Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 34
XXX - Chuva


Notas iniciais do capítulo

https://www.youtube.com/watch?v=Gn6h0QcVWT4
John Frusciante & Josh Klinghoffer - Communique.



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XXX

Chuva


Abriu os olhos, mas os fechou de novo quando a luz do sol os cegou.

Era difícil acreditar que o tempo virara; da noite para o dia e do frio para o calor. A noite, com seus cavaleiros sombrios e portadores dos presságios malignos, parecia dominar a vastidão dos céus trazendo seus cavalos e armaduras negros e suas espadas que brilhavam como estrelas. Os protestos dos paladinos reluzentes da manhã, porém, foram tão grandes e corajosos que fez com que a noite cedesse às reclamações e cavalgasse de volta para o fim do horizonte, onde esperaria até reunirem suas forças para que finalmente dominassem a manhã. Quanto tempo isso iria levar era um mistério, pois naquele mundo manhã e noite não tinham períodos contados. Elas batalhavam entre si aleatoriamente, e o vencedor permanecia dominante nos céus até que sua contraparte guerreasse novamente e retirasse do vencedor o seu troféu: o firmamento. Lutavam com todo o ardor presente dentro de seus corações de guerreiros que almejavam apenas o céu, como se aquele prêmio fosse o mais valioso espólio ou o mais belo Paraíso para onde suas almas iriam após a morte. Se é que morriam. Se morressem, não haveria mais guerra pelo céu, não haveria mais noite nem dia.

Alice não imaginou que veria a manhã de novo. A noite se tornara tão comum para ela que pensou que fosse ir embora do Mundo sem ver o céu da alvorada. Nem mesmo lembrava-se que havia manhã. Não mais se lembrava de como ela era, de como era sentir o nem-sempre-tão-suave toque do sol sobre sua pele, nem mesmo conseguia mentalizar como era o azul claro do céu pela manhã, com as nuvens boiando nele. Vê-lo agora era como ver a um amigo que há muito tempo se fora, e de quem ela não mais se lembrava.

A Menina levantou-se e viu-se novamente dentro do carro, Annik ao seu lado no banco do motorista. Bocejou quando endireitou o corpo.

— Annik... — falou em meio a um bocejo, depois reclinou-se na poltrona. — O que aconteceu...?

— Resumidamente — Annik respondeu —, nós pulamos do terceiro andar da Universidade. Você acabou ficando desacordada porque se soltou de mim e quando caiu no chão, desmaiou. Eu fugi com você até o carro, mas não antes sem matar alguns perseguidores, e agora eu estou dirigindo o mais rápido possível esperando que não nos alcancem.

— Terceiro andar? Eu pensei que a gente estivesse no último de tanta escada que a gente subiu.

— Você conseguiu o livro? Achou alguma coisa sobre eu poder voltar pra casa?

— Eu o deixei no porta-luvas. E eu não tive tempo de ler muita coisa, Alice. Só dei uma olhada.

Alice abriu o porta-luvas e encontrou o exemplar velho, com a capa quase se desfazendo, as páginas amareladas e emboloradas. Abriu-o, mas não conseguiu entender uma palavra do que estava escrito.

— Está em kra’vstan — avisou Annik. — Você não vai conseguir ler. Como eu disse, eu dei uma folheada. Eu não entendi muita coisa, parece muito complexo. Eu tenho que ler com calma, mas não posso fazer isso com os homens da Organização atrás de nós.

— Você podia me ensinar o kra’vstan pra eu ler pra você. O Isaac mesmo disse que você devia me ensinar.

— Isaac não se atentou ao fato de que o kra’vstan é uma língua muito profunda para ser ensinada do zero. Todos nós que caímos neste mundo e possuímos kayrnva e kra’vstanva sabemos as regras, a ortografia, tudo. Nós vamos à Universidade, quando vamos, para aprendermos mais sobre a profundidade das palavras, não para que nos ensinem a formar frases ou redigir textos.

— Você quer dizer que não tem como ensinar kra’vstan pra alguém que não tem nome, é isso?

— Sim. Digo, eu posso até tentar, mas não posso fazer com que você sinta as palavras. O kra’vstan não é kra’vstan se as palavras não transmitirem sensações e emoções. É apenas uma língua... morta. No real sentido da palavra.

— E pra quê eu vou precisar de sensações pra ler um livro?

— Se nem eu consegui entender muita coisa, imagine você? Além disso, eu demoraria muito tempo ensinando o alfabeto, depois mais tempo ensinando os pronomes, os verbos, as preposições... Até eu terminar de lhe ensinar tudo, a Organização já vai ter nos alcançado e nos matado. — Ela suspirou, mas havia algo diferente no suspiro. Ele parecia mais... alto. Se parecia mais com um gemido do que com um suspiro. — Vamos nos focar em tentar escapar da Organização, e depois eu penso no que podemos fazer.

Alice também suspirou e tentou aproveitar o conforto do assento do passageiro. Mal tinha percebido o calor que sentia e também nem tinha percebido que Annik ligara o ar-condicionado — provavelmente estava dormindo/desmaiada quando isso aconteceu. Removeu o sobretudo e o jogou no banco de trás, onde ficavam algumas roupas que pegaram da casa de Isaac no dia em que saíram — que teoricamente fora na noite anterior —, e alguns cobertores, todos eles de Alice, pois Annik não tinha essa necessidade de se esquentar, aparentemente.

— Annik, você não tá sentindo calor, não? — perguntou retoricamente. Já imaginava que Annik fosse dizer “não” ou apenas ignorar. Por um instante, teve a curiosidade de saber como ela era debaixo do sobretudo. Todas as vezes em que tinha-a visto, ela sempre estava usando calças e camisas de manga longa.

— Um pouco — uma resposta evasiva e desinteressada, como sempre.

— Por que não tira esse casaco quente? — Alice deu um tapinha em seu braço, mas Annik reagiu de um modo pouco usual: ao invés de ignorar, como sempre, ela afastou o braço num reflexo rápido, com um gemido baixo. Alice já tinha aberto a boca para perguntar por que aquela atitude esquisita, mas quando olhou para sua mão, teve a resposta. — Annik...! — Arregalou os olhos. — V-você tá machucada?! Ah, desculpa, eu... eu não sabia...

Annik pareceu envergonhada.

— Levei um tiro — disse baixinho.

— Você deveria ter falado isso antes! Você não pode ficar assim, tá sangrando até agora!

Annik olhou para baixo, como se estivesse triste e desapontada consigo mesma.

— Eu vou ficar bem.

— Vai ficar se eu der um jeito nisso aí.

— Como?

— Para o carro.

— Não vou parar o carro e você sabe por quê.

— Quer que eu tire essa bala com você dirigindo?

— Prefiro que você não a tire, então.

Sem precisar pensar muito, a Menina pegou o volante e o girou abruptamente, fazendo o carro dar um solavanco para a direita. Annik tomou um susto tão grande que quase caiu no colo de Alice.

Você ficou doida?!?! — Annik berrou, levantando-se. Alice estava quase gargalhando com aquilo, mas a vontade de rir desapareceu quando Annik grunhiu por causa do ferimento e deu lugar à preocupação.

— Annik, sério, para o carro, você não tá bem.

Ela suspirou.

— Só vou fazer isso porque não quero que você tente nos matar de novo. — Desligou o carro, parando-o no meio da estrada (afinal, não havia problema em fazer isso ali naquele mundo, ninguém parecia tomar aquela rodovia mesmo), e disse, sem antes suspirar, senão não seria Annik: — Tudo bem, agora faça o que tem de fazer comigo.

Não imaginava que chegaria tão longe, então não fazia ideia do que deveria fazer.

— E... ahm... bem... o que eu tenho que fazer?

— Retirar a bala — ela explicou com uma falta de paciência visível na voz.

— Ah, sim, certo, eh... retirar a bala! Mas aqui dentro? Digo... aqui é meio apertado, né?

Annik simplesmente abriu a porta do veículo, e Alice também fez o mesmo.

— Está melhor para você? — ela perguntou ironicamente. Infelizmente Annik era tão sem senso de humor que ela sempre parecia séria, e por um instante Alice quase achou que fosse uma pergunta real.

— Sim, quer dizer, vamos logo começar com isso.

Annik sentou-se no asfalto do deserto, encostando as costas no pneu cheio de areia, e Alice agachou-se ao seu lado direito.

— Você vai ter que tirar esse casaco — pediu.

E ela simplesmente retirou, sem qualquer sinal de relutância, mas apenas um revirar de olhos que deveria significar “por que raios eu aceitei isso?”.

Era... muito estranho ver Annik sem aquele sobretudo. Por baixo dele, vestia uma camisa simples, totalmente branca, mas um pouco suja de quando Alice vomitou nela. Havia alguns respingos de sangue também, já amarronzados, mas não eram muitos. Percebeu que ela tinha tatuagens no braço e no antebraço. Não muitas, mas não era o que Alice imaginava encontrar. Uma delas, que pôde notar bem, pois estava próxima ao ferimento, parecia ser uma frase de três palavras em um alfabeto que ela não conhecia.

— Você... tem tatuagens... — não conseguiu fazer com que o pensamento fosse apenas um pensamento; a surpresa foi tão... diferente que teve de verbalizá-lo.

— É, eu sei.

— O que essa aqui significa? — Apontou os escritos incompreensíveis incrustados na pele de Annik.

Ela contorceu-se para identificá-los.

— Não sei. Estão aí desde que caí neste mundo.

— Ah... Eu imaginei que tivesse feito depois.

— Não. Eu nem mesmo entendo o que está escrito aí. Não é o alfabeto kra’vstan atual nem o antigo. É um alfabeto que eu nunca vi antes, para dizer a verdade. — Ela olhou para o horizonte. — Não gosto dela. Acho feia. Enfim, tire logo essa bala.

— Ela não é feia, Annik. Você nem sabe o que ela significa, como pode falar isso de algo que você nem sabe o que é?! — Annik olhou-a com desinteresse nos olhos. — Enfim, não tá mais aqui quem falou, vou tirar logo isso de você e... ahm... como eu faço pra tirar isso?

Annik olhou para ela boquiaberta e os olhos meio arregalados de descrença, numa expressão que dizia com todas as letras: “Eu não acredito que ela tá falando isso!”.

— Tente pegar a bala com a mão — ela respondeu calmamente. Nem parecia estar impaciente, mas Alice sabia que ela estava tentando ao máximo se controlar.

— Isso... não vai doer, não?

— Bom... vai, mas ou é isso ou a bala ficará aí até o ferimento se fechar.

— Ah... bom... certo... Argh, isso parece nojento.

Por favor, se apresse! — finalmente ela bufou impacientemente.

— Certo, certo! E me desculpe antecipadamente! — Mergulhou com cuidado o indicador na ferida aberta de Annik, já sentindo a bala. Tentou puxá-la com um só dedo, mas o sangue fazia-o escorregar na superfície lisa do projétil. Respirou fundo e tentou de novo, com o cuidado para não fazê-lo se alojar ainda mais. Conseguiu fazer com que a bala subisse alguns milímetros acima do buraco sangrento no braço dela, e com o polegar, segurou-o e o removeu completamente. — Eu... consegui...! — Seus olhos estavam arregalados e sorria. Parecia uma grande vitória e, pensando bem, era mesmo. A bala ainda estava em suas mãos, e Alice a exibia como se fosse um troféu de sua vitória incrível. Jogou-a no chão depois de perceber, alguns segundos depois, que Annik estava sentindo dor quando ela gemeu baixinho. — Ah, merda, desculpa, Annik! — O ferimento dela começava a sangrar de novo. Ela estava com os olhos bem fechados e com os lábios brancos de tanto apertá-los por causa da dor. Respirava descompassadamente, ora absorvendo grandes golfadas de ar, ora prendendo a respiração. — Vou pegar alguma coisa dentro do carro pra parar com esse sangramento.

A Menina levantou-se e foi até o carro. Não se lembrava de terem pegado gaze ou alguma bandagem, então pegou o cobertor e tentou rasgá-lo. O corte não foi muito benfeito muito menos simétrico, mas parecia o suficiente para amarrar ao redor do tiro. Também olhou no porta-luvas procurando um litro de álcool, mas havia apenas garrafas d’água no meio de fitas cassete, luvas e outras tralhas. Uma seria suficiente. Voltou até Annik e limpou o ferimento com a água, depois amarrando o pano ao redor.

— Isso arde — ela comentou entre os dentes.

— Eu achava que você não sentia dor. — Antes de vê-la daquele jeito, trincando os dentes para não urrar tamanha a dor, a Menina acreditava que Annik não tinha aquela sensação. Ela era tão forte e cruel que a ideia de que ela pudesse sentir dor era inexistente.

— Eu sinto. Mas eu tento ignorar a dor. — Trincou os dentes novamente e se retorceu assim que terminou de falar.

Annik suava. Talvez fosse por causa do calor do deserto, talvez fosse por causa da dor. Ou talvez fosse o ferimento que infeccionara. Ela estava quente e pegajosa. Uma mistura de sangue, suor e água. E se estivesse com febre? Alice começou a ficar preocupada.

— Pronto, acho que está tudo bem... Você tá bem, Annik?

— A-aham — ela assentiu tranquilamente, com os olhos fechados. — Só está ardendo um pouco... — Rangeu os dentes assim que terminou de falar.

— Você não parece bem. — Alice tirou a sua boina (que pecado!), afastou os cabelos dela e pôs a mão em sua testa, para sentir a temperatura. — Você tá quente. Tem certeza que isso aí não infeccionou ou inflamou?

— N-não.

Percebeu que a boina dela ainda estava em sua mão. Tentou animá-la:

— Ei, olha isso. — Pôs a boina dela em sua cabeça. — Agora eu sou você! — E riu.

Annik também riu, mas parecia cansada e fraca ao fazê-lo. Era terrível pensar daquele jeito, mas ela parecia até morrendo daquele jeito. Ela parou de gargalhar e apenas ficou observando a Menina com um sorriso sonhador nos lábios.

— Por que você tá me olhando assim? — a Menina parecia assustada.

— Você se parece comigo, e eu nunca tinha percebido isso antes.

Silêncio. A Menina não soube o que dizer. Elas eram parecidas fisicamente, sim, mas, sinceramente, não via tanta semelhança. Uns traços e outros e só. Ou talvez nunca tivesse ligado para isso. Psicologicamente, porém, elas batalhavam entre a semelhança e a discrepância. Às vezes a Menina se pegava pensando em como ela e Annik tinham os mesmos problemas, porém com contextualizações diferentes, e em outros momentos se via distanciando-se dos problemas dela.

— Em que sentido? — Depois de ter pensado naquilo, estava confusa. Annik quis dizer se tinham pensamentos iguais ou apenas rostos iguais?

Annik olhou para o chão, como se para evitar o olhar curioso e inquisidor da Menina.

— Todos, eu acredito. — E depois disso, aí que a Menina de fato não soube o que responder. Felizmente, Annik notou que Alice ficou desconcertada com aquilo e mudou de assunto: — Agora devolva a minha boina.

Alice prontamente obedeceu-a, colocando a boina na cabeça dela com tanta delicadeza que poder-se-ia dizer que o fez até de modo carinhoso.

— Ah... — a Menina suspirou, olhando-a profundamente nos olhos enquanto ajeitava o cabelo dela. — Não me preocupe mais desse jeito, tá bem? — Sorriu, e Annik também.

Quando Alice entrava em sua mente, via suas memórias, mas quando a olhava nos olhos, via o que sentia de verdade. Alice estava com medo. Não por ela própria, mas por Annik. Tinha muito medo de que alguma coisa acontecesse com ela. Num impulso, abraçou-a, e ela pareceu retribuir. Era o mínimo de agradecimento que podia lhe dar após tudo o que ela fez. Não soube por que exatamente a abraçou, mas talvez fosse a pena de vê-la naquele estado, como se para protegê-la da dor. Desfez o abraço que pareceu durar menos de um milésimo e disse:

— Vem, vamos embora agora. Veste seu casaco. — Pegou o sobretudo dela antes mesmo que Annik o pegasse e ajudou-a a vesti-lo. Seguiu para o carro, mas Annik pareceu demorar-se alguns instantes. — O que você tá procurando aí fora? — gritou de dentro do carro, mas Annik não pareceu dar ouvidos até entrar.

— Estava pegando isso — ela respondeu exibindo a bala que estava em seu braço com um sorriso. — Agora vamos embora depressa ou vamos ter companhia. — Antes de dar partida no carro, ela também comentou, inclinando-se para olhar melhor pelo para-brisa: — Parece que vai chover. — Deu a partida e pisou no acelerador o mais fundo que conseguia.

E era verdade. Havia uma aglomeração de nuvens cinzentas mais ao longe, mas pareciam tão distantes que nem mesmo deveriam afetá-las.

Isso provou-se completamente errado.

À medida que o carro ia prosseguindo na Rodovia na terra, nos céus principiou-se uma batalha entre os exércitos da noite e do dia. Era possível vê-la ao olhar para longe e testemunhar suas nuvens negras, sinal da guerra quente começando. A batalha foi tomando forma, e mais exércitos começaram a vir, os céus inteiros entrando em guerra. Uma verdadeira guerra mundial. O sangue dos inimigos começou a cair do céu na terra aos montes, litros e litros, litros de litros, encharcando as areias. O brilho dos paladinos da luz morreu assim como a sombria forma dos cavaleiros das trevas, pois deu lugar a uma confusão de gritos trovejantes, golpes relampejantes; espada contra espada, armadura contra armadura, metal contra metal. Não era possível distinguir quem vencia ou perdia naquela batalha, porquanto os céus estavam cobertos com o caos proveniente dela.

O calor deu lugar a um frio meticuloso. Ele veio tímido, aos poucos, o frio descendo do céu a cada gota de chuva, mas era tão perverso quanto o frio paralisante e brutal da noite. A única diferença era que o frio da noite era direto, enquanto o frio da chuva agia demoradamente.

Dentro do carro, Annik teve que desligar o ar-condicionado e tornar a ligar o aquecedor.

— Assim está melhor?

— Aham. — A Menina estava arrepiada. O carro continuava abafado como antes, mas agora misturava o quente com o frio numa sensação horrível de sufocamento. Era um ótimo momento para se intrometer na vida de Annik de novo, aliás. — Annik, quem era aquela mulher na Universidade? Ela parecia conhecer você bastante bem.

— Ela me deu aulas e é uma das administradoras da Universidade. Ela era uma ótima professora. Ensinou-me muita coisa do que sei atualmente. Não gostei de tê-la ameaçado.

— Pois não pareceu. Parecia até que você tava gostando, na verdade.

— Aquilo... foi no calor do momento. Tive raiva por ela não me entender o meu lado e não querer me ajudar. Mas ela estava certa, no fim das contas. Ela é uma boa pessoa, e eu não.

Alice sabia que aquilo era verdade, no entanto, sentia-se mal mesmo assim. Annik tinha consciência de que estava longe de ser um exemplo de bondade, estava longe de ser até mesmo um mau-exemplo de bondade, e Alice queria poder ajudá-la de alguma forma. Tirar todos os pensamentos e as vontades malignas de dentro de sua alma, se é que ela possuía alguma, contudo sabia que não havia nada que podia fazer. Aquela era sua natureza, e se ela a mudasse, só lhe traria mais sofrimento.

Annik voltou a olhar para a estrada, seus olhos assumiram uma postura quase de águia ao mirar o horizonte.

— Eles estão vindo — declarou com calma e firmeza.

Alice quase engasgou.

Eles?! O que a gente vai fazer?

— Vamos fugir, é claro. — Annik mexeu no câmbio da marcha, porém já estava na última, portanto pisou o mais fundo que podia no acelerador.

— Onde é que eles estão?

— Olhe pelo retrovisor.

Alice obedeceu. Pôde ver, beeem ao longe, dois olhos brancos e brilhantes. Faróis de carro. Elas tinham uma grande distância de vantagem ainda, todavia, não iria demorar muito para que eles as alcançassem. Seu coração começou a acelerar de medo, e suas mãos a suar de ansiedade, mas não falou nada.

Annik ainda estava calma e centrada em fugir, mas a Menina sabia que aquilo não iria dar certo. Mais cedo ou mais tarde eles iriam se aproximar, e sabe-se lá o que iriam fazer antes de matá-las.

E foram se aproximando.

E se aproximando.

E se aproximando.

O carro delas não iria aguentar ir tão rápido por tanto tempo.

E eles se aproximavam cada vez mais. Já era possível até ver os passageiros; eram quatro. O motorista era careca, rosto duro e quadrado e olhar de mau. Já os outros se escondiam sob capuzes, bandanas e faixas nos rostos.

O careca gritou, e os outros puseram as mãos armadas para fora do carro e começaram a atirar.

AH! — A Menina se abaixou na poltrona para não ser atingida.

Annik olhava com agilidade, ora para a estrada à frente, ora para o retrovisor. Tentou conduzir o carro em zigue-zague, mas era inútil. Os tiros acertavam e furavam a lataria do carro mesmo assim.

— Alice, segure o volante e pise o mais fundo possível no acelerador — Annik pediu, tirando uma pistola de trás da calça.

— O q-quê?, o que você vai fazer?

Annik abriu o vidro da porta e inclinou-se para fora até que ficou praticamente sentada na janela, atirando no carro inimigo.

— E depois você diz que eu sou doida! — Alice retrucou.

— Preste atenção no carro! — Annik gritou de volta em meio a tiros.

Alice obedeceu-lhe. Passou para o banco do motorista e pisou no acelerador. O carro estava numa reta, então não era necessário manobrá-lo por enquanto. O pé de Annik a incomodava. Estava sentada praticamente em cima dele, e aquilo não era muito confortável. Contudo, os tiros a preocupavam tanto que até deixou de sentir o pé dela na sua bunda.

Uma curva bem acentuada apareceu, e Alice virou para a direita, seguindo o caminho tortuoso da rodovia. Como suas habilidades em dirigir eram tão boas quanto em matar (ou seja, eram nulas), o carro cantou pneu na pista, e Annik bateu algum membro no capô.

Toma cuidado!! — ela ralhou e tornou a atirar.

Eu tô tentando!!! — a Menina gritou de volta enquanto tentava fazer uma outra curva acentuada para a direita, desta vez sem deslizar o carro.

Olhou pelo retrovisor e viu os homens atirando, o carro inimigo quase encostando no seus, os tiros voando a milímetros de Annik e ela não dando a mínima para eles. Aquilo a desconcentrou por apenas alguns segundos, no entanto, segundos importantíssimos. O carro da Organização finalmente bateu no para-choque traseiro delas, e a Menina praticamente perdeu o controle. O carro, que deveria seguir uma reta longa, efetuou uma curva para a esquerda e desceu por uma grande duna de areia.

A Menina chacoalhava dentro do carro. Bateu a cabeça no volante, no joelho de Annik — que, não conseguindo se equilibrar enquanto o carro descia, se soltou e caiu na areia, logo levantando-se sem tirar o dedo do gatilho um segundo sequer — e na porta do carro, que morreu.

Annik escondeu-se atrás do carro, e Alice apenas pôde se encolher dentro dele e rezar para que os homens e mulheres da Organização morressem logo, e que elas saíssem ilesas. Tapou os ouvidos para não ouvi-los e começou a murmurar “por favor por favor por favor por favor...”. Mesmo assim, os tiros eram mais altos e os seus estampidos conseguiam perfurar seus murmúrios e suas mãos sobre suas orelhas. Como sempre, tremia e suava, apesar de que dessa vez não estava trêmula e sem controle sobre os próprios membros como estivera na biblioteca.


Por favor por favor por favor...


Alice, sai do carro!!! — alguém gritava.

— Annik, sua vagabunda, você vai morrer aqui e agora!!! — outro berrava.

E disparos, muitos disparos.

Xingamentos. Alguém chamando o outro de “filho da puta”, de “desgraçado”, “covarde”, e outras tantas coisas que elas se perderam na mente conturbada da Menina.

A Menina fechou os olhos o máximo que podia.

Ouviu a porta do carro sendo aberta. Esperava que fosse a do banco do passageiro.


Não era.


Sentiu o vento frio da chuva do deserto. As gotas de chuva. O frescor. O cheiro da chuva, da areia molhada. Uma risada. Saliva. Bafo de bebida alcoólica e cigarro.


E dor lancinante e turbidez dos sentidos.

E então, outro disparo, bem mais alto.


E o frio choroso da escuridão...




Acordou com dor pungente e quase gritou, mas a escuridão ainda teimava em puxá-la para baixo. O frio triste trazido pelo clima melancólico e pelas trevas de seus olhos ainda permanecia, mas havia sons e um longínquo calor. Seus membros estavam úmidos e gelados, como se enterrados em neve.

Outra pontada tão violenta que parecia perfurar até mesmo seu osso. Alice abriu a boca e gemeu, gritou, balbuciou qualquer coisa ininteligível, mas um silvo calmo, sedoso e quente, amenizou seu sofrimento:

— Shhhh... — Sentiu uma mão gelada e um pouco pegajosa sobre sua testa. Acalmou-se. Seu corpo antes tremia com a dor, mas quando a mão a tocou, parou de convulsionar.

Abriu os olhos com cuidado. Sentia uma respiração quente tocando o seu rosto. Seus olhos ainda estavam embaçados. Sentiu algo molhado tocar sua costela e ardeu muito. A respiração era calma e fraca porque respirar doía.

O que acontecera? Apenas lembrava-se do homem careca a olhando com um olhar que sugeria algo asqueroso e depois de algo a perfurando. E um tiro. Mas tinha certeza que aquele tiro não fora ela quem recebera.


... Annik...!


Acordou ofegando, olhando para todos os lados, procurando-a. A noite havia repelido a manhã com uma rapidez impensável naquele mundo. Annik estava ali e correu para perto dela quando a viu acordar. A dor cresceu mais uma vez, e a Menina urrou.

— Shhh... — Annik meio que abraçou-a, fazendo-a se deitar de novo enquanto limpava o suor de sua testa com um pano molhado. — Não se levante.

Euuu... — o próprio ato de falar doía. Por causa disso, Alice nem mesmo conseguia controlar sua própria voz. Pareciam gemidos animalescos e mentalmente incapazes. — o queEe... acontecEEeu?... — falava soltando jorros de ar entre uma palavra e outra.

— Você levou uma facada debaixo do braço. — Annik parecia ter tomado banho em sangue, porém a chuva já a lavava. Fazia gotas vermelhas pingarem de seus cabelos, de seu queixo e de seu nariz (que parecia quebrado). — Você tem que descansar. Como eu já terminei de cuidar de você, vou carregá-la para dentro do carro. Enquanto você estava desacordada, eu tentei costurar o corte, portanto é bom que você se mexa o mínimo possível.

Annik pegou-a no colo com cuidado e a colocou-a no banco do passageiro.

— Está confortável? — ela perguntou. — Você não pode se mexer muito, então se não estiver confortável nessa posição, diga logo antes que partamos.

Es... tou... — Só queria dormir, dormir, dormir... Bocejou.

Annik assentiu e cobriu Alice com um cobertor. Ela falou alguma coisa, mas a Menina já estava praticamente dormindo e sua mente não decifrou o que foi dito. Seus olhos se fecharam entorpecidamente por causa do sono mesclado à fraqueza.

Seus ouvidos não davam atenção a mais nada, seus pensamentos já eram um bando de coisas desordenadas e aleatórias das quais ela se esquecia um segundo depois de pensar nelas. Nem mesmo ouviu o carro sendo ligado, apenas sentiu-o chacoalhar de leve. Àquela altura, seus sentidos mais uma vez se apagavam, mas antes deles se desbotarem completamente, Annik falou:

— Você também não deveria me preocupar desse jeito — ela falou, num modo preocupado e triste, e acariciou seu rosto com uma delicadeza que não parecia pertencer a ela própria. Depois, disse uma palavra em kra’vstan que a Menina não conhecia: — Upra’stze...

A palavra escorregou para dentro de sua mente e caiu no vazio interminável.

E de lá não mais saiu.


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