nisso, mais certa ela ficava de que a ideia de ir embora dali era uma tolice. Sua atitude mais inteligente desde que chegara ali fora ter escolhido ficar e ter acolhido o Deserto como sua única casa. Seria mais inteligente se Alice também pusesse em sua cabeça o fato de que nada durava para sempre. Tudo tinha um fim, era o que Annik tinha dito, mas aquelas palavras eram dolorosas e, se enfiadas à força, machucariam sua mente. Estava esperando um momento mais propício, um momento em que sua cabeça suportasse aguentar as pontas afiadas daquelas palavras para que não se cortasse com elas.

Estavam bem próximas das duas figuras. Alice pôde observá-las: um homem e uma mulher. Porém, diferente do que Annik pensava, eles não pareciam meros loucos vagando pelo deserto ou nômades quaisquer. O olhar que exibiam era seco, mas não secos como o de Annik. Os olhos de Annik eram um deserto, de solo rachado, sol escaldante, falta d’água e de pessoas; os deles eram um deserto diferente: eram um deserto pós-apocalíptico, as árvores retorcidas, a destruição exalando, sendo exibida a cada canto, cada destroço, cada ruína. Os olhos de Annik eram secos pois nunca tiveram nada com o que se hidratar; os deles eram secos porque tudo o que tinham para saciar a sede tinha sido destruído.

— Annik, eu não tô gostando do jeito que eles tão olhando pra gente — comentou a Menina.

Annik olhou para a esquerda. Estavam passando bem ao lado deles. Finalmente percebendo que de fato havia algo errado naquele pessoal, o piscar de olhos de Annik pareceu vacilar por um segundo, assim como seu virar de cabeça.

No entanto, já era tarde demais. Assim que Annik pôde vê-los, o homem havia empunhado uma pistola e atirou duas vezes. Não acertou nenhuma das duas que estavam dentro do carro, mas acertou justamente o carro. Mais exatamente, acertou os dois pneus esquerdos. Annik apenas ouviu-os esvaziarem e o barulho irritante da calota contra o asfalto, mas a princípio, não percebeu muita diferença na dirigibilidade. Só conseguiu medir o tamanho do estrago que o homem tinha feito ao realizar uma curva.

— Alice, se segure — Annik avisou entre os dentes cerrados. Nem mesmo viu se a Menina havia-a obedecido. Concentrada em manter o carro estável, segurou tão firmemente o volante que as veias de suas mãos se ressaltaram. Seu rosto se fechou enquanto ela tentava realizar a curva e ao mesmo tempo manter o carro na estrada, mas aquilo não iria dar certo. Só via duas alternativas: ou o carro sairia da estrada ou ele iria capotar.

Tentou manter o carro estável o suficiente para que ele apenas saísse da estrada, mas aquilo era mais difícil do que pensava.

— Alice, se segure com mais força do que antes. — Pôde ver de canto de olho a Menina assentindo, assustada, e se segurando onde podia. E também pôde ver de frente o descontrole iminente do carro.

O carro girou e girou e girou e girou. Annik soube o que deveria fazer. Era como se aquilo já estivesse premeditado em sua mente. Assim que o carro parou de cabeça para baixo no asfalto, ela não perdeu um segundo. Em alguns casos, a adrenalina tomava conta de si, mas naquele, a razão a dominou. Ainda estava extremamente calma e minuciosa, e foi graças àquilo que ela soube os exatos passos a se tomar. No entanto, a Menina ainda estava em choque, observando o que há um segundo estava sobre a sua cabeça. Olhava o teto do carro como se visse a paisagem pela janela.

Alice viu Annik quebrando o vidro e saindo debaixo do carro através dele, mas ela não fazia ideia do que fazer. Sentia-se de algum modo presa e incapaz de fazer qualquer coisa para sair dali. Primeiro que tudo aquilo não era esperado. Quando tinha ouvido os primeiros tiros, ficara em pânico, mas tinha achado que Annik iria controlar bem a situação. Não podia dizer que tinha se decepcionado com ela, mas o que acontecera não tinha sido bem o que esperava. Esperava que ela ao menos conseguisse efetuar a curva com sucesso e parar o carro em algum lugar para trocar os pneus, mas parecia que as habilidades de Annik eram melhores com uma arma na mão do que com um volante.

Algo partiu o seu vidro. Crec! Annik lhe deu a mão e a ajudou a sair de dentro do carro. Ela parecia preparada para uma guerra, estava com seu bastão de baseball na mão; foi provavelmente daquele jeito que ela quebrara o vidro.

— Segure isto — Ela entregou o bastão para a Menina, que se surpreendeu com o peso da coisa. Imaginava que era mais leve. Annik o segurava com uma facilidade impressionante, era como se segurasse uma pluma — e saia o mais rápido possível de perto do carro — ela continuou. — Pelo cheiro da fumaça, imagino que ele vá explodir.

Alice apenas assentiu, sem saber o que fazer. Cheiro de fumaça? Nem mesmo tinha percebido. Até o peso do bastão pareceu desaparecer de suas mãos, e então parecia não segurar nada. E de fato não estava segurando nada. Annik saiu correndo e carregou seu bastão junto, mas para onde ela estava indo? Nem mesmo se perguntou aquilo. Até se esqueceu do carro, meu Deus, o carro! O cheiro de fumaça finalmente se tornou nítido para a Menina, que correu o mais rápido dali, tentando seguir Annik.

Não conseguiu ver muita coisa dos rastros dela. Uma tempestade de areia — ou melhor, de sal — parecia se formar. Era como uma tempestade de neve, mas os flocos não saciavam a sede; na verdade, agravavam-na. Tudo se tornou branco, até o céu era branco de sal, e Alice corria para lugar nenhum. Já não sabia onde estava o carro, onde estava Annik, onde era leste ou oeste, apenas corria, esperando trombar em Annik, e apenas em Annik. Se encontrasse-se com aquele pessoal esquisito que olhava com cara de poucos amigos para elas, era bem capaz de que coisas piores pudessem acontecer.

Seus sentimentos eram inexistentes. Estava num estado de apatia extrema, quase hipnótico. Via, mas não via; ouvia, mas não ouvia; sentia, mas não sentia. Seus sentidos existiam, mas eram ignorados por causa do pânico.

O sal rodopiante a incomodava. Entrava em seus olhos e os fazia lacrimejar e nas suas narinas, fazendo-a querer espirrar. Retirou o sobretudo e o enrolou sobre sua cabeça para evitar aquilo, deixando apenas um pequeno espaço para os olhos, para que pudesse enxergar.

E então correu.


E Annik também correu.

Contudo, ela não corria a esmo que nem a Menina, ela corria atrás de algo, de alguém. À sua frente, também corria o homem que havia atirado contra os pneus do carro. Estava bastante distante, mas os olhos distantes de Annik conseguiam alcançá-lo mais depressa que suas pernas.

Ele corria para fugir, Annik corria para alcançar e a Menina corria para fazer as duas coisas e nenhuma.

O homem sabia que Annik estava em seu encalço. Ela tinha-o pego olhando para trás algumas vezes. Sabendo que ela estava atrás dele, ele começou a atirar, mas ainda estavam muito distantes um do outro para que ele acertasse algum tiro. Os tiros nem mesmo passaram de raspão, Annik conseguia vê-los atingindo o sal a metros de distância dela. Ele definitivamente não era nenhum ás com armas de fogo, por errar de forma tão grosseira. Ela sabia que, se estivesse no lugar dele, dificilmente iria acertar aquele tiro, mas não iria errar por metros. Iria ser por centímetros. Seus olhos eram bastante aguçados para mirar, e suas mãos eram muito estáveis para atirar. Estava com sua pistola escondida na calça, mas aquele não era o momento de atirar. Ele estava longe demais e, se ela se arriscasse a fazê-lo, poderia perdê-lo de vista em meio àquela tempestade.

Aliás, aquela tempestade era outra coisa estranha no meio daquilo tudo. Nunca tinha ouvido falar de tempestades no deserto de sal, nem mesmo tinha vivenciado alguma nas outras vezes que cruzara aquele local, mas justamente daquela vez em que tinha sido atacada por dois estranhos — não se esquecera da mulher que estava com ele —, aquilo tinha acontecido. Se era coincidência, mau presságio ou algo proposital, não sabia, mas algo lhe apontava que era o último. Coincidências não existiam, assim como maus presságios. Tudo havia um propósito.

Mas não é o momento certo para pensar nisso. Não é o momento certo, não é o momento certo. Agora é correr. Correr. Apague a mente. Ela vai retardá-la. Foque apenas em estar atrás dele. Apenas nisso e em nada mais. Apague o resto, apague o carro explodido, apague Alice, ela está bem, apague-a...

Mas era difícil apagá-la da cabeça. A preocupação era muito grande, o medo também, o coração batia mais forte quando imaginava que algo poderia estar ameaçando Alice. E se aquela mulher que estava acompanhando o rapaz estivesse atrás da Menina naquele momento? Annik se desesperou e acabou se desconcentrando mais do que deveria. O pânico tomou conta de si mesma. Algo que ela própria considerava inadmissível. Os sentimentos devem sempre ficar longe... mas ela não tinha sentimentos, tinha? Todos eles tinham sido arrancados à força havia muito tempo, mas agora... agora eles pareciam voltar com força. Não, não podia ser. Aquilo era tudo uma ilusão. Suas emoções haviam sido esmagadas com um martelo enorme, depois trituradas e, ao virarem pó, jogadas ao vento como as areias do Saar. Se houvesse algum resquício delas dentro de si, elas seriam chamas breves de velas, que logo, logo, seriam apagadas pelo vento, pelo sarlik.

Pensar naquilo apenas a fez vacilar mais e mais e, quando se deu conta, já tinha perdido o homem de vista. Perdera-o quando se perdera dentro de sua própria mente, de seu próprio vazio.

Algo fez o coração de Annik dar um salto ainda maior. Uma súbita chave de braço ao redor de seu pescoço a deixou alerta de novo. Era o homem, tinha certeza, podia ouvi-lo grunhir atrás de si. Ele tinha se escondido em meio à tempestade e, quando ela o perdeu de vista, ele aproveitou para atacá-la. Ele usou exatamente o momento em que Annik estava mais vulnerável. Parecia até algo premeditado, de tão oportuno para o seu oponente.

Annik tentou atacá-lo com cotoveladas em sua barriga, mas todas elas eram pouco efetivas e não o machucavam de verdade. Por sua vez, ele agora a sufocava com sua chave de braço. Annik já imaginava que deveria estar azul por causa da falta de ar. Aquilo não iria adiantar. Quanto mais lutasse contra o golpe dele, mais iria ser afetada. Deveria pensar em algo que nem ele mesmo imaginava. Então o levou ao chão. Demandou mais força do que imaginava, mas o homem caiu e a largou, deixando-a livre para atacá-lo. Puxou o revólver, mas ele tinha sido mais rápido e também apontava sua arma para Annik, que agora estava em xeque.

No entanto, o tabuleiro não estava vazio. Alice, que a tudo observava, também havia puxado seu revólver e mirava no homem, mas ele estava muito, muito longe. Havia, sim, alguma chance de acertá-lo, mas as chances de que erraria eram maiores. Se errasse, ele iria atirar em Annik, ela estava certa disso, mas se acertasse, seria a deixa de que Annik precisaria para matá-lo e acabar com aquela palhaçada. Parecia fácil, e de fato as probabilidades deixavam tudo mais simples do que realmente era. Porém, ainda tinha a desvantagem do medo — que já tinha avançado para um estado de pânico —, da falta de prática que a Menina tinha com armas de fogo, sua tremedeira e o calor intenso daquele sobretudo enrolado na sua cara, que também pinicava.

As probabilidades caso nem mesmo atirasse também não eram animadoras. Se isso acontecesse, se ela mantivesse a bala dentro do tambor da pistola, Alice iria assinar a sentença de morte de Annik. Na verdade, a sentença de morte parecia já ter sido assinada; a Menina seria a responsável de rasgá-la ao meio com seu tiro.

Sua única saída estava em atirar. Por mais que as probabilidades de acertar fossem mínimas, havia uma chance. Caso não atirasse, não havia nada.

Pousou sua arma bem sobre a silhueta do homem, que parecia balbuciar algo com Annik.

— Você sentiu o medo, eh? — ele disse de modo sarcástico.

A Menina procurou se concentrar. Olhou de modo fixo, calmo e minucioso para ele e, como se fosse um circuito elétrico, desligou as chaves dos seus quatro sentidos, deixando apenas a visão acesa.

— Eu sei... — Annik ofegou —... quem é você. Obaten David... Traidor desgraçado... Veio aqui controlar minha mente, é isso?

O dedo da Menina agora repousava imóvel sobre o gatilho. A sua visão era microscópica. Parecia ver tudo com detalhes. Via-os como se eles estivessem a alguns passos de distância da Menina. Via-os como se seus olhos fossem a luneta de um sniper rifle.

— Acho que posso terminar este serviço sem precisar me valer de muito esforço mental. —Ele deu um risinho. — Nem mesmo precisei revelar meu truque. Que pena. — Ele segurou a arma mais firmemente.

A Menina não esperou nem um milésimo de milésimo a mais. Atirou.

Ouviu-se um grito.

A pistola do rapaz tinha sido atirada longe com um tiro tão certeiro em sua mão que perfurou exatamente o centro de sua palma. Ele agora urrava de dor e susto, e Annik não perdeu tempo: atacou-o com golpes na cabeça usando a coronha de seu revólver. Depois, pegou seu bastão de baseball e continuou a atacá-lo.

Um golpe, dois, três, quatro... Estaria perdendo o controle? Não podia perder o controle. Se começasse a sentir prazer pela coisa, iria perdê-lo, com certeza. O que Alice iria pensar ao ver que tinha perdido as rédeas sobre si mesma mais uma vez? Tinha medo de que ela voltasse a vê-la como uma ameaça. Uma ameaça, é o que ela sempre fora e sempre seria. Então por que a ideia de que Alice pudesse vê-la daquela forma lhe era tão desagradável.

Está com medo, não está? — uma voz feminina muito bonita e sedutora, mas com retoques de luxúria e maleficência surgiu. Parecia ter surgido de fora e se alastrado pelo deserto, mas algo lhe dizia que aquela voz estava dentro de sua mente. Lembrou-se da mulher que estava com o Obaten David e associou-a àquela voz e àquela frase. Não havia dúvidas de quem era. A Princesa do Medo, Miranda, e Annik tremeu. Outra traidora. Tinha ouvido algumas coisas sobre ela, e todas a faziam arrepiar. Ela não era como David, uma reles traidora. David era um oportunista, era o que diziam, mas Miranda possuía interesses muito mais obscuros. Talvez ela sempre tivesse sido meio obscura, afinal, desde a época dos Mestres, só necessitava do momento certo para virar a casaca.

Aquele plano tinha sido muito, muito bem executado. Annik sentiu o seu corpo gelar. Pôde sentir o suor frio debaixo das camadas de roupa. Sentiu uma gotinha de suor gelado descendo pela sua têmpora. Aquele suor não era proveniente de esforço, apenas, mas também vinha do medo. Sabia que aquela tempestade não era natural, nem o modo de como o homem agira ao atacá-la no momento oportuno. Aqueles pensamentos de pavor também não nasceram sozinhos. E agora temia verdadeiramente por si mesma e por Alice. Eles tinham explorado fraquezas muito íntimas e perigosas: o reino do medo. Seu coração estava agitado demais para o seu gosto, seus membros respondiam de modo falho, sentia que algo parecia apertar-lhe a garganta e o peito e o queixo tremia, os dentes batendo uns nos outros dentro de sua boca. Engoliu saliva como se bebesse água para tentar disfarçar de si mesma aquela sensação de pânico, de fraqueza.

— Eu sei que é você — Annik respondeu quase que para si mesma, de tão baixo que havia falado. — Eu sei seu truque agora, eu não devo ter nada a temer.

Você não deve, mas ainda assim, teme. — Era verdade. Como tinha imaginado que iria enganá-la usando aquele blefe barato? Ela conseguia ler seus medos do mesmo modo que qualquer um poderia ler kayrnva. Aquilo tinha sido quase como mentir para si mesma, com o intuito de poder acreditar na própria mentira e se sentir mais confiante. Mas mentiras dificilmente vencem algo, e quando vencem, logo sofrem com a vingança da verdade. — Eu sei que tem medo de perder o controle. É claro que teria. Ela não iria observá-la do mesmo modo, e eu sei que você teme isso. Eu percebi como você reagiu ao imaginá-la em perigo. Aliás... onde ela está agora?


...

A respiração falhou por alguns momentos. O olho se estatelou. A boca estava aberta em surpresa.

...

Não. Pode. Ser.


ALICE!!!


Annik largou o seu alvo, já bastante machucado, e correu pelo deserto de sal, gritando pela Menina. Estava ouvindo as batidas de seu coração. Imaginava o pior. Alice poderia ter se ferido na explosão do carro, poderia ter morrido na explosão, poderia ter sido assassinada por David ou...

Olhe para trás — a voz da Princesa surgiu novamente.


Oh não.


Annik então percebeu tudo. Tudo aquilo era uma armadilha. Uma maldita armadilha muito bem feita e ainda melhor executada. A surpresa inicial de ter sido atacada por Obatenva, a exploração dos medos para afetá-la e agora... agora aquilo. Tinha medo de se virar e... e ver... e ver o seu próprio fracasso.

Virou-se bastante devagar, mas já sabia o que esperar. Miranda estava por trás de Alice, que estava com o rosto coberto com o sobretudo que Annik tinha lhe dado. A Princesa tinha uma faca bem curta apontando para o pescoço da Menina, mas podia-se notar que, apesar do tamanho, era extremamente afiada. Alice nada dizia, mas sua respiração era entrecortada, e seus olhos, visíveis apenas por uma fina abertura no capuz improvisado, eram de puro terror.

— Você caiu direitinho... — a voz de Miranda era meiga e psicopata ao mesmo tempo, mas agora não mais preenchia todo o ambiente como antes. — Foi tão fácil capturar sua menina enquanto você estava corroída pelo medo... — Seu sorriso ia de ponta a ponta, como se a Menina fosse um troféu a ser obtido e Annik uma adversária a ser vencida. E pensando bem, era exatamente aquilo. Quando Annik já estivesse morta, eles iriam usar Alice como um troféu. “Veja o que conseguimos ao matar a Assassina!”, eles iriam bradar em seus banquetes canibais. — Ela estava louca correndo atrás de você depois que acertou o pobre David. Tudo o que eu precisei fazer foi correr atrás dela, atacá-la e desarmá-la e agora ameaçá-la. — Miranda olhou para a Menina com um interesse tão nojento que Annik se sentiu nauseada. — Como será o kayrn dela, hein? Imagino que deve ser um bem bonito porque ela tem olhos muito bonitos. — Virou-se para Annik novamente. — Ela tem olhos parecidos com os seus, inclusive. É uma pena, no entanto, que, mesmo com olhares tão bonitos, tenham um fim como este. — Riu delicada e maldosamente. — Agora vamos ver o seu rosto, sim... Quero que Annik veja seu medo. — E riu de novo, ainda mais cruel, enquanto movia sua mão para remover o sobretudo do rosto de Alice e apertando ainda mais a faca em seu pescoço. Annik viu um filete de sangue escorrer.

Aquilo era demais. Eles não iriam levar Alice dali, nem que aquilo custasse sua vida desgraçada. Ver Miranda carregando a Menina para longe, observando-a com aquele olhar repugnante e a machucando era a sensação mais dolorosa que já tinha sentido. Sentia-se impotente. Sentia-se com mais raiva do que quando perdia o controle. Tinha prometido que não iria deixar que ninguém a machucasse. Ver aquilo a fazia querer chorar.

Sua arma ainda estava em sua mão, mas havia se esquecido dela. O medo a fizera se esquecer de seus sentidos, e agora a raiva os intensificava. Levantou a arma e, sem mirar, atirou. Foi tão rápido que a Princesa nem mesmo percebera o movimento brusco de Annik, nem mesmo teve tempo de tirar o sobretudo da cabeça da Menina, e tão rápido que ela só o percebeu quando sua mão esquerda largou a faca ao ser atingida. Ela berrou, mas seu grito dela era música aos ouvidos de Annik. Alice correra para perto de Annik, mas ela não estava nem aí para a Menina naquele momento. Só queria o sofrimento daquela filha da puta desgraçada que havia explorado seus mais profundos medos e os usado contra ela própria. Apontou a arma para a cara nojenta dela, que se contorcia e exprimia caretas de dor, e atirou, atirou, atirou, atirou e atirou.

Quando atirou pela quinta e última vez, achou que fosse sentir prazer, um sentimento de alívio ou de completude, mas apenas sentiu um vazio que sabia que jamais seria preenchido através de qualquer violência. Aquele tipo de ódio a enganava, era uma compulsão, era um vício. Um vício não por uma substância, por produtos ou por prazer carnal, mas por ódio. Um vício em sentir-se selvagem, em sentir o ódio correndo pelo seu corpo e queimando-o feito lava.

Olhou para a Menina ao seu lado. Ela olhava o corpo cheio de marcas de bala e sangrando com a mesma apatia que Annik. Imaginava se ela via aquilo como se fosse sua inegável derrota, como uma decepção que era de se esperar, ou se ela via aquilo com naturalidade. Não sabia. Alice, por vezes, era muito difícil de se ler. A única certeza que tinha era de seu arrependimento. A Menina lhe transmitia um sentimento quase perto do de satisfação, mas não era exatamente isso que procurava. Não tinha a sensação grandiosa e prazerosa que tanto procurava, que lhe enchia os olhos de sabe-se-lá-o-quê. Era uma completude calma, silenciosa, tranquila, mas que, da mesma forma que o que ela procurava, fazia-a se sentir bem e confortável.

— Não pense que tudo acabou — a voz do homem surgiu atrás de si. Mais uma vez, sentiu-se idiota e fracassada. Havia-o esquecido e lhe dado uma brecha para atacar. — Pelo contrário, você apenas me deu mais uma vantagem, hehe...

E então, sua mente pareceu incontrolável, mas não do mesmo modo que anteriormente. Antes, ela não conseguia parar ações que ela mesma começara, mas agora, seus pensamentos simplesmente surgiam, e como eles doíam... Doíam tanto que jogou sua arma longe antes que o sofrimento a fizesse tomar medidas suicidas. Sabia que, em momentos de dores excruciantes, às vezes o melhor alívio era a morte. Já tinha visto aquilo incontáveis outras vezes, quando ainda fazia parte da Legião. Tinha visto camaradas de batalha implorarem por um golpe de misericórdia após terem membros decepados ou dilacerados ou ossos fraturados de maneiras insuportavelmente dolorosas.

Viu memórias que nem mesmo existiam, memórias de possibilidades de futuros distantes, mas todos eles horrendos. Definitivamente horríveis. Nem mesmo o seu kra’vstan, tão pesado e doloroso, poderia ser comparado à dor que aquelas imagens, cores, vozes, canções, cheiros e sons produziam.

Viu seus antigos companheiros estendendo mãos decepadas em busca de clemência. Viu pilhas de corpos sendo queimadas, tanto corpos de amigos quanto de inimigos. Viu Adam e o maldito dia em que atirara nele. Aquela memória, particularmente, foi a que mais doeu. Viu o dia em que finalmente dormira, o dia em que tudo lhe fora apagado, destroçado e espalhado pelo Deserto. Viu também cenas recentes, como o dia em que invadira a Universidade e vira sua mentora cuspindo verdades sobre si mesma. Vira também Alice sendo ferida por homens da Organização, e essa memória foi outra que doeu bastante. Outras memórias de possibilidades de futuros também envolveram a Menina, muitas delas horrendas. Via-a sendo usada na Organização, via-a sendo servida de banquete, os membros decepados e cozidos como churrasco e o sangue bebido como refrigerante.

As memórias pararam e no breve momento de lucidez que surgiu. Vendo-se desarmada, Annik pegou a primeira arma que viu, a faca de Miranda no chão, e partiu para cima de David, que também lutava contra a dor dos golpes que sofrera anteriormente. Mesmo com dor, ele conseguiu pegá-la pelo pescoço e usando o que parecia toda sua força. O ar de Annik reduzia enquanto os pensamentos cruéis cresciam.

Ouviu um tiro. Era Alice, mas então a ouviu gritar de pânico. Não..., apenas pôde pensar, por favor, não a machuque... Ele deveria estar controlando Alice também. Ela poderia ser a Kra’vstanlas, mas a mente dela ainda era fraca, fácil de ser controlada, principalmente pelo Mestre da Mente. Conseguia imaginar o que a Menina poderia estar vendo, tanto do passado quanto do futuro. O momento em que matou pela primeira vez, em que tinha visto Annik torturar alguém, os momentos em que tinha-a visto transformar-se em Vaerteyn, seu alter-ego demoníaco, quando pensou na irreparabilidade de Annik e que ela seria assim, para sempre, quando tiveram conversas sobre o que cada uma sentia. Já do futuro, via Annik morta de todas as formas possíveis e a solidão posterior. A eterna solidão.

Sentiu uma lágrima escorrendo de seus olhos e algo escorria de seu nariz. Devia ser sangue. Seus pensamentos doíam tanto...! Era uma dor pior de quando Alice havia invadido sua mente, infinitas vezes pior. Infinitas vezes infinito. Tinha vontade de gritar, mas sentia-se cada vez menos no controle de si mesma para fazê-lo. É isso. É o fim. Dali, não havia escapatória além da morte.

Mas nos poucos, pouquíssimos momentos de controle que tinha sobre si mesma, Annik usou todo seu esforço para levantar seu braço direito e, já com a vista escurecendo, enfiou a faca de Miranda na garganta de David.


E sua mente apagou-se por completo.


Sangue jorrou da ferida, mas ele não gritou. Ele largou Annik, que caiu como se fosse uma gelatina no chão, e começou a cambalear, tentando de todo modo impedir o sangue de jorrar. Era inútil. Aquilo apenas encharcava sua mão e não parava de jorrar um instante sequer. Em poucos segundos, ele já estava morto, estirado sobre o chão do deserto e com sangue ainda escorrendo, agora bem menos.

Alice conseguiu recobrar a consciência e parar de gritar. Os pensamentos que tinha visto... doíam. A maioria deles era relacionada a Annik, e assim o eram porque ela era a única coisa que tinha e se a perdesse, não teria nada, nem mesmo a si mesma. Tinha-a visto morta, seriamente machucada, incapaz, entre outras... barbaridades que nem mesmo gostaria de imaginar. Via-a em momentos dolorosos, física ou mentalmente, e vê-la daquela forma também lhe causava dor. Momentos que tinham acontecido e outros que Alice jamais gostaria que acontecessem, jamais gostaria que tivessem entrado na sua cabeça. Alguns poucos pensamentos que não continham Annik ainda assim envolviam-na indiretamente. A solidão, a falta de Annik. Imaginava o que iria fazer no deserto sem ela. Vagaria para sempre sozinha numa terra hostil e inóspita e sem a possibilidade de dormir como o povo que lá residia fazia, como Annik tinha feito.

Olhou para o lado, mas viu apenas três corpos, entre eles o de Annik e seu bastão de baseball caído ao lado, e correu para ajudá-la a se levantar. Tinha-a visto atacar o homem com a faca da mulher que a ameaçara, mas ela deveria estar mentalmente abalada depois de tudo aquilo.

— Annik, vamos, vamos embora, já acabou tudo isso, levanta! — A Menina ajoelhou-se ao lado de Annik, mas ela estava imóvel. Ela deveria estar desacordada, apenas. Não podia estar morta. Não, não podia. Ela não poderia... Não... Não tão fácil assim, certo? ...Certo...? — Annik...? Por favor, vamos... — Pôs a cabeça dela sobre suas pernas e começou a bater levemente em seu rosto. — Não... — sua voz se embargou. Não. Sentiu as lágrimas escorrerem antes mesmo de sua mente se dar conta do que acontecera. Não... Por favor não... Por favor... As lágrimas se intensificavam. Alice segurava o rosto de Annik com tanto cuidado que ele parecia ser uma enorme pedra preciosa. Ela reclinou-se sobre o rosto dela como que se para beijar sua testa, mas apenas chorava e murmurava. — Não, não, não,

não, não, não,

nããão...


Não...


Seus pensamentos haviam se tornado realidade. Os mesmos pensamentos que o homem havia-a forçado a assistir. Por quê? Lembrou-se da conversa que tiveram anteriormente. Tudo tem um fim. Parecia que ela sabia. Ela tinha prometido, prometido que não iria deixá-la, que não iria deixar nada machucá-la, mas ela descumpriu as duas promessas, por quê?! Não faça promessas que você não possa cumprir. Via apenas a solidão agora. Seus pensamentos tornaram-se verdadeiros. Durante todos aqueles tempos, imaginava que o deserto era sua casa, mas estava errada. Não havia por que continuar naquele Mundo agora. Annik era a única coisa que tinha tido, e agora não tinha mais nada. Durante todo aqueles tempos, Annik fora sua casa, mas agora tinha sido despejada e não havia outra casa para ela. Ela também tinha prometido levá-la de volta para casa e tinha cumprido aquela promessa, mas depois tinha sido mandada embora do único lar que tivera. O que restava agora? Não via mais futuro para si. Cada segundo ali que gastava chorando e soluçando sobre o corpo de Annik eram segundos de uma vida inexistente, que fora findada ali. A vida da Menina Sem Nome acabou quando a vida de Annik acabou.

Soluçava sem parar. Mesmo tentando controlar seus soluços, eles não a obedeciam e teimavam em vir. As lágrimas escorriam sobre o rosto de Annik e caíam no sal. Lágrimas salgadas sobre o deserto de sal. O sangue que escorria do nariz de Annik também ia encontrando seu caminho em meio às lágrimas, ao suor e ao sal. Ele pingou no chão e foi tingindo aquele pequeno local onde tocara de vermelho, para então se acomodar em meio aos grãos de sal, juntamente com as lágrimas. E uma floresta de lágrimas, suor e sangue se enraizava no solo salubre e no clima árido do Deserto.

Ao longe, um corvo crocitou longamente uma nota que pareceu à Menina ser de lamento.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Entropia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.