Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 23
XX - Desculpas


Notas iniciais do capítulo

and don't remind me of home... in case it isn't quite the same...

https://www.youtube.com/watch?v=JTehpkc1PNY
Tame Impala - Runway, Houses, City, Clouds.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/653186/chapter/23

XX

Desculpas


“And don’t remind me of home

Or I might notice where I am…”¹

— Tame Impala; Runway, Houses, City, Clouds.


A Menina Sem Nome estava diferente desde aquele dia e Annik sabia o porquê.

Annik não se arrependia dos mortos e já tinha dito aquilo para a Menina. Mas não havia dito que se arrependia pelos vivos, como ela, que tinham de assistir a tudo, condescendentes.

Mesmo ser uma total psicopata não a livrava de sentir o peso, de sentir o cheiro nauseante do remorso. Parecia o peso de carregar uma enorme mochila a cada dia, andar encurvada a cada dia, o peso exercendo uma força sempre maior a cada dia, danificando os ossos das costelas a cada dia, tornando-se menos suportável a cada dia. Diferentemente de carregar peso, no entanto, Annik não sabia se algum momento iria tirá-la de suas costas e voltar a andar ereta normalmente. Talvez a carregasse pelo resto da vida.

— Ei — ela chamou Alice. — Você está bem? — Pergunta. Idiota. Era óbvio que ela não estava bem. Não iria tentar consertá-la, contudo. Iria só deixar a situação pior.

— Vou ficar. Por quê?

— Eu… me senti mal. Por ter pedido a você para fazer aquilo, entende?

— Você disse que eu não precisava fazer. Se eu fiz, foi porque eu… ahm…

— Você se sentiu pressionada. Por mim. — Abaixou a cabeça. — Desculpe. Drajde’nie. Eu não deveria ter feito aquilo.

— Eu teria que fazer, uma hora ou outra.

Mas o problema não era aquele. O problema não era ter que fazer uma hora ou outra. Annik sabia que sim, e tentou “acostumar” a Menina com a morte. O problema não era a morte. O problema era o costume. O problema era que estava criando um clone seu, uma pessoa tão acostumada com matar que viraria uma máquina como ela própria era. E era por essa e por outras que ela era a pessoa mais odiada no Mundo. Porque não bastava ela aniquilar qualquer coisa que entrasse em seu caminho, ela também tinha que deturpar mentes inocentes. Uma bomba atômica talvez fosse menos destrutiva que ela.

Seria mais fácil se ela pegasse aquele revólver que entregara à Menina e o usasse para dar um tiro na cabeça. Todos agradeceriam. Ela inclusive. E ninguém sentiria a mínima falta. Claro que o Hasir iria ficar cheio de idiotices porque ele queria matá-la com as próprias mãos, mas a verdade é que ele iria adorar. Ela só não o fez e nem o faria porque era egoísta demais para tal. E a morte também não era lá grandes coisas.

Para alguém como Annik, que havia hibernado, dormido, foi quase como morrer. Era um coma, só que sem as máquinas medindo batimentos cardíacos nem tubos enfiados dentro do seu corpo. Fora isso, era quase como experimentar a morte. E ela era escura, calma e relaxante. Não era fria como alguns diziam, porque não há distinção de frio nem quente no sono, e provavelmente não haveria na morte. Ela era escura e infinita. Entretanto, seu sono não pôde lhe dar o infinito que queria.

O Faraó também ficaria feliz por ela morrer sozinha do que por suas mãos porque ele tinha medo dela. Fingia ser um homem forte, mas era um covarde. Aproveitava-se de tudo e todos para ter alguma vantagem nesse ponto. Provocar medo era uma delas, e aliar-se àqueles que realmente eram fortes, outra. É claro, se estes fossem estúpidos o suficiente para acreditar nas palavras daquele cretino. Mas no Mundo, tudo era possível, desde psicopatas, verdadeiras máquinas de matar, a pessoas tão estúpidas e/ou inocentes que é de se admirar que tenham sobrevivido por mais de dois segundos no Deserto.

— Me desculpe.

— Você falou errado.

— E qual é o problema?

— Qual é o seu problema? — Alice disse, rindo. Não imaginava que ela pudesse rir após tudo o que aconteceu. Isso fez Annik se lembrar de Maurice e da Serpente… Bons tempos de Legião…

— Ahm, nenhum. Só quero saber se, ahm, você pode me desculpar.

— Nunca foi sua culpa, Annik. Mas se isso te deixa feliz, sim. Olha, você não precisa pôr a culpa em você mesmo, porque, se alguém tem que levar toda culpa, sou eu. Bom, eu que escolhi fazer aquilo, sabe, eu que comecei toda essa merda…

— E o que aconteceria se você não tivesse começado? Eu estaria hibernando e todo mundo estaria em paz.

— O que é muito melhor, não acha?

— Hum. — Annik sorriu. Talvez fosse seu prazer no caos ou sua beligerância, mas a paz era chata. Ou talvez fosse por que jamais teria conhecido a Menina. Havia algo muito diferente nela, talvez o conforto que ela proporcionasse, ou talvez porque ela não era idiota como as outras pessoas com quem Annik se relacionava… ou talvez porque ela era um pouco parecida com Adam. Parou de sorrir. Ah. Não. Não podia pensar em Adam novamente. Nunca mais. Voltou a falar, com o sorriso de volta. Só não sabia se a Menina teria percebido aquilo (e esperava que não): — Melhor e mais chato, com um tirano fingindo que comanda tudo e todos. Já estava na hora de eu acordar e… sei lá, pegar a estrada. Matar gente. Mas dessa vez, eu vou matar as pessoas certas. Quero dizer, as erradas. As que só sabem deixar esse mundo cada vez pior. — Afinal, se não morresse, como queria, pelo menos que fizesse o certo antes de, sei lá, se matar ou voltar a hibernar. — Talvez agora seja o momento de consertar todas as desgraças que fiz. Ou garantir que elas não vão ficar piores.

— O que quer dizer com isso?

— Basicamente, há um homem que acredita comandar o Mundo ou boa parte dele. O Faraó. Não me lembro de tê-lo mencionado a você. Ele… não é uma boa pessoa, digamos assim. Lembra-se quando eu disse que fomos ao Imperador para criar a Legião? — Alice assentiu. — Pois bem, fomos ao Imperador porque estávamos cansados do Faraó. Queríamos que ele largasse toda aquela fantasia de ser o grande controlador do Mundo, mas parece que, quanto mais tentávamos, mais sua fantasia se aproximava da realidade. Quem sabe eu consiga pôr um fim nele, desta vez.

— Você e mais quem? Alô, é só eu e você no meio de um deserto! Você deve estar ficando louca de pensar que pode ir lá nesse cara, sozinha e matar ele. Se ele se diz rei e blá, blá, blá, ele deve ter alguém besta o bastante pra proteger ele. E mesmo sendo idiota, com certeza não é fraco. E, Annik, você pode ser uma assassina e coisa e tal, mas não me parece tão forte. Você nem mesmo quer tocar numa arma de fogo!

Ela estava certa em cada palavra. Nem precisava pensar muito para que elas entrassem em sua cabeça e a fizessem mudar de opinião.

— Você está certa. Mas eu não vou fazer isso agora, é claro. Ainda tem a sua… questão para resolver. Talvez depois disso. — Mas talvez não houvesse um depois. E se Alice realmente fosse o Kra’vstanlas, o que Annik tinha quase cem por cento de certeza de estar certo? Aquilo iria deixar de ser uma vingança e se tornaria uma guerra. Uma guerra que iria acabar rápido, pois havia a Organização e os homens do Faraó contra Annik e a Menina Sem Nome.

A não ser que tentasse reconstruir toda a Legião como um dia construíra… mas não haveria gente disposta a ajudá-la, certamente. O Faraó provavelmente ofereceu uma bela recompensa pela sua cabeça, e não seria qualquer um que iria deixar aquilo para segui-la. Humpf. Tolice.

Ela teria que continuar fugindo. Fugiu da Organização e da Legião ao mesmo tempo, e agora, sem a Legião para “atrapalhar”, fugia da Organização de novo. Quase nada mudou.

Ela podia ter o trunfo do Mundo, mas a Kra’vstanlas era apenas uma menina que mal sabia sobre o Mundo e como ele funcionava e não fazia ideia de como matar ou pegar numa arma. Não era lá grandes coisas e também não deixava aquela situação muito favorável.

Ela só tinha uma opção: fugir, fugir até que, finalmente, eles a alcançassem. E a matassem. Ou se ela morresse antes por qualquer outra causa. Aparentemente, esse dia não demoraria muito a chegar, do jeito que as coisas estavam correndo.

— Annik, olha isso! — a Menina disse, olhando pela janela. — Você… você já viu isso?! É fantástico…!!

Annik soube na mesma hora e não deixou de esconder um sorriso. Do para-brisa, podia ver o céu assumir inúmeras cores. Havia uma espécie de nebulosa que parecia abrir uma fenda dourada no céu esverdeado por outras nebulosas ao redor. Um monte de estrelas brilhavam no céu. Tantas estrelas quanto o número de grãos de areia que havia no Deserto. Havia algumas luas e alguns planetas visíveis. Luas e planetas brancos, vermelhos, meio pálidos, azuis-claros… Havia também estrelas coloridas, vermelhas, alaranjadas (nenhuma verde, entretanto), azuis… parecia um pisca-pisca gigantesco em meio a veios coloridos de restos de supernovas e nuvens de gás e poeira cósmica. Não era difícil saber por que Alice estaria tão deslumbrada.

Não era sempre que o céu do Deserto ficava lindo, proporcionando aquele espetáculo cósmico que só acontecia de vez em quando. Normalmente, o céu ficava lotado de estrelas, mas seu fundo apenas mostrava a velha e desconhecida escuridão. Alguns dias, no entanto, aquele espetáculo silencioso era pintado nos céus. Por quem, Annik nem ninguém sabiam. Mas era sempre diferente e deslumbrante.

Naquele dia, por exemplo, ele estava mais esverdeado, com estrelas vermelhas e outras azuis. Havia algumas nuvens moleculares cortando o panorama e, claro, a fissão dourada, uma rachadura no céu. Mas havia dias em que o céu estava vermelho, azul, dourado e até esbranquiçado. Havia dias, raríssimos, entretanto, que até mesmo havia auroras boreais. Mas isso era mais comum de se acontecer na Tundra ou na Razve’niya, a Campina, o lugar almejado por tudo e todos.

— Estou vendo — Annik respondeu. — Não é bonito?

— Sim!! Meu Deus, é muito bonito!

Talvez fosse a única coisa que prestasse naquele mundo cheio de morte e fedendo a sangue.

Se existisse alguém que criou tudo aquilo, todo o universo, Annik perguntaria a ele por que não destruir o Mundo e tudo o que havia nele. Por que poupar aquelas vidas quase todas culpadas. Por que não levar a destruição, algo tão corriqueiro no universo, àqueles que a mereciam.

Mas Annik sabia que nem todos mereciam.

Olhando pelo retrovisor, observou Alice, ainda fascinada.


“And gazing out the window

As I ascend into the sky

But I’m the one who’s

Left behind…”²

— Tame Impala; Runway, Houses, City, Clouds.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

¹Na frase inicial: "E não me lembre de casa / Ou eu posso notar onde eu estou...".

²Na frase final: "E observando pela janela / Eu ascendo ao céu / Mas eu sou aquele que é / Deixado para trás...".



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Entropia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.