Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 39
XXXV - Mortalidade




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XXXV

Mortalidade


— Por que o deserto aqui é branco? — a Menina perguntou enquanto olhava pela janela.

Já era manhã de novo, mas pela primeira vez Alice não ficou feliz por aquilo. O sol refletia a brancura daquele deserto branco e machucava seus olhos. Parecia que o clima e a passagem dos dias naquele mundo pareciam ser contra ela, só podia ser.

— Porque estamos no deserto de sal — respondeu Annik.

— Sal? Tipo... pra comer?

— Sim.

A Menina olhou para fora com um olhar deslumbrado. Jamais imaginaria um deserto completamente comestível.

— É tão branco que machuca meus olhos.

Annik nada respondeu. Continuou a dirigir com seus olhos atentos.

Era tedioso ficar no carro, mas aquele panorama iria durar por eternos longos tempos agora que a Menina decidira ficar com Annik. Elas iriam para o Fim do Mundo, e aquilo deveria durar bastante tempo. Mas e depois de chegarem lá?

— Annik, o que a gente vai fazer depois que a gente chegar no Fim do Mundo?

— Vamos voltar. Vamos explorar o Mundo — ela falava com um brilho no olhar, com um desejo próximo de sonho. — Nós viveríamos juntas, explorando o Mundo...! — Era estranho vê-la falando sobre algo com tanta paixão. Não parecia haver muito daquele sentimento dentro de Annik. Aparentemente, no entanto, era aquele resto de sonhos que a movia.

— Você? Viveria comigo?

Ela olhou para a Menina.

— Você é a única coisa que eu tenho agora. Por que não?

— É que... é inacreditável... É como se eu estivesse vivendo num sonho... Todo esse deserto, você, as pessoas estranhas... sem ofensas, claro. Mas...

— Eu entendo. Sei como é essa sensação. Este mundo é uma utopia: parece um sonho lúcido. Mas quando você observa bem, é uma distopia, um caos completo, um pesadelo.

— Você também teve essa impressão quando chegou aqui?

— Todos têm essa impressão, de que este mundo é um sonho do qual logo você vai acordar. Ele é irreal demais a princípio, mas depois se torna tão real que você vai implorar para que seja apenas coisa da sua mente. E depois... bem, ou você enlouquece ou consegue aceitar a nova realidade. Mas normalmente quem a aceita, não faz isso por bem.

— Você acha que eu tô conseguindo?

—... Não sei dizer.

— Ah, qual é?, é só falar sim ou não!

— Não é tão simples assim, Alice. Aqui as coisas são efêmeras. Nada dura. Agora você pode parecer ter aceitado tudo isso, mas e daqui a pouco? Leva muitos, muitos tempos para finalmente absorver todo este mundo.

— Nada aqui me parece passageiro. Por quanto tempo você vive aqui, Annik? Quantas décadas? Séculos? Milênios? Do jeito que você fala desse lugar, eu tenho a impressão de que você tem milhares de anos de idade! Se isso é passageiro, o que é o eterno, então?

— Tudo acaba, Alice, não importa quanto tempo leve. Um dia, alguém irá acabar com minha existência, assim como vai acabar com a sua, mesmo que nós vivamos muito. Um dia, as areias deste deserto, que parecem eternas, vão morrer. Este mundo, um dia, vai morrer. Aprenda, Alice: tudo tem um fim.

— E o kra’vstan? Ele não tem fim. Você mesma disse.

— Um dia ele vai morrer também. No dia que este mundo morrer, todas as palavras vão embora com ele. Elas podem ser incontáveis e talvez não-listáveis, mas um dia elas também vão desaparecer. E o que era infinito se tornará nada... Não existe nada que seja infinito. Nada. Nem mesmo o universo é infinito. E quem somos nós perto de algo inúmeras vezes mais grandioso que ele? Se nem mesmo o que está lá fora é sem fim, imagine nós? Somos nada. Perto dele, somos papel, nos rasgamos com a maior facilidade. Nada é para sempre, Alice. Tudo tem um fim.

— Eu não quero que você... acabe, Annik. Isso... é terrível!

— Tudo vai acabar. Mas... vai levar bons tempos até lá, até o meu fim. Talvez eu até esteja enjoada deste mundo quando chegar a hora. E então, o fim vai ter chegado em um bom momento.

— Mas e eu? Você vai me deixar, é isso?

— Você não vai precisar de mim até lá. O Mundo pode parecer inóspito e deserto, mas ele é grande e existem inúmeras coisas nele para serem descobertas ou feitas. Até lá, você vai ter se cansado de mim ou vai querer fazer algo por conta própria, sem ninguém para atrapalhar.

— E você? Vai fazer o quê nesse meio tempo? Ficar dentro desse carro ouvindo o rádio eternamente?

— Eu não sei. Talvez eu saia pelo Mundo de novo. Ou talvez eu durma. Não vai sobrar muita coisa para fazer depois. Talvez não para mim, mas para você, sim.

— Eu não ia gostar de te deixar sozinha enquanto eu viajo pelo mundo.

— Até lá nós temos muito tempo para discutir sobre isso, Alice. Muitos tempos. Mas em algum momento, você vai me deixar. Disso eu tenho certeza.

— Eu tenho medo disso. Eu iria ficar sozinha de novo. Seria... a pior coisa que eu posso pensar... Você também é a única coisa que eu tenho, Annik! Eu não posso simplesmente deixar você sozinha! — A ideia de perder Annik fazia surgir lágrimas em seus olhos assim que colocava seus pensamentos sobre ela. Ela era a única coisa que tinha, por que tinham que tirá-la?!

— Eu sou a única coisa que você tem agora. Talvez você encontre outra pessoa que possa acompanhá-la, e aí você não vai mais precisar de mim.

— Você tá querendo dizer que você não precisa de mim, é isso? — Não sentia raiva. Sentia decepção e profunda tristeza. A vontade de chorar era enorme, mas se segurou. Sabia que não iria aguentar chorar por mais tempo. Ver... vislumbrar um mundo onde ela estava sozinha era pior que um pesadelo. Era um inferno. Ela era uma casa cujas vigas estavam se partindo e logo não iria suportar o peso de toda a estrutura.

— Não. Eu... preciso de você — ela soltou as palavras como se as estivesse segurando. — Mas eu não posso mentir para você: em algum momento, nós vamos nos separar. Seja por bem ou por mal. Mas isso vai acontecer. É claro que eu espero que isso dure muitos e muitos tempos e que isso não seja doloroso nem para mim, nem para você.

— Eu não vou deixar isso acontecer, Annik. — As lágrimas já surgiam nos seus olhos, mas Alice lutava para contê-las. Suas estruturas já estavam se partindo, e ela já sabia que não iria aguentar suportá-las por mais tempo.

— Você tem de deixar. É a ordem das coisas. Nada dura para sempre. Nada deve durar para sempre.

— O que você sente com relação a isso? Porque parece que você não dá a mínima pro fato de que um dia nós vamos ter um fim!

— Não é algo que eu goste, Alice. Você parece ter raiva de mim por algo que não é culpa minha. Eu me sinto... mal — ela fez uma cara como se tivesse comido algo ruim — ao pensar nisso. Mas é a ordem das coisas. Nada dura para sempre. Nem mesmo neste mundo, onde as coisas parecem ser eternas, as coisas duram para sempre. Eu não quero deixá-la agora nem nunca. Mas, em algum momento, isso vai acontecer, e não vai haver nada que possamos fazer contra isso. — As lágrimas fluíam dos olhos da Menina. Justo quando ela imaginava que teria a eternidade com Annik, que não estaria sozinha nunca mais, ela finalmente deu de cara com a parede da realidade. E a realidade era mais dura do que imaginava. Chocou-se contra ela e tentou quebrá-la, mas ela era uma garota diante de toneladas de tijolos, e apenas o que tinha a fazer era parar e virar seu caminho para contorná-la. Annik limpou suas lágrimas de novo com delicadeza. — Não chore, Alice. Eu ainda estou aqui.

Alice abraçou-a e Annik retribuiu com carinho. De novo. Se um dia fosse se separar de Annik para sempre, deveria aproveitar os momentos com ela a partir dali. Afinal, elas poderiam se separar dali a muitos e muitos tempos ou dali a um minuto. Chorava no ombro dela, e Annik apenas a deixou ali enquanto mantinha uma mão no volante e a outra ao redor da Menina. Naquele momento, queria que aquele momento não tivesse fim jamais. Que aquele abraço durasse para sempre.

Percebeu que era desprezível. Tudo o que fazia era chorar e depois se agarrar a Annik para que ela a confortasse. Ela era um estorvo. Não conseguia pensar por que Annik a aceitara. Talvez ela estivesse sozinha demais a ponto de não ligar para quem a acompanhava.

— Eu também não gosto de pensar nisso — Annik admitiu. — Também é doloroso para mim. Muito mais do que você imagina. Mas... é assim que as coisas funcionam, e não podemos impedi-las de funcionar dessa forma. — Ela mexeu no cabelo da Menina com carinho. As mãos dela pareceram leves como penas quando ela o fez. — Apenas... não pense nisso. Na verdade — ela se corrigiu —, evite pensar nisso, mas não se esqueça. Dói menos se você não se esquecer.


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