Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 33
XXIX - A Universidade




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XXIX

A Universidade


— Chegamos. — Uma estrutura colossal, de quilômetros de quilômetros de distância, projetava-se em direção ao céu, como um risco negro e infinito que parecia atravessar aquele mundo e alcançar outros universos. Era tão alto que se misturava à noite como um pedaço do céu nu, desprovido de estrelas ou outros corpos celestes. Estava embrulhado em nuvens cinzentas que indicavam chuva, mas o prédio (quase um obelisco, de tão fino e pelo seu formato piramidal) era tão esguio que as ultrapassava e parecia perfurar o próprio azul escuro quase negro da noite, atingindo ou até ultrapassando o vácuo e a matéria escura do espaço. — A Instituição. Ou a Universidade, se preferir — apresentou Annik.

— Isso aí... tem um fim? — era a única coisa em que a Menina conseguia pensar. Aquela visão havia emudecido-a.

Mas Annik não pareceu entender do que ela estava falando, para variar.

— Fim? O que você quer dizer com isso?

— Ah, deixa pra lá. — Ela não iria entender, mesmo, então desistiu. Quando chegassem mais perto, saberia se aquela... coisa (ainda estava relutante em chamar aquilo de “prédio” [pelo que ela sabia, prédios não pareciam infinitos]) era ou não sem fim. — A gente vai chegar mais perto?

— Não agora. Deveríamos parar um pouco. Você não tem dormido nada ultimamente, ou acha que não percebi?

Era verdade. Não queria dormir para não ter que entrar na mente de Annik de novo. Sabia que ela não gostava disso e, assim como ela percebera que não tinha estado dormindo, Alice também percebia que ela se fechava ainda mais à medida que a Menina entrava em sua mente. Ela ficou ainda mais calada depois da última vez que entrou em suas lembranças, quando viu as cenas em preto e branco. Não era fácil notar essas alterações de humor em Annik, mas pôde reparar que ela não falava quase nada quando a Menina acordava, como se para impedir a si mesma de contar o que sentia.

Alice não gostava de deixá-la se sentindo pior e ela mesma não gostava de ver o que se passava em sua mente. Muitas coisas que via lá dentro a aterrorizavam e se sentia invadindo a privacidade de Annik. Aqueles eram assuntos com os quais ela não tinha nada a ver. O que lhe concernia era apenas voltar para casa. Fim. Aquele era o único assunto com o qual ela deveria ter a ver. Deveria. Porque no fundo, se sentia terrivelmente mal por Annik e sentia vontade de fazer alguma coisa por ela, ainda mais sabendo que foi tudo por sua culpa. Tudo. Acordá-la, fazer perguntas impertinentes e agora entrar em sua mente. Se não fizesse algo para reparar o estrago que havia feito, se sentiria uma pessoa desprezível e sem coração. Era o mínimo que poderia fazer em agradecimento por ela ter aceitado em levá-la para casa, onde quer que fosse.

— Não tenho sono. — Não iria dormir. Não deveria entrar na mente dela de novo. Naquele momento, invejou Annik por nunca precisar dormir. Estava caindo de sono, era verdade, mas deveria permanecer acordada. Por Annik.

— Você diz que não está com sono, mas pela sua cara, parece que você vai desmaiar a qualquer momento — ela não soava inquebrantável, com aquela seriedade firme e inflexível de sempre, mas soava como alguém que se importava. Mesmo dizendo aquelas coisas de maneira atenciosa, a Menina não iria ceder.

— Não, Annik, eu...

— Eu não vou me importar se você entrar na minha mente de novo, se é isso que a preocupa. — Bem, aquilo já mudava a situação para a Menina.

— Você tem certeza?

— Sim. — E seus olhos estavam firmes como sua voz antes não estivera.

A Menina sorriu. Não soube por quê, a princípio. Foi tão impensado como remover o dedo de uma chama. Mas depois soube. Percebeu que, assim como ela, Annik se importava, e aquilo a deixava feliz. Na verdade, deixava feliz é um eufemismo. Aquilo a deixava se sentindo completa.

Mas talvez ela mesma não soubesse nomear ou descrever o que sentia. Apenas sentia e pronto. Não pensava no quê ou em como o fazia.

Fechou os olhos. Antes disso, pôde notar que Annik sorria levemente em resposta.


O que Alice viu na mente de Annik daquela vez foi mais do mesmo. Memórias de sangue, morte, suor, deserto e desgraças. Mas depois se esqueceu delas, como se o que tivesse visto fosse um sonho e apenas isso.

O carro estava quente por causa do aquecedor. Estava ligado, mas não havia ninguém no banco do motorista. O coração de Alice deu um salto ao encontrá-lo vazio. Elas estavam sendo caçadas por um bando de loucos carniceiros, e aquela reação seria completamente normal se acordasse sozinha dentro do carro. Deveria esperar o pior — já esperava, na verdade.

Olhou pela janela e se acalmou: viu Annik sentada de pernas cruzadas diante de uma fogueira malfeita.

Saiu do carro. Estava absurdamente frio lá fora. Era inimaginável que um lugar cujas temperaturas chegavam a quarenta graus pela tarde pudesse também chegar a zero. O frio estava tão grande que nem mesmo o sobretudo que Annik lhe dera a protegia do frio paralisante. O calor do saar era cortante, mas o frio entrava na pele e caminhava até os ossos e a mente e os atacava com pancadas frias que pareciam ser feitas do mais puro gelo. O calor atacava de fora para dentro; o frio, de dentro para fora, consumindo o corpo feito um verme.

Annik não parecia sentir os efeitos do frio. Estava calma, tão calma que parecia um monge meditando no meio de uma tempestade, sem se importar com as intempéries. Ignorava quaisquer efeitos da baixa temperatura em seu corpo, tanto externa quanto interna, se é que ela era afetada por eles. Será que pelo fato de ser “diferente” naquele mundo que Alice sentia frio e/ou calor? Porque Annik, desde que a Menina a vira, não parecia sofrer com o calor cortante e agora, nem com o frio que parecia pesar uma tonelada em cada músculo.

Annik não a viu, mas parecia tê-la sentido, pois lhe disse timidamente, sem nem precisar se virar em sua direção:

— Precisamos conversar.

— Sobre o quê? — Na verdade, já imaginava sobre o que iriam conversar. E não queria conversar sobre aquilo, para ser sincera.

Alice aproximou-se de Annik e sentou-se ao seu lado, de frente para a fogueira que era tão pequena e malfeita que não a esquentava.

— Sobre o que... — as palavras pareciam não querer sair da garganta de Annik, engasgava-se com elas —... você viu — soltou-as como alguém solta a respiração presa. — Na minha mente, digo.

— Olha, isso não tem nada a ver comigo. O que eu vi não tem a ver comigo.

— Eu preciso que você me conte o que viu lá dentro.

— E isso importa?

Percebeu que tinha dito a maior besteira da vida quando viu um traço quase imperceptível de fúria no rosto de Annik.

— Para mim, sim — ela disse, com a voz no limiar entre calma e raiva. — Por favor — e agora, no limiar entre pedido e súplica.

— Certo, certo... Eu vi... Bom, da primeira vez eu vi uma porção de coisas. A primeira memória que eu vi tinha umas cinco pessoas. Você deveria estar no meio, imagino. Falavam em outra língua. Falavam em kra’vstan. Depois tinham duas pessoas correndo pelo deserto. Depois a lembrança (posso chamar assim?) foi ficando meio... embaçada, quando você olha pra algo muito perto e vê só um borrão, sabe?, mas eu não vi muita coisa da última memória, não. Da segunda vez eu vi só gente morrendo ou corpos. Da terceira, eu vi bastante coisa. Tava tudo em preto e branco, mas deu pra perceber bastante coisa. Apesar de não ter cor, tava bem nítido. — Fez uma pausa quando lembrou-se do ser de sombras e alto. — Tinha um homem. Gigantesco. Nem parecia ser homem. Você tava... ahm... caída no chão — era estranho dizer aquilo a Annik, que sempre lhe pareceu tão forte e inquebrável. Tinha medo de que ela se desmanchasse em tristeza ao dizer aquilo, mas ela não esboçou reação alguma (ou pelo menos se segurou para não fazê-lo) — e o homem só falava em kra’vstan. Você tentou falar “normal” com ele, mas ele falou numa voz muito estranha, eu lembro direitinho, “Não ouse falar desse jeito comigo” ou coisa bem parecida. E então vocês dois começaram a falar em kra’vstan, e eu não entendi mais nada. Depois o homem sumiu, parece que foi engolido pela areia, e você caiu no chão e não acordou. Eu até achei que você tinha morrido, mas não tem como, né?, porque você tá viva aqui na minha frente. Foi só isso, eu acho.

Annik estava pensativa. A mão sobre a boca, ponderando sobre o que ouvia, provavelmente pensando “mas que absurdos esta garota está defecando aqui!?”. Era como Alice imaginava que Annik xingava mentalmente. Porém, ela subitamente interrompeu as risadas internas da Menina:

— Esse homem — ela começou — é a razão de eu nunca dormir.

— Quê? Como assim?!

— É complicado de explicar. Mais tarde eu posso tentar explicar. Não agora. Entender tudo isso é complicado até mesmo para mim. Esse homem nunca foi fácil de se entender, na verdade. Nem eu.

— Que bom, porque eu achava que todo mundo aqui era complicado que nem você. Ainda bem que não, viu?

Mas Annik não estava com humor para sarcasmos. Nunca estava, na verdade. Todas as ironias de Alice sempre foram em vão, e com aquela não foi diferente.

— Este mundo é complicado. Pessoas complicadas são uma consequência disso.

E era verdade. Alice apenas a observou por alguns momentos. E naqueles momentos elas pareceram tão diferentes e distantes que não aparentavam se conhecer. Pelo menos foi o que Alice pensou, claro. Annik certamente não estava pensando nisso, e sim pensando no que Alice havia lhe falado, pensando no seu próprio passado. No entanto, a mente dela não era assunto de Alice, então apenas poderia pensar no que restava: a relação delas duas, o fato de ser Kra’vstanlas e sua casa.

Como seria? Seria melhor ou infinitamente pior que aquele mundo? Será que valeria a pena voltar? Sua casa era ali naquele mundo ou em outro? Por que não se lembrava de quem era? Quem ela era? Perguntas que não teriam resposta nem se pensasse nelas a vida toda. Ela apenas as teria se conseguisse voltar para casa, se conseguisse. E se quisesse. Aqui e agora, ela é apenas uma garota perdida, anônima, quase sozinha. Uma ninguém.

Havia também a “cultura” kra’vstan a se pensar. Era um povo estranho, com hábitos (?) bizarros que tinham a ver com sonhos e sono, uma língua infinita e que tinha profundidade, segundo Annik. Todos nasciam com aquele dom de falar a língua incomum e de saber todas as suas palavras. Como isso era possível? Saber infinitas palavras? Guardar infinitas palavras dentro da mente? Bom, aquele mundo nunca tinha sido normal, mesmo.

E havia algumas coisas, algumas pontas soltas, que a incomodavam e nas quais Alice pensava de vez em quando. O que Annik guardava dentro de sua memória mais bem protegida? Ela já havia dito um pouco sobre ela, mas Alice queria ver, não apenas ouvir sobre. E — lembrava-se muito bem também — tinha o homem que ela torturara e que a Menina matara. Lembrou-se de que ele mencionara um tal “Seth” e dissera também que Annik trabalhara para esse homem. E as memórias intrigantes dela... Tudo aquilo que não tinha a ver com ela, mas que era tão interessante e misterioso, mas que Alice deveria se controlar para ficar de fora. Mas, bem, fazer uma pergunta não mata ninguém, não é mesmo?

— Annik — chamou-a —, lembra daquele cara?

— Qual?

— Aquele que você — a palavra era difícil de sair com neutralidade, mas cuspiu-a para fora como se a vomitasse — torturou. Ele tinha falado de um outro cara. Seth, certo? Quem é esse Seth?

— Ele... ele foi um grande amigo meu. Uma das primeiras pessoas que conheci. Eu o respeitava e ele me respeitava. Então...

— Você o traiu, certo?

— Em partes. Eu nunca o machuquei, nunca fiz nada contra ele diretamente. Mas... digamos que ele não ficou muito feliz com algumas coisas que eu fiz.

— E o que você fez? Matou alguém?

— Não — ela até deu uma risada, como se aquilo fosse uma piada. — Eu fugi. Para lá. — E apontou para o gigantesco obelisco da Universidade ao longe.

Alice acompanhou seu dedo e virou-se para espiar o obelisco Universidade mais uma vez. Olhava-o com medo. Olhava para um Titã na terra, com grande fúria destinada àqueles que não o respeitavam.

— Ele não queria que eu fosse para a Universidade — Annik continuou, e Alice tornou a observá-la. — Mas eu fui mesmo assim. Eu buscava por algo diferente e senti que eu encontraria isso lá.

— E você encontrou, não foi? — Alice perguntou, temendo a resposta. Ela encontrou, sim. Encontrou uma vida banhada a sangue e violência sem fim.

Annik pareceu ler seus pensamentos, pois lhe respondeu sem palavras, sem tirar os olhos dos seus e com um menear de cabeça leve, porém com profundidade. Não precisava entrar em detalhes sobre o que encontrou, pois Alice sabia o que vinha em seguida. E esta não gostaria de saber os detalhes sórdidos — literalmente.

Annik mudou de assunto:

— Vamos ir até lá — e por lá ela queria dizer a Instituição — em breve. Você deveria se preparar.

— O que você quer dizer com “se preparar”?

— Ter a consciência de que hoje nada irá sair do jeito que queremos. — Annik suspirou e se levantou. — Apague a fogueira. Enquanto isso, vou tirar as armas do carro.

— Como você quer que eu apague a fogueira sem ter um balde d’água?

Annik se virou para respondê-la, mas não precisou abrir a boca, pois o vento — o sarlik — respondeu por ela, apagando a fogueira.

— Isso... foi inesperado — a Menina observou. Annik não a respondeu. Apenas ficou observando o que tinha acontecido, como se estivesse hipnotizada. Porém, logo ela deu as costas e seguiu para o porta-malas do carro, e Alice a acompanhou.

Annik destrancou o porta-malas, exibindo o arsenal cheio de armas de fogo e algumas poucas armas brancas, como facas e arcos. Ela pegou um rifle de assalto com trivialidade, como se segurar numa arma fosse algo corriqueiro. E naquele mundo, realmente era. Deveria ser.

— O que acha deste? — ela perguntou, jogando-o para a Menina, que quase caiu de costas ao recebê-lo.

— Meio pesado.

— Certo. — Annik o pegou de volta e o guardou. Depois sopesou cada um dos rifles, mas colocou todos de volta em seus respectivos lugares. Sopesou os revólveres e lhe entregou um prateado. — O que acha de um revólver?

— Se pra você está bom, pra mim também está.

No entanto, não estava bom para Annik, que balançou a cabeça em negativa e pegou o revólver de volta, guardando-o.

— Uma pistola será mais adequada para você. Mais leve e fácil de recarregar. — Ela lhe entregou uma pistola escura e pequena, que parecia ter sido feita sob medida para Alice. — Não está carregada porque não quero que você tenha problemas com isso. — E por “problemas”, a Menina imaginava que Annik pensava em “não sair atirando para tudo quanto é lado” ou “não atirar no próprio pé sem querer”. Annik via-a como uma criancinha a ser protegida, quase como um bebezinho. Aquilo não a irritava, porque naquele mundo ela era o mesmo que um bebê desprotegido. Mas lhe fazia ter pena, porque ela estava arriscando tudo — não que tudo significasse muita coisa, na verdade, mas ainda assim era um tudo e ele era importante — por uma garota que mal conhecia e que, por muito tempo, ressentia-se de confiar nela, que salvou sua vida incontáveis vezes.

Foi a vez de Annik escolher suas armas. Ela retirou o revólver prateado, uma pistola maior e mais clara, e o rifle adornado com madeira. Ficou analisando as armas por mais algum tempo, mas Alice não estava com paciência para aquilo e entrou no carro. Se fosse para esperá-la, que esperasse num lugar com temperatura mais agradável do que naquele frio absurdo do deserto.

Annik demorou, mas voltou. Tinha escondido bem as armas de fogo que pegara. Annik só notou o clássico taco de baseball e o rifle, que estava escondido em suas costas, sob seu sobretudo. Enquanto isso, a Menina tinha apenas sua pistola semi-automática guardada na parte de trás da calça e (ainda) sem munição, ainda por cima. Alice temia disparar aquilo com medo de deslocar o ombro por causa do recuo da arma. E não apenas medo daquilo, claro. A morte ainda era uma ideia fresca em sua mente, e a ideia de matar era mais fresca ainda.

Não sabia o que iria fazer quando tivesse que atirar em alguém. Iria pensar em alguma coisa na hora certa, mas não sabia o que iria fazer. Talvez matasse. Talvez ameaçasse, apenas. Talvez fugisse. Não os inimigos, mas ela. Previa que sua reação seria imprevisível.

Annik ligou o carro, finalmente, e seguiram viagem por um tempo não muito longo, mas também não muito curto. O rádio estava desligado, evidenciando o clima pesado em que estavam e pelo qual iriam passar num futuro próximo, tão próximo quanto um objeto a um estender de mãos. Mesmo com o aquecedor ligado, o clima frio ainda pairava dentro do carro feito água parada. E mesmo com o clima frio, o ar parecia sufocante e abafado. Os olhos bem abertos de Annik e Alice ultrapassavam a estrada e miravam o horizonte como se observassem o céu além dele.

— Vamos parar o carro mais para frente — Annik determinou — e seguiremos a pé depois. É bom que você cubra seu rosto para que não a vejam de longe nem que descubram que você não tem kayrn. — Annik entregou-lhe um tecido negro que tirou do bolso de seu sobretudo. — Use isto como uma bandana.

Alice respondeu apenas com atos; pegou a bandana e a amarrou ao redor de seu pescoço. Não cobriu o rosto com ela porque ainda não era necessário, mas iria fazê-lo quando chegasse o momento.

Não tardou até que o carro, ao invés de seguir o tracejado serpenteante, curvou à esquerda num movimento tão fechado que os pneus cantaram no asfalto negro de piche recém aplicado da Rodovia. O carro saiu do asfalto e subiu na areia, cujas ondas tentavam invadir o pez, e traçou um caminho com pegadas extensas e cheias de ranhuras até que finalmente Annik freou e desligou o carro.

— Vamos seguir a pé daqui em diante — ela avisou, abrindo a porta do carro e amarrando em seu rosto uma bandana também preta. A Menina apenas a seguiu.

Caminharam por entre dunas de areia tão fofas que pareciam areia movediça. Com o tempo, a areia foi ficando rala e dando lugar a um chão duro, árido e cheio de rachaduras. Havia plantas rasteiras, muitas pedras e cactos nessa região. Era mais fácil de andar por ali do que nas dunas, mas as dunas tinham uma certa soberania, uma certa onipotência, que aquele chão miserável não possuía. Era estranho pensar que as dunas não estavam presentes ali, que elas não viam nem sentiam a tudo. Contudo, a Menina, assim que pensou nisso, sentiu-se observada por olhares de ódio e escárnio. Muitos olhos, um para cada grão de areia presente no Mundo, um para cada estrela no espaço, um para cada universo presente na teia de dimensões do multiverso. Sentia todos os olhares sobre si, mas não via nenhum par de olhos. Talvez eles observassem sem olhos, pensou, porque aquela sensação foi forte demais, conveniente demais, para ser apenas um reflexo de seu subconsciente tentando convencer a si mesma de que o Deserto é, sim, soberano em qualquer lugar daquele mundo.

Via o obelisco aproximar-se de si e percebeu o quão deificado ele era. Era tão poderoso e divino que talvez o certo fosse chamá-lo por “Ele”, e não “ele” apenas.

Sentiu-se como uma serva diante daquela construção tão sobre-humana que teve de resistir à vontade de se ajoelhar para que o obelisco não a pulverizasse com a força do olhar — que aquela coisa certamente deveria ter, assim como as areias podiam observá-la com desdém. No entanto, a Universidade a olhava com um olhar de uma coisa banal e medíocre, assim como um patrão olha seu escravo. Olhava-a como uma pessoa olha para o lixo: apenas observando corriqueiramente, sem nenhum interesse em particular. Ele a observava como lixo, pois assim como este, ela deveria ser inútil, sem sentimentos, sem propósito. Um ser qualquer, cuja existência é tão nula que foi reduzida ao quase nada. Sua presença diante da construção era tão reles que mesmo um número elevado à potência de menos vinte poderia ter um valor maior que a de sua existência.

Também sentia medo. Medo de que aquela coisa a aniquilasse assim que tentasse — ousasse! — observá-la. Porque os seres de menor existência não têm o direito de pairar os olhos sobre aqueles de existência maior. Observá-lo soava tão proibido que se sentia infringindo uma lei arcaica. Todavia, o obelisco sequer notava sua presença ali, e mesmo parecendo proibido, Alice não desviou o olhar, assim como a construção não moveu nenhum tijolo para fazer desaparecer sua vidinha miserável e pequena. Então, se Alice não tinha importância, não havia de ter medo. Pelo menos não o medo de ser aniquilada subitamente por um imóvel.

E o medo — aquele medo especificamente — se fez nulo dali em diante.

Annik parecia uma ladra camuflada em meio à noite. Suas roupas todas escuras se mesclavam no horizonte negro e sem fim do deserto, tornando-a uma sombra viva. Quando Alice parou para observá-la, ela virou a cabeça e lhe dirigiu um olhar ameaçador, que a atravessou como uma lança. A Menina, temendo aquela expressão guerreira, parou de admirá-la e continuou seguindo seu caminho atrás de Annik. Possivelmente a expressão de Annik não tinha nada de ameaçadora, mas com apenas seus olhos visíveis, foi assim que pareceu a Alice.

Já estavam tão próximas do destino que Alice sentia-se como uma bactéria diante de um gigante com quilômetros de quilômetros de altura. A sombra do edifício era tão grande e tão fria que onde estavam talvez estivesse fazendo um grau negativo. A friagem, no entanto, não era culpa da sombra, mas do próprio obelisco — que não era tão fino como a Menina pensava —, que emanava uma glacialidade anormal. Era a respiração daquele titã gigantesco. A inspiração parecia deixá-la desnorteada, sem ar, como se ele roubasse o oxigênio presente. Quando expirava, porém, devolvia o ar juntamente com o frio pungente.

Alcançaram as paredes da base do obelisco. Já podiam ver homens armados da Organização patrulhando a entrada, que estava na altura da base. A grande base que parecia ser feita de mármore tinha formato octogonal e, num dos lados, tinha uma grande rampa que tocava as areias do deserto e subia até os portões de entrada da Universidade. Os homens patrulhavam ao redor do octógono e ocasionalmente caminhavam até a rampa, mas não a desciam completamente.

— O que a gente vai fazer, Annik? — perguntou Alice sussurrando, com os membros levemente trêmulos de medo.

— Você vai me esperar aqui enquanto eu subo — ela respondeu, já escalando a parede.

— E o que você vai fazer?

Annik não respondeu. Terminou de escalar e finalmente pôs-se de pé na base. Esgueirou-se até uma área cheia de sombras e tornou-se quase invisível. Então, respondeu a pergunta de Alice, mas não com palavras. Com tiros.

O primeiro tiro acertou um dos guardas no peito e fez um barulho tão grande em meio ao silêncio calmo da noite que pareceu que o céu estava sendo quebrado. O outro guarda — havia apenas dois presentes na entrada no momento em que Annik chegara à base — ficou automaticamente alerta e procurou por um intruso no lugar. Contudo, não achou ninguém, já que Annik parecia ter se tornado parte do obelisco negro. Quando menos esperava, o homem também levou um tiro na cabeça e caiu automaticamente, largando o rifle no chão.

O local aparentava estar seguro àquela altura, mas Annik ainda permaneceu escondida nas sombras, com certeza esperando uma próxima vítima, que saiu pelos portões principais. Annik foi rápida e nem precisou sair de seu esconderijo para eliminá-la com um tiro na garganta que fez esguichar tanto sangue quanto a mordida de um vampiro.

Annik estalou os lábios num “pssss” que pareceu um presságio de um assobio, e a Menina também escalou as paredes.

— Já tá tudo certo? — perguntou a Menina assim que pôde ver a figura de Annik sobrelevando-se sobre a sua.

— Por enquanto. Fale sussurrando e mantenha-se sempre atrás de mim e perto das sombras.

Adentraram a Universidade sem o mínimo de elegância que lhe era digna. Alice seguiu Annik por todos os cômodos, todos eles muito grandes e espaçosos, o que realmente contradizia o pensamento anterior da Menina sobre a Universidade ser um local apertado. Passaram por grandes corredores, escadarias em espiral, salões enormes e pátios tão grandes, mas tão grandes, que pareciam estar a céu aberto, pois não era possível nem mesmo ver o teto. Estava explicado por que aquele edifício conseguia ultrapassar os céus. Com salas tão grandes e espaçosas como aquelas, ele tinha mesmo de ser quilométrico!

Tomaram todo o cuidado para não serem vistas, claro. Mantinham-se sempre nas sombras e tomavam apenas corredores e salas desertas. A respiração da Menina estava tão audível de nervosismo que pensou que Annik fosse repreendê-la por isso, mas ela manteve-se focada em seguir o caminho (e Alice tentou manter-se focada em segui-la, por sua vez). Às vezes, para evitarem trombar com algum estudante, professor ou até mesmo algum guarda da Organização, entravam em salas de aula ou em quartos de dormitório vazios e esperavam até que eles fossem embora e deixassem o caminho livre para elas.

Quando estavam num desses quartos, protegidas pelas paredes, pela escuridão e pelo vazio, Alice perguntou:

— Aonde a gente tá tentando chegar?

— Na biblioteca — respondeu Annik com calma na voz. Tamanha calma era surpreendente, já que ela havia matado três pessoas e agora mantinha a adrenalina a mil, tentando esconder a si mesma e a Menina de quaisquer olhares que pudessem vir de dentro da Universidade. — É lá que provavelmente vamos achar o livro.

O livro. A conversa com Isaac. Tanta coisa aconteceu depois daquilo que até mesmo tinha se esquecido do livro. Parecia que aquele momento tinha acontecido havia tanto tempo. Mas na verdade, ainda estavam na mesma noite que a noite em que chegaram à casa dele. O tempo ali parecia não passar. O tempo ali não passava. Era estagnado. A Menina se sentiu presa no tempo quando pensou nisso, uma sensação que se assemelhava muito à claustrofobia.

Então depois de muito desviarem do caminho original, muito se esconderem para não serem vistas, muito se apressarem num corredor vazio com medo de chegar alguém que pudesse vê-las, muito descerem e subirem escadas, elas chegaram à biblioteca.

Era um aposento gigantesco, com livros subindo pelas paredes que não pareciam ter fim de tão altas — eram tão altas quanto às paredes do pátio. Pareciam estar envolvidas por livros, livros de todos os tamanhos, todas as cores, todas as idades...! Alice ficou perdida ao ver tantos livros formando quase um labirinto. Annik também parecia perdida, rodando e observando as estantes. Estava procurando o tal livro, provavelmente.

A biblioteca não era apenas alta; era larga, e suas dimensões eram tão grandes que as luzes não conseguiam envolver todo o cômodo. Havia locais completamente emersos em escuridão, mas eram em sua maioria cantos. A maior parte das seções e estantes eram bem iluminadas, bem como a entrada, onde estavam.

Todavia, envolta pela escuridão das seções mais distantes havia uma figura que apenas Alice pareceu notar.

— Annik — Alice chamou-a, segurando-a pela mão e pelo braço, tentando arrastá-la —, vem cá...

— Espere, eu já...

— Você não vai a lugar nenhum — uma terceira voz, feminina e amolecida pela idade, cresceu do fundo da biblioteca e se propagou até onde elas estavam, interrompendo Annik. Alice sentiu a mão dela ficar ainda mais gelada quando ela virou-se para ver a dona da voz. Ela estava a cinco passos delas, e a Menina apertou ainda mais o braço de Annik amedrontada. A mulher não parecia ser uma ameaça porque estava desarmada e parecia ter seus quarenta e poucos anos, mas se fosse, o destino de ambas estava selado ali. — Annik — a mulher mexeu o rosto alegremente, sorrindo de tal forma que as rugas ao redor de seus olhos ficaram ainda mais sulcadas. — É bom te ver de novo. — O sorriso da senhora era tão alegre que seus olhos puxados pareciam quase fechados.

Mesmo a fala sendo direcionada a Annik, esta nada disse, apenas puxou a bandana para baixo, revelando uma face surpresa. Ela estava com os olhos levemente arregalados e boquiaberta, fitando a mulher.

— O gato comeu sua língua, Annik? — a mulher estimulou-a a falar. — Você não mudou nada desde que esteve aqui pela primeira e última vez. Aliás, deixe-me corrigir: você mudou bastante. Não fisicamente. Mas... digamos que você não costumava deixar mortos quando andava pelos corredores. Por muito tempo ouvi as atrocidades que você cometeu. Eu a princípio não acreditei que pudesse ser você, mas depois eu parei e pensei: — a mulher passou a língua pelos lábios, fitando Annik com um olhar que parecia adentrar todos os pensamentos dela (um privilégio antes concedido apenas a Alice), e então prosseguiu: — “Talvez realmente seja ela. Ela realmente nunca foi uma aluna muito bondosa”. Não no sentido de ser boa aluna, claro. Você bem sabe que foi uma das melhores alunas que já entrou aqui. Seu nível era tão alto que você era comparada aos Obatenva pelos administradores. Mas então... — o sorriso da mulher murchou, e sua expressão passou a ser séria e triste ao mesmo tempo. — Então você fugiu para seguir as loucuras da Legião, e não bastava apenas isso: levou junto alguns dos nossos. Foi uma grande perda para nós, várias grandes perdas — a mulher falava pausada e calmamente, ressaltando todas as suas frases com clareza e até mesmo inteligência. Seu discurso era tão interessante que nem Annik nem Alice ousaram interrompê-lo; ambas queriam saber aonde ele iria chegar —, mas quando soubemos o que você tinha feito quando se tornou Legionária... Aí nós mudamos de opinião. Queimamos tudo o que você tinha feito, escrito, todos os quadros com suas fotos, todos os seus pertences que você deixou quando fugiu, tudo. Nós nos desfizemos de tudo que um dia foi seu, porque, no momento em que soubemos as coisas terríveis que você fez, que você tem feito, você se tornou uma vergonha para nós. Você deixou de pertencer a este lugar. Então, Annik, por que voltou?

Annik pareceu terrivelmente abalada. Seus olhos mexiam-se rapidamente, procurando algo. Ela engoliu em seco. Nem mesmo tinha uma resposta para aquele discurso tão bem elaborado da mulher.

— Você não tem palavras, não é? — a mulher novamente desafiou-a. — Pois saiba que você está certa em não ter nenhuma. Não há motivo para você estar aqui, não é mesmo?

— Senhora Mayumi, eu... — Annik tentou se explicar, mas era óbvio que era uma explicação genérica, nem mesmo pensada.

— Apenas me diga o que veio fazer aqui.

Annik respondeu com tamanha rapidez que pareceu até que ela estava com medo ou que estivesse sendo forçada a fazê-lo, como se fosse subserviente:

— Vim procurar um livro — soltou a frase sem nem mesmo persistir em guardá-la. — Kra’vstanlas: ¿Trie’fan ot Nakze’nie?. Isaac me disse que ele estaria aqui.

— Isaac... Lembro-me dele. Também seguiu você com suas loucuras sobre a Legião depois de um tempo. Mas sobre esse livro... ele está certo. Nós temos esse livro aqui.

— Você... você pode me entregar? — a voz de Annik soou bondosa.

— Ha! — A mulher esboçou um largo sorriso de sarcasmo. — E por que eu deveria entregá-lo a você? Eu não quero ajudá-la, Annik. Não mais.

— Por favor... — Pela primeira vez Alice via Annik daquela forma. Ela, antes sólida como uma rocha, começava a ter rachaduras. Antes firme como uma barra de ferro, agora começava a se dobrar.

— Você é a pessoa mais desprezível deste mundo, Annik. Não devemos dar nada a você. Você é nossa inimiga. É inimiga do mundo inteiro. Por que acha que nós nos aliamos à Organização, ou melhor, aos Corvos?

Annik ficou mais uma vez boquiaberta. Demorou um tempo para que ela digerisse aquelas palavras e finalmente desse sua réplica, recheada de emoções. Mais uma vez, nunca antes Alice tinha-a visto tão sentimental e abalada.

— Então é por isso... — ela disse, com negação em sua voz e em seu balançar de cabeça. — Vocês se uniram a esses... monstros... por raiva de mim?! — havia negação, ódio, tristeza, vingança e inconformidade em sua voz. Antes evitava olhar para a mulher, mas agora Annik a fitava com um olhar calmo, mas firme. Um olhar de alguém que possui coragem para enfrentar o passado.

— Não é por você, Annik. Esse sempre foi seu grande problema... — A mulher suspirou. — Achar que tudo tinha a ver com você. Mas respondendo-lhe: não. Isso não tem a ver apenas com você, mas com toda a Legião. Por muito tempo nos mantivemos neutros em relação a essa rixa estúpida, mas agora tomamos um partido.

— Ah, então é isso? — ela ergueu as sobrancelhas, fingindo surpresa, mas não alterou o tom de voz. — Vocês simplesmente vão aceitar esse bando de cretinos aqui sem nem mesmo pararem pra pensar nas merdas que eles fazem? — Annik estava tão descontrolada emocionalmente que estava falando palavrões. E pior: falando errado. Ela franziu os olhos e as sobrancelhas e continuou, negando com a cabeça: — Vocês são tão ruins quanto eles, quanto eu. — Annik suspirou. — Desculpe-me por isso, senhora Mayumi. Sempre gostei de você, mas... — Annik retirou a arma de trás da calça e apontou para ela. — Nós não vamos sair daqui sem o livro. — Mesmo a reação de Annik sendo fria e bem calculada, Alice pôde notar sua voz leve até de mais, sem obstinação, e a mão direita segurando o revólver com uma certa resistência. Ela ainda não estava firme. Parecia fazer aquilo sem vontade.

— Pelo jeito o que eu te falei foi em vão. Eu sou uma idiota, mesmo. Pensei que eu pudesse convencê-la a se entregar ou pelo menos se arrepender do que fez. Mas pelo jeito, eu falhei. Você vai continuar sendo a mesma... assassina — ela praticamente cuspiu essa palavra com ódio — de sempre. Hmpf. Venha. — A mulher conduziu-as pela biblioteca sob a mira do revólver de Annik, que permaneceu apontado a todo instante enquanto ela as guiava. — Eu vou entregar o livro, mas não pense que você vai sair livre daqui. Os guardas estão prontos para te matar assim que você puser os pés fora desta Universidade. Eles estavam te observando o tempo inteiro. Os snipers estavam prestes a enfiar uma bala na sua cabeça, mas eu, tola, esperei você vir. Eu quis ter uma última conversa com você, Annik. E talvez essa seja a última conversa que você vai ter na vida. Você e... quem é ela? — Só naquele momento que a senhora Mayumi parecia notar a presença de Alice ali. A Menina sentiu o coração apertar e segurou mais uma vez as mãos de Annik.

— Ela não é ninguém com quem você deva se importar.

— Ah, mas é claro que eu devo! Se ela está te seguindo, Annik, é porque deve ser tão... nojenta quanto você.

— Parece que você finalmente declarou seus verdadeiros sentimentos por mim, senhora Mayumi — Annik sarcástica? Alice segurou-se para não rir. Não podia rir naquele momento tão crucial. — Eu realmente nunca acreditei que você gostasse de mim. É bom saber a verdade agora. — Sorriu. Um sorriso verdadeiro, lindo e bem delineado, mas com um toque de maldade que era bastante desconfortável à Menina. Por mais que Annik ficasse incrivelmente linda sorrindo, Alice não conseguia achar aquilo agradável.

A mulher nada respondeu, apenas continuou levando-as para mais profundamente na biblioteca.

— Estamos perto do seu livro, Annik. Mas eu acho que você vai se desapontar com ele.

— Hm. Por que acha isso?

— Porque ele nunca foi terminado. Obaten Alexander foi definhando, ficando louco, e nunca terminou o livro. Na verdade, deixou ele com mais perguntas do que com as respostas que prometia. Esse exemplar é o único porque é o rascunho original do livro. Nós o lemos e só vimos afirmações insanas, que não condizem com a realidade. É estranho que você, tão inteligente, esteja procurando por devaneios de um velho senil.

— Por que motivo eu estou procurando isso não tem a ver com você.

— Não se preocupe. Eu não vou mais me meter nos seus assuntos. Nós estamos seção certa. Deixe-me procurar o livro para você. — Annik anuiu, ainda apontando o revólver para a mulher. — Pronto, aqui está — ela disse, retirando um exemplar empoeirado da estante e entregando-o para Annik, que largou a mão de Alice para pegá-lo. — Agora vamos ver se você consegue sair daqui com ele. — Mayumi deu uma risadinha. — E pode abaixar essa arma agora. Já te dei o que você queria. Já pode sair por aquela porta, se conseguir.

Não suportando mais as provocações de Mayumi, Annik explodiu:

— Eu não apenas vou sair daqui com este livro, mas vou matar todos os seus homens e vou matar você também se não calar essa boca desgraçada! — Annik guardou o livro dentro do sobretudo. — Vamos embora, Alice.

Alice apenas assentiu tremulamente.

— Alice? — perguntou Mayumi, com os olhos arregalados analisando bem a Menina. — Essa menina... Ela não se chama Alice! — Ela olhou mais uma vez e seus olhos se arregalaram tanto que a Menina imaginou que ela tivesse descoberto. — Eu não acredito... — sua voz firme tornou-se incrédula e frágil. Annik, percebendo aquilo, não perdeu a oportunidade de irritá-la:

— Agora sabe por que estou em busca do livro, não é mesmo? — Ela sorriu. Um sorriso com a mesma maldade de antes, mas com um novo elemento incrementado nele: a soberba. — Agora vamos, Alice. Não quero mais perder tempo neste lugar.

— C-certo — a Menina respondeu, chocada com tudo o que aconteceu ali, chocada com as oscilações emocionais de Annik; um momento firme, um momento abalada, um momento presunçosa como nunca antes tinha visto.

Correram em meio a um labirinto de estantes e livros para fora da biblioteca.

— Annik — a Menina ofegou enquanto corria —, talvez... — Buscou ar. — Talvez esteja cheio de homens do lado de fora da biblioteca só esperando que a gente saia pra nos matar!

Annik crispou as sobrancelhas, caçando alguma estratégia para tirá-las dali. No entanto, antes que Annik pudesse pensar, as grandes portas duplas da biblioteca se abriram de supetão, e quatro homens armados com rifles entraram. Annik, com reflexos rápidos, apontou o revólver que usara para ameaçar Mayumi em um deles e atirou antes que ele apertasse o gatilho. Os outros três começaram a atirar milésimos depois. Annik empurrou Alice para trás de uma estante para protegê-la enquanto ela mesma se jogava no chão para desviar das balas.

A vontade de Alice era gritar e gritar e gritar incontrolavelmente, se jogar nos braços de Annik e esperar que ela a protegesse, mas apenas ficou muda, o coração quase tendo uma taquicardia de tão rápido que pulsava, os membros trêmulos que não conseguiam fazer nada além de ficar em uma posição fetal. Sua respiração não tinha um padrão. Respirava tão rapidamente que seus pulmões não pareciam ter a quantidade de ar ideal. Sabendo disso, começava a respirar fundo, sentindo-se tonta com isso. Sentia o rosto pinicar. Passou as unhas pelas bochechas para coçá-lo e sentiu que estava molhado. Lágrimas. Chorava de pânico e nem mesmo tinha se dado conta disso antes. Ouviu disparos, mas não pôde contar quantos porque estava com tanto terror que nem mesmo prestou atenção ao seu redor. Apenas prestava atenção em seu corpo, tremendo incontrolavelmente, e não conseguia pensar. Sua mente era um vazio. Sua mente era nula.

Viu Annik aproximando-se dela e levantando-a. Alice gemeu como um bebê perto dela. Estava com tanto medo que temia não conseguir levantar, mas Annik puxou-a, obrigando-a a fazê-lo. Ela puxou a Menina pela mão na biblioteca, mas Alice trombava nos livros, tropeçava e caía por causa de suas pernas vacilantes. Annik não teve outra alternativa senão pegá-la no colo assim que ela caiu pela segunda vez. Alice segurou-se tanto nela que em um momento, Annik reclamou que estava sendo sufocada, mas a Menina nem mesmo prestou muita atenção nas palavras que ela usou. Também ouviu Annik gemer durante um momento, mas não soube por quê.

Então Annik, carregando Alice, correu em linha reta pela biblioteca imensa em meio a uma chuva de tiros que derrubava e furava livros, quebrava estantes, fazia folhas de papel voar por todo o grande salão, criava o caos. Annik usou o mesmo corredor onde estava Mayumi. Ela estava debruçada no chão, numa tentativa pífia de evitar os tiros. Annik, mesmo suportando o peso extra de Alice, correu o mais rápido que pôde e pulou sobre a mulher agachada no chão. Foi correndo em linha reta, em linha reta, em linha reta, até que Alice pôde ver a parede. Em quê Annik estava pensando? Em atravessá-la? Mas então viu a janela. E quando estavam a dez passos dela, a Menina gritou:

ANNIK!!!!

Mas ela não freou. Correu em direção à janela, e o impacto dos corpos das duas a quebrou.


Assim que o vitral azul se partiu, Alice viu o céu roxo e alaranjado da alvorada, o sol nascendo no fim do mundo, mas não viu o chão.

 


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