Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 27
XXIV - A Dor


Notas iniciais do capítulo

https://www.youtube.com/watch?v=TgEB3rY8ZGI
Still Corners - Beginning To Blue.



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XXIV

A Dor


Noite.

Noite.

Noite.


NOITE.


N O I T E.

Odiosa.

Interminável.

Tenebrosa.

Escura.


A noite nunca acaba. Nunca acaba. Não aguenta mais olhar pela janela. Dorme e acorda. E quando vê, ainda é noite, noite sem fim.

E o ciclo se repete…

A noite iria deixá-la louca. A noite e o silêncio. E aquilo. Ela entrou na mente de alguém com tanta facilidade que pareceu um sonho, simples e inocente. Não soube como reagir àquilo. Primeiro matar, agora aquilo. E talvez pudesse haver coisa pior. Naquele mundo sempre havia o pior. Era um mundo que explorava o que a mente tinha de pior. O que a mente dela teria?

Sentia-se doente. Não tinha nome, não sonhava. Ficar sentada no carro durante tanto tempo contribuía para com aquela sensação. Não tinha vontade de espremer palavras de sua boca como faria a um limão para fazer limonada. Espremer palavras já era algo difícil e forçado; era falar em momentos cruciais e apenas neles. Contudo, ela não tinha vontade nem de pressionar uma vogal a sair de suas cordas vocais. Nem de sentir sua língua ou seus dentes. Queria uma anestesia para que pudesse deixar de sentir que tinha a capacidade de falar para nunca ser obrigada a abrir a boca.

— Você vai continuar assim? — Annik parecia perceber seu desânimo sem precisar tirar os olhos da auto-estrada. Ela nunca pareceu se incomodar com o silêncio. Por que se incomodaria agora?

“Assim como?”, ela diria. Mas não adiantava fingir-se de desentendida. Nem ela própria tinha vontade de agir daquela forma. Tinha vontade apenas de dormir e dormir. Agora entendia por que Annik era tão conturbada. Imagine ter memórias terríveis percorrendo sua mente o dia inteiro e não poder escapar delas jamais? Era torturante. Queria hibernar. Acordar apenas quando já se esquecesse.

— Eu já tô cansada — respondeu. — Você não cansa de dirigir o dia todo?

— Não.

Suspirou. Já estava com aquela mania também.

— Você não cansa de ficar vendo essa estrada o dia todo? Ou melhor, a noite toda?

— Não.

Como você não cansa?

— Eu penso. Eu não presto atenção na estrada. Eu penso, apenas.

— Em quê?

Annik olhou ao redor desconcertantemente. Ela não esperava aquilo, era óbvio. Ela não gostava de falar de si mesma, deveria ter previsto isso. Mas tinha de reconhecer: ela contornava muito bem as situações, mesmo dando meias-repostas.

— Em tudo que aconteceu e que tem acontecido.

— Nossa, essa descrição foi bastante útil, sério, obrigada, Annik — não era o que ela queria dizer, mas… bem, força do hábito. Parecia que as palavras saíram primeiro que seu pensamento. Parecia que nem mesmo as havia dito, mas que elas tinham atravessado seu crânio e se tornado ondas sonoras.

Entretanto, Annik não notou a ironia. Ou fingiu não notar, como sempre.

— Ahm, por que não conversamos sobre… sobre o que aconteceu? — ela sugeriu.

— Você? Querendo conversar? Isso é novidade pra mim — de novo. Ops. Certos hábitos são difíceis de perder, mesmo no estado de humor extremamente animador e extasiante [não, isso foi ironia também] de Alice. — Que parte do “sobre o que aconteceu” você quer conversar sobre?

— Eu não quero, mas… não sei, você não gostaria?

— Pra falar a verdade, eu gostaria — ao contrário das duas falas anteriores, a Menina pensou por pouco tempo, mas com uma profundidade abissal para responder dessa forma. Foi como se seu cérebro fosse uma grande cratera e ela tivesse percorrido-a até chegar ao fundo. — Na casa do Isaac, ele mencionou sobre o seu kra’vstan. Qual é o seu kra’vstan? — perguntou com tanta calma que parecia até contradizer seu estado de humor paranoico/louco/triste/avoado/et cetera.

Annik passou a mão sobre o rosto. Ela não queria falar sobre aquilo. Em outra ocasião, a Menina teria parado por aí, mas não agora. Annik omitia muitas coisas, coisas que Alice tinha o direito de saber. Ela disse que queria conversar, então vamos conversar, afinal.

[Suspiro.]

Vaerteyn. Esse é o meu kra’vstan — e Annik também não parecia muito disposta a desconversar ou responder pela metade, como sempre fazia. Talvez fosse por isso que ela tivesse sugerido aquela conversa. Ela queria desabafar, coitada. Alice sentia pena.

— Certo. — Calculou o próximo passo calmamente. — No seu sonho — muitos pontos finais. — Eu vi algumas… cenas. Não deu pra ver direito todas elas. O que elas significam?

— Momentos. Memórias. Lembranças.

— Teve um momento que eu fui… sugada. E acordei. Por quê?

— Você foi muito fundo na minha mente. Tão fundo que minha cabeça te expulsou de lá. Imagine que isso seja… uma porta trancada. Você só pode passar por ela com uma chave, certo?

— Aham.

— Essas memórias que ficam bem ao fundo é como o que há por trás da porta. Você não pode acessá-las a não ser que eu permita. Que eu destranque a porta para você.

— Que tipo de lembranças são essas?

— Momentos que não quero lembrar. Ou que não quero esquecer. Mas todos eles, muito marcantes.

— Pode me contar um?

— Se estão trancados, é por um bom motivo. — A Menina nem se decepcionou; já imaginava aquilo. Talvez não imaginasse a forma com que ela diria; ela soou meio rude. Mas algo lhe dizia que ela não tinha a intenção de soar assim. Era o jeito dela, mesmo. Já convivia com ela tempo o suficiente para saber que era assim que ela funcionava: sempre séria, poucos risos, olhos tristes que visualizavam o passado a todo o momento. Só não imaginava o que ela diria depois: — Mas talvez algum dia, melhor que contar, eu posso mostrar a você.

— Você… vai me mostrar?

— Talvez. Mais para talvez sim que talvez não.

— Ahm… Uau. Obrigada. Significa muito pra mim. Mesmo sendo um talvez.

— Isso também significa muito para mim. — Deveria ser algo feliz a se dizer para alguém, mas, quando Alice olhou para o rosto de Annik, viu dor. Muita. Mudou de assunto.

— Quando eu acordei, seu nariz… tava sangrando. Por quê?

— Porque você foi muito profundamente. E tirar você de lá não é algo fácil. Às vezes, esse tipo de coisa acontece.

— Doeu?

— Foi como se estivessem perfurando meu crânio. — Numa escala de um a dez, aquilo ali poderia ser onze. Annik, entretanto, dizia aquilo como se fosse um mero quatro. O dez dela era o que havia guardado na porta trancada de sua mente.

— Sabe… tem muitas coisas nesse mundo que eu não entendo. Tipo… por que esse lugar é um deserto gigante? Ou por que as noites e dias e tardes demoram tanto? Sabe… eu tenho muitas dúvidas de como… funciona.

— Funciona porque é assim que deve funcionar. Neste mundo, essas são as regras, assim como cada outro mundo tem as suas. Como cada outro mundo de cada outro universo tem as suas.

— Tem outras coisas também. Sabe, quando você tava dormindo… e eu te acordei… e depois você disse que não conseguia dormir, não podia. Por quanto tempo você ficou dormindo? Isso tem a ver com o fato de você não poder dormir mais?

— Por muitos tempos. E tem. Em parte, mas não por completo. Sabe, aqui, no Mundo, nós podemos dormir e dormir. O dormir que você já conhece é tratado pelo nome de iohr. Dormir — sua voz soou serena quando pronunciou o verbo. — Já o dormir é tratado por outro nome: ihrv. Quando se dorme — sua voz agora soava rígida como uma rocha —, é como… entrar em coma. É quase como morrer. Claro que não é exatamente como essas duas coisas, mas é a melhor aproximação que posso lhe dar. Entrar em coma possui um nome próprio, assim como morrer. A única diferença é que, no sono ihrv, você não pode acordar por conta própria, diferente do coma, em que isso acontece (mesmo que leve muitos tempos). E, diferente da morte, você ainda pode acordar, mas para isso, é necessário falar o segredo. Cofres têm segredos. Mentes de pessoas em sono ihrv, também. Você me acordou porque disse o meu segredo. Era “deserto”. Se você não tivesse dito “deserto” em voz alta, eu nunca teria acordado e ainda estaria lá, dormindo.

Uau. Era informação demais para sua cabeça. Não sabia nem mesmo o que pensar, apenas de que era isso que precisava. Uma forma de dormir, dormirr, dorrmirr, dormirrrrrr… ZZzzzzZZZzzz…

— Parece uma forma de… se matar.

— Tecnicamente. Ou uma forma de escapar, no sentido literal da palavra. Há quem ihrv para se fingir de morto por um tempo e depois retornar. Então deixam o segredo com alguém de confiança para que esta possa acordá-la no futuro.

— É por isso que você não consegue dormir mais, né? Porque dormiu por muito tempo.

— Não. — Ela balançou a cabeça com vivacidade.

— Então por quê?

— É ainda mais complexo que isso.

— Mais?! Sério, vocês têm uma língua esquisita, dá pra entrar nos sonhos de vocês, vocês moram num deserto gigantesco e têm uns sonos estranhos. O que mais vocês inventaram?

Annik sorriu, dando uma breve — brevíssima — risada.

— Nós não inventamos nada. É o que eu disse: são as regras deste mundo.

— Você tem razão… Tem outra coisa que quero perguntar, também. Sobre a tal Instituição. — Fez aspas com os dedos. — Isaac disse que eles poderiam estar aliados com a Organização. E se a gente chegar lá e… bem, você sabe, eles quiserem nossa cabeça?

— Eu não trouxe as armas à toa.

Não.

— É, e vai mandar eu usar elas de novo. — Não iria nunca usar aquelas armas de novo. Nunca. Com uma maldita arma, ela havia destruído a vida de alguém literalmente. Se pudesse desfazer tudo aquilo, se sentiria menos pior. Sentir-se-ia bem melhor, para falar a verdade. Não queria ver mais ninguém sofrendo, fosse dor física ou emocional. Aquele mundo já estava saturado de desgraças e ela não iria ajudar a propagá-las.

— Com sorte, não vamos nem mesmo precisar dispará-las. A Organização não está lá, acredito, mas devem ter corrompido todo mundo de lá e convencido-as a se aliarem a eles, e isso inclui nos entregar, caso passemos por lá. Mas não se preocupe: com a reputação que eu tenho e uma arma nas costas de alguém, eles vão pensar duas vezes em nos delatar para a Organização. O problema vai ser o que vem depois… Vão nos delatar de qualquer jeito. Posso impedir que sejamos entregues à Organização enquanto estivermos na Instituição, mas não depois. Vão enviar pessoas para tentar nos matar depois, e isso é inevitável. Vamos ter de lidar com eles mais tarde.

— A gente devia… sei lá, deixa isso pra lá. O que importa se eu for a Kra’vstanlas ou não? Eu disse pra você que queria voltar pra casa e é só isso que eu quero.

— O problema é: eu não faço a menor ideia de como levá-la de volta para sua casa. Eu estou tentando, certo? Sabe, ninguém que cai no Mundo… — Ela fez aquela expressão de alguém que tenta falar algo, mas tem as palavras presas na boca, presas porque não sabe que palavra usar ou porque não sabe como usá-la — volta para onde veio, se é que veio de algum lugar. Quando eu disse que iria procurar sobre essas coisas do Kra’vstanlas… bom, eu fiz isso em parte porque eu quero saber. Digo, eu quero saber a verdade sobre todas as histórias que contam sobre você. E em parte, porque eu disse que ia levá-la para sua casa. E vou.

— Isaac disse que o Kra’vstanlas deve lutar contra o Caos. Você acredita nisso?

— Eu não sei. Mas você apareceu num momento muito caótico do Mundo. Talvez seja verdade.

— Você acha que eu devo… sei lá… ajudar?

— E como? Você pode ser a Kra’vstanlas e tudo mais, mas… sinceramente, eu só vejo uma menina quando olho para você.

Grande palavra de incentivo. Mas era verdade, como sempre. Alice era apenas uma garota que caiu num mundo que nem sabia como funcionava. Como ela iria ajudar em alguma coisa? Só iria atrapalhar, na verdade.

— Então, Annik, você promete me levar pra casa quando você encontrar a resposta?

Annik a olhou bem profundamente. Seus olhos transpuseram sua alma. Lia-a. Via-a. Parecia debater com sua alma e consigo mesma. Seu olhar era paralisante. Sem sentimentos. Parecia querer entendê-la. Querer penetrar sua mente do mesmo modo que Alice fizera com ela. Sua resposta demorou uma eternidade. Naquele momento, só existia Alice e o olhar. Seus olhos transmitiam toda e nenhuma emoção. Ela parecia estar olhando para uma presa para deliciar-se depois num prazer canibal. Parecia observá-la como uma amante olhando o amado de uma forma lamentável; inalcançável, como se o visse partir para sempre da vida. Perscrutava-a como se ela fosse um ser miserável qualquer; via-a como uma cobaia de laboratório; analisava-a com admiração, como se visse um grande gênio à sua frente.

— Eu prometo, Alice. It shtalt. Eu juro.

Alice soube que era verdade. Annik não mentiria. Ela não mentia para a Menina.


Alice confiou.

Annik estava certa a todo o momento. Alice confiava nela e não deixaria de fazê-lo. Sua vida estava nas mãos dela.


— Annik… posso te fazer outra pergunta?

— Você acabou de fazer uma — e essa era a vingança de Annik contra todas as ironias e sarcasmos que a Menina usara contra ela. É. Era justo. Podia lidar com aquilo.

— Você em algum momento tira sua boina?

— Não.

—… Uau. Na verdade não era isso que eu queria perguntar, foi só uma brincadeira. Mas enfim, por que você não liga o rádio? Às vezes o silêncio aqui dentro é… você sabe… ele me deixa doida. Queria ter algo pra me distrair às vezes. E, claro, é sempre bom ter um som de fundo.

Annik ligou o rádio.

— E o que você quer ouvir? Devo adiantar que a rádio daqui só transmite atualizações da Organização. Acho que o ruído branco daria um som de fundo mais… interessante.

— Meu Deus, eu tenho medo desse chiado horrível, nem pense nisso. Mas quanto à rádio da Organização, não me parece uma má ideia. Você devia ouvir. Talvez a gente ouça alguma coisa interessante.

— Eu não aguento ouvir as barbaridades que eles cometem. Prefiro deixar o rádio desligado. Sem falar que eles são previsíveis, de certa forma. Acho que a única coisa que não consegui prever foi que eles se uniriam ao Faraó.

— Por que vocês confiam nesse Faraó? Digo, qual é a desse cara? Ele quer controlar o mundo, é isso? — Alice riu ao imaginar aquela ideia absurda.

— Para falar a verdade, sim, ele quer exatamente isso.

— Mas aqui é um deserto, como ele vai mandar nas pessoas?

— Há algumas aglomerações de pessoas em alguns lugares… o que você poderia chamar de cidade, vila, enfim, qualquer coisa desse tipo. A maioria desses lugares está sob o controle do Hasir. Outros, nas mãos do Imperador. E quem vaga por aí, pelo deserto, como eu e a maioria das pessoas, não estão nas mãos de ninguém. Bom… não ainda.

— Não sei por que vocês não gostam dele. Ele está tentando levar ordem pro Mundo. Isso não deveria ser uma coisa boa?

— Não. Este Mundo não nasceu para ter ordem, Alice. Tudo o que este mundo oferece não é propício para que ordem ou a lei surjam. Como controlar um deserto tão grande que ninguém sabe onde ele termina ou começa? Como controlar pessoas como eu num mundo tão vasto? É impossível. A ordem não deve existir neste lugar. Este é um mundo feito de desordem, Alice, e deve permanecer assim. — Ela passou a mão na cabeça como se estivesse confusa com seus próprios pensamentos. — Digo, eu não quero que haja mais gente como eu neste mundo nem gente como a Organização. Mas é impossível chegar à ordem completa. A Legião tentou e falhou. Às vezes a ordem pode ser tão ruim quanto a desordem. A desordem é cruel demais e a ordem é ingênua demais. Mas chega de falar disso, vamos ouvir alguma música. Procure no porta-luvas, deve ter alguma coisa interessante.

Alice abriu o compartimento e viu várias fitas cassetes. Pegou a primeira que viu e entregou-a para Annik, que a inseriu no toca-fitas.

Era uma música bem antiga, vintage, podendo-se ouvir chiados na gravação. Um rockabilly bem antigo, com riffs repetitivos e piano.

— Gosto dessa — Annik comentou.

— Parece boa. Você nunca me disse que você gostava de música.

— Você nunca perguntou. E eu sempre gostei. Na Instituição, eu tive aulas de música.

— Então você sabe tocar?

— Sim. Tocar, ler e compor.

— Uau. E cantar?

— Nunca tentei.

— Deveria. Sua voz é bonita.

— Ahm… obrigada — ela deu um sorriso tímido, mas ele logo se fechou. Ela suspirou. Seu rosto assumiu um tom duro, como se ela visse o próprio reflexo, um reflexo que não era bonito. Como se ela estivesse lidando com uma verdade difícil e quase inacreditável. — A propósito, eu preciso agradecê-la não apenas por isso, mas por… muitas outras coisas. Sabe, você é uma das poucas pessoas que… confiaram em mim. Uma de duas pessoas, na verdade. Isso me faz me sentir menos… pior do que eu sou.

— Ei, para de falar isso, você não é ruim, Annik. Bom… você tem defeitos, defeitos muito grandes, mas… no fundo, você é uma pessoa boa. E você tenta se controlar, eu sei. Se você fosse uma pessoa ruim… você nem mesmo tentaria, entende?

Ela sorriu.

— Eu… entendo. Ahm, mais uma vez, obrigada. É bom ter alguém em quem confiar. Eu não me sinto tão… sozinha, sabe?

Alice assentiu a olhando bem nos olhos.

— Sim. Sei sim.

Ela simplesmente sorriu. Timidamente, como sempre. Sorrir ainda lhe parecia uma tarefa difícil e desajeitada.

— Bom, mas você não está sozinha — a Menina tentou alegrá-la. Uma tentativa pífia. — Bom, tem mais alguém que confia em você ainda. Você disse que eram duas pessoas, eu e outra. É aquele… — puxou o nome da memória. Ainda não havia se esquecido —… Seth, certo?

Annik abaixou a cabeça. Oh não. Quando parecia estar melhorando a situação, na verdade só estava a piorando. Não podia estragar tudo, não depois daquilo. A confiança de Annik significava muito para ela. Não queria perder tudo tão rápido quanto um copo que cai e se quebra.

— Não, não é ele. Seth não é uma pessoa que tenho vontade de ver, e nem ele a mim. É outra pessoa, na verdade. E… digamos que essa pessoa não… confia mais em mim.

— Por quê? O que aconteceu? — soou preocupada. Verdadeiramente. Não gostava de ver Annik sofrer. Era deprimente ver uma pessoa tão conturbada cair em mais desgraça do que já estava. Ninguém merecia isso. Bom… quase ninguém.

Demorou a responder. As mãos de Annik apertaram mais o volante. Pôde ver os tendões de sua mão, que já eram ressaltados, ficarem ainda mais expostos sob a pele. As articulações dos dedos ficaram brancas tamanha a força. Ela expirou. Não foi um suspiro como os outros, foi como se ela tivesse prendido a respiração por muito tempo e soltado o ar pela boca. Alguma coisa estava terrivelmente errada. Alice ficou com medo, mas não por si mesma. Por ela. Tocou em um ponto muito sensível, tocou em um ponto que deveria ficar atrás da porta trancada.

Oh merda. Justo quando tudo estava indo bem… por quê? Veja só a merda que você fez, Alice… veja só… Você é tão assassina quanto ela, e sabe por quê? Porque você consegue destruir uma pessoa só com palavras. Na verdade, nem isso. Consegue destruí-las com pensamentos. Pensamentos delas, não os seus. Você não merece a confiança dela. Olhe a desgraça que você fez. A culpa. É toda. Sua. OLHE O QUE VOCÊ FEZ!!!

— Eu matei a outra pessoa — Annik virou-se para Alice e a respondeu após minutos que demoraram semanas. Sua voz estava fraquejada. Falhando. Oscilando. Levemente embargada. Havia tanta dor… Aquilo não era um quatro numa escala de um a dez. Não era nem mesmo um dez. Era um onze. Ela perdera a única pessoa que confiava nela, e tudo aquilo por sua própria culpa. Imagine ter de conviver com isso em sua mente durante todos os dias de sua vida? Todos os dias ver e rever a cena. Todos os dias saber que a culpa é sua. E que você poderia ter mudado a situação. O arrependimento. A culpa. A sensação de “eu poderia ter feito diferente”. A única pessoa que você tinha e agora… ela não existe mais. Nunca mais. Nunca mais.

Alice não pôde observá-la naquele estado. Era doloroso demais para ela ver aquilo. Annik sempre lhe parecera forte, mas ela era tão frágil quanto seda. Tinha dó. Dó. Pena. Tristeza ao vê-la naquele estado. Sentia-se tão mal quanto. E saber que era ela, ela que puxara o gatilho da sua arma para quebrá-la daquele jeito, a fazia se sentir ainda pior. Odiava-se. Desculpa. Desculpa. Por favor. Mas as palavras flutuavam em sua mente, livres em sua mente, loucas para escapar, batiam na sua cabeça para livrarem-se daquela prisão. Não conseguiam.

Não conseguiram.

Perdeu a fala quando viu que seus olhos estavam abalados. Como alguém que acabou de presenciar uma tragédia acontecendo bem diante de seus olhos. As sobrancelhas arqueadas, os olhos arregalados.

E lacrimejando.


“A wild shake cannot wake us up

Do believe that it’s done

Oh my, we’re beginning to blue, oh…”¹

— Still Corners, Beginning to Blue.


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Notas finais do capítulo

¹Na frase final: "Um abalo selvagem não pode nos acordar / Acredite que está feito / Oh meu [Deus], nós estamos começando a entristecer, oh...".



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