Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 22
XIX - Náusea


Notas iniciais do capítulo

https://www.youtube.com/watch?v=Uf62vqFJQT8
METZ - Nausea



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XIX

Náusea


“Torture’s for the torturer!… or for the guy giving orders to the torturer.”¹

— Grand Theft Auto V; Trevor Philips.


— Alice, me dê o pé de cabra, por favor — pediu Annik educadamente. Era estranho para Alice ser a “assistente de torturas” dela, mas não era ruim contanto que não tivesse sangue em excesso nem que ela tivesse que matar alguém. Após cinco minutos tendo que segurar o homem a pedido de Annik para que ela o amarrasse, a Menina podia dizer que estava começando a se acostumar. Isso não era lá uma maravilha, mas o que era uma maravilha naquele mundo?

— É claro. — Foi até o porta-malas aberto e tirou, em meio a várias armas brancas e de fogo, (que não sabia por que estavam ali, já que Annik havia dito que não iria tocar numa arma de fogo jamais), um pedaço de metal com a ponta torta. Voltou e entregou-o para Annik.

Trud — ela respondeu. Alice já sabia que aquela expressão significava um “obrigado” raso.

Sentiu-se um pouco mal quando Annik sopesou a barra de ferro nas mãos sujas de sangue. Não estava se acostumando tanto quanto pensava, na verdade. Talvez porque, até o momento, Annik apenas atacara com as mãos nuas, socos e chutes, nada tão pesado, ainda. Entretanto, sabia que Annik poderia transformar até uma simples colher de sopa numa arma mortal. Seus punhos e as botas todas avermelhadas e pegajosas eram prova disso.

A sombra da Assassina se estendia como uma montanha diante do torturado, um obstáculo intransponível, a visão da Morte, da mais pura escuridão. Sua boina cobria seus olhos, desvinculando seu rosto de quaisquer emoções possíveis. Apenas era banhado pelo luar seu nariz e sua boca inexpressiva, criando nela uma máscara de crueldade e frieza sem nem mesmo lhe cobrir o rosto. Nem mesmo uma máscara, talvez, pudesse inspirar tanto medo quanto aquela face desprovida de qualquer sentimento, um rosto vazio.

A roupa fazia jus à alcunha de Assassina. O sobretudo digno de um assassino e as botas militares perfeitamente amarradas e apertadas eram uma prova. E se quisessem mais, havia as manchas de sangue espalhadas pelo casacão de couro e na sua camisa branca, vermelhíssimas e óbvias, um sinal de perigo e placa de “pare” para qualquer um que tentasse — que ousasse — atacá-la.

Alice teria medo em outra ocasião — uma ocasião que não fora muito distante, contudo, levando em conta o fato de que perdera o medo dela havia pouco tempo —, mas agora ela sabia como Annik “funcionava”. Ela era bem seletiva com quem matava, e sua seleção era mais simples que ir a uma feira e escolher frutas e ainda mais fácil que escolher um cônjuge. Ela simplesmente não atacava aqueles que não eram hostis a ela. Parecia até uma espécie de personagem de videogame que, quando atacado, instantaneamente se torna hostil ao jogador. Mas Alice era esperta o suficiente para saber que Annik não era uma pessoa com quem se mexer e mais esperta ainda ao saber que ela era sua única chance de uma sobrevivência mais prolongada ali naquele lugar. Mais prolongada, porque dava para ver que poucos ali eram os que tinham a sorte de viver por muito tempo. Se não fosse Annik ou a Organização, era o próprio deserto.

Alice vinha aprendendo a temer o Deserto, sem que Annik lhe dissesse para fazê-lo. Era uma atitude livre de qualquer influência externa; bastava a Menina ver toda aquela grandiosidade sem fim para que se sentisse infinitamente pequena, menor que um grãozinho de areia, menor que uma bactéria. Sentia-se uma gota d’água no meio do Universo. Um Universo cruel e caótico, o qual a Menina não fazia ideia de como funcionava ou de como se virar sozinha sem sair correndo para pedir ajuda.

Annik uma hora iria se cansar daquilo e iria mandá-la fazer alguma coisa. Já tinha começado a ensinar aquela língua, o kra’vstan, para ela, e agora estava fazendo-a assistir e ajudá-la naquela tortura. Não era algo que ela gostaria de fazer, mas tinha de fazer, nem que, para isso, devesse condicionar sua mente a se acostumar com aquilo.

Estava indo bem, julgava. Não havia feito nada errado, nem chorado de medo como um bebê. Fizera tudo que Annik pedira sem hesitar. Talvez realmente estivesse se acostumando com aquilo, ou até mesmo já tinha se acostumado após a primeira tortura. Ver a violência pela primeira vez fora chocante; ver pela segunda vez, um pouco desconcertante; pela terceira, usual.

Sua respiração ficou presa por um instante. De fato, auxiliá-la em suas torturas seria algo costumeiro e Alice poderia dizer que estava se dando muito bem naquilo. Mas uma hora Annik iria pedi-la para matar. Ah, merda, não estava pronta para aquilo ainda. Mas como estaria pronta, sendo que havia um bando de carniceiros, aquela Organização, atrás delas? Ela já deveria estar pronta há muito tempo, isso sim!

Ah, merda, merda… Pensar naquilo só seria pior, mas deveria ser necessário. Ela deveria pensar naquilo para lidar com o que viria depois de matar… a culpa, maldita culpa…! Mas ali no Mundo, todos pareciam ser culpados, até aqueles que eram mortos. Afinal, eles não eram mortos à toa. Mesmo assim, não parecia certo… Nunca iria parecer. Ela gostaria de poder parar de pensar naquilo, mas sabia que seria pior se parasse. Sabia que o peso da culpa seria muito maior.

Um pensamento passou pela sua cabeça como um relâmpago em um dia chuvoso.

Oh não.

E se fosse… hoje…? Ah, merda… merda! Nem se quisesse, ela teria o tempo necessário para pensar. Ver Annik matar era uma coisa, mas ver a si mesma tendo que desferir o golpe final era outra, bem diferente. Bem pior. Iria pedir para Annik, implorar de joelhos, se fosse possível, para não ter de fazer aquilo. Pelo menos, não agora. Estaria adiando o inevitável, sabia disso. Mas antes adiá-lo para um momento mais apropriado que fazê-lo ali e agora, quando não estava pronta para fazer algo tão… terrível e… desumano quanto aquilo.

Como Annik fazia aquilo sem sentir culpa? Será que ela, vivendo num ambiente tão hostil, se acostumara a fazer aquilo como a Menina estava tentando se acostumar a assistir a tortura e a violência? Será que ela simplesmente ignorava aqueles a quem ela havia matado? Será que ela condicionara sua própria mente para se acostumar aquilo, num ato forçado? Ou será que ela pensara, assim como a Menina havia pensado, que todos, sem exceção, tinham sua parcela de culpa? Assim ficaria menos difícil matar, julgando todos como errados. Mas seria uma mentira julgar a si mesmo como justiça.

Não sabia. Sabia apenas que, se fizesse aquilo, iria enlouquecer. E torcia, com todas as suas forças, para que Annik não lhe pedisse aquilo hoje.

— P-por favor… NÃO!!! — gritou o homem torturado, amarrado em frente ao carro, enquanto Annik mostrava-lhe o pé de cabra. Seu rosto estava cheio de hematomas e lágrimas, enquanto o de Annik estava imaculado, liso e inerte.

— Quem o enviou? — a voz sussurrada e gélida de Annik respondeu. A voz dela era o corte de uma espada: cruel e frio. Era como água parada: fria e calma.

— N-não posso dizer — ele disse, aos berros, com a voz trêmula de tanto chorar. – E-ele vai me… m-matar… — O sofrimento alheio enfraquecia e derrubava Alice. Sua mente parecia encharcada e pesada. E, naquele momento, ela não podia pedir para Annik parar. Havia concordado em ajudá-la.

Não estava se acostumando. Fora tudo uma mentira que ela mesma inventara para se sentir melhor com tudo aquilo. Ver o sofrimento era ainda pior que ver a violência. Não sabia se ela era boa demais por aquilo, boa demais num mundo de gente cruel, ou se ela apenas não havia se acostumado à crueldade alheia. Talvez ambos. Ambos, além do fato de ela ser uma idiota sensível.

— Ou você diz — ameaçou Annik — ou eu o mato. Você prefere morrer aqui e agora ou depois?

— Eu prefiro… n-não morrer…

— Então diga.

— V-você sabe o nome dele… Já conheceu ele… T-trabalhou pra eles…

Annik levantou a barra e bateu forte na cabeça dele.

O que sobrou não foi algo bonito, definitivamente. Alice sentiu uma onda de náusea quando viu. A cabeça quase calva do homem estava rasgada feito papel e suja como se tivessem jogado tinta guache vermelha. A carne estava dilacerada de um jeito nojento, como se um animal houvesse pegado a cabeça do homem e tentando morder, arrancando uma fatia magra, entretanto, e o sangue se espalhava, escorrendo pela lateral da cabeça do homem e pela sua testa. O que havia embaixo do rasgo, porém, Alice ficou aliviada de não saber. O sangue coloria o que quer estava ali, fosse carne viva, tecido muscular ou o crânio do cara, dificultando o reconhecimento.

Para a sorte — ou melhor, terrível azar —, o homem estava vivo e consciente. Sorte porque, bom, ele não morreu, certo? E azar porque aquela dor deveria superar tudo, tudo mesmo. Por um instante, a Menina levou a mão aos próprios cabelos, sentindo a dor dele. E, por outro instante, desejou que ele morresse. Será que era por isso que Annik não sentia culpa? Porque estaria fazendo um favor àqueles que ela torturava? Livrando-os da dor e do sofrimento? Pela primeira vez, a ideia de matar alguém não lhe parecia terrível. Lembrou-se das palavras de Annik. Você acha que aqui a morte pode ser a pior coisa, mas na verdade a morte é um alívio. Agora entendia, entendia perfeitamente o que ela queria dizer.

— AHH!!! — o homem gritou. Naquele momento, a Menina quis que Annik tivesse posto uma mordaça na boca dele. Os gritos eram ainda piores. Pior ainda que ter de ouvi-los, era ter de fazer isso e não poder reagir, não poder impedir o sofrimento. Que acabe logo, por favor, pensou. — EU FALO!!! — ele voltou a chorar copiosamente. — Eu falo… — seus gritos de sofrimento deram lugar ao torpor da dor.

— Então diga — Annik respondeu.

— El-le… Seth… Você sabe… sabe, sabe sim… Como sabe…

Seth… — Annik provou o nome, e pela cara que fez, ele deveria ter um gosto horrível, ainda pior que a comida que ela fazia (se bem que algo pior que aquilo era quase impossível). E, pelo jeito, era algo que Annik já havia provado havia muito tempo. Alguém que Annik conhecia, e muito bem, pelo visto. — Não acredito que ele faria uma coisa dessas.

— Ah, faria, faria sim.

— Ele não iria acreditar num bando de mentirosos como o Faraó e a Organização.

— Seth não acredita neles. Ele acredita na verdade. Ele está pouco se fodendo pro Faraó e pros cães dele. Ele só quer saber de você e de quem você está trazendo aí. — Ele apontou com a cabeça para Alice. — E acho que ele vai ficar muito feliz em saber que a sua namoradinha não tem nome.

— Ele ficaria feliz em saber se você voltasse vivo.

Q-quê?! Você disse… disse…! Disse que não me mataria se eu… se eu contasse…!

— Eu disse que não o mataria naquele momento.

— Annik — chamou a Menina. Aquilo já era demais. O cara havia contado, agora ele podia ir. Ela havia colaborado, havia ajudado Annik com aquela coisa toda, já chega. — Ele disse o que você queria saber, agora deixa ele ir embora.

— Eu não posso — ela disse de um jeito verdadeiramente pesaroso. — Se eu o mandar embora, ele vai contar para os outros onde nós estamos.

Era verdade. Merda. Bem, antes matá-lo de uma forma limpa do que deixá-lo sofrendo ali, com aquela dor excruciante da ferida aberta na cabeça.

O momento estava se aproximando, e Alice já estava sentindo as pernas enfraquecerem, o coração pulsar rápido demais e o peito ficar gelado. Puta merda, ela estava se cagando de medo! A náusea voltou. Merda ao quadrado. Imagina só, quando ela fosse dar o golpe de misericórdia, ela vomitar toda aquela comida horrorosa? Seria cômico se não estivesse naquela situação trágica.

— Alice — a voz de Annik chamou. Estava carregada de seriedade e Alice sabia por quê.

— Sim?

Ela suspirou pesadamente.

— Alice, eu tenho que pedir uma coisa… difícil. — Muito difícil. — Se você não quiser fazer isso, tudo bem, mas… uma hora ou outra, vai ter de fazer. — Adiar o inevitável. Adiar o inevitável. Deveria fazer ou não? Deveria adiar o inevitável ou não?

— Tudo bem. Eu… sei o que você está querendo que eu faça.

Annik entregou um revólver a ela, confirmando os pensamentos da Menina. Depois ela percebeu: as armas no porta-malas não eram para que Annik as usasse. Eram para Alice.

— Você quer fazer isso? Você foi… bem, hoje, mas não sei se está preparada para fazer algo do tipo.

— E se não for agora, Annik, quando? Quando eles nos atacarem de novo e vierem aos montes? — Estava decidida. Tinha que ser agora, ou não seria jamais. Não seria jamais porque ela provavelmente morreria antes. E morreria antes porque não havia se preparado. E o momento de se preparar era agora. Uma coisa levava à outra, cada coisa cada vez maior e pior.

Annik respirou fundo.

— Tudo bem. Boa sorte. Eu… vou ficar observando. — Como sempre. – Se der algo errado com você ou com ele, eu vejo o que posso fazer.

Alice assentiu.

O homem estava chorando copiosamente quando Alice virou-se para ele. Chorando porque aquele seria seu último dia de vida, porque Annik havia o enganado. Chorando por causa da tortura, da dor e do sofrimento. Pobre homem.

Alice levantou a arma, mas ela era tão pesada que oscilava, fazendo sua mão tremer com o peso. Colocou a mão esquerda sob a direita, com o propósito de dar mais apoio e firmeza ao revólver.

Mirou bem na cabeça do homem, ou pelo menos na direção em que achava que iria acertá-la. Seria cômico se, ao invés da cabeça, ela se desequilibrasse e atirasse no seu próprio pé. Uma verdadeira demonstração de o quão covarde e fraca era ela. Uma demonstração de humilhação. Antes o próprio pé que a vida alheia.

Mas aquilo deveria ser feito.

Annik estava certa; se ele fosse deixado vivo, iria delatar a posição delas e em breve haveria mais daqueles caras tentando matá-las. Além disso, ele havia tentado matá-las primeiro. E também havia o último argumento: Alice iria acabar com o sofrimento dele. Será que Annik se sentia assim quando matava? Será que ela se sentia como uma justiceira que aliviava a dor das pessoas? Uma eutanásia ambulante? Não sabia, apenas sabia que, naquele momento, a Menina era a eutanásia, o alívio daquele homem.

Só não sabia se ela própria ficaria aliviada depois.

O homem percebeu que ela apontava a arma e disse suas últimas palavras:

— Atire… — ele disse debilmente. — Termine com isso — a última frase soou, diferente da primeira, forte e obstinada. Ele encarava a morte com coragem, mas Alice não encarava a culpa daquela forma.

— Ah, cara — a Menina disse, fechando os olhos com tanta força até ver riscos coloridos na escuridão. A náusea voltava com mais força. Merda. Tinha de se segurar para não vomitar em cima do revólver. — Me perdoa, por favor

Atirou.

Quando abriu os olhos, viu que o tiro não foi tão limpo quanto imaginava. O tiro pegou na garganta do homem, fazendo mais sangue jorrar.

Jogou a arma no chão, andou alguns passos para trás e caiu no chão, impelida pela náusea, ainda mais forte e menos controlável. Naquele momento, era mais difícil manter a comida ruim no estômago. Não podia se dar ao luxo de pôr tudo para fora ali. Seria até pior. Iria ter que comer de novo a comida horrível de Annik, sofrendo o dobro ao ter que sentir o gosto horrível daquilo. Por que ela não torturou o cara com aquela comida horrível? Seria bem menos pior que espancá-lo com um pé de cabra.

— Alice… você está bem? — Annik ajoelhou-se perto dela, sentiu uma mão dela nas suas costas e outra no seu cabelo.

Mas não estava. A culpa, a maldita culpa vinha fazendo um peso ainda maior sobre suas costas, sobre seu estômago, sentia o gosto azedo da comida na boca, a gosma subindo pela garganta e roçando a língua, mas tentou segurar.

— Alice, vamos para o carro… Ah, merda, eu não deveria ter pedido para você fazer aquilo… Me desculpa… — Ela alisou levemente seu cabelo, talvez para tentá-la fazer se sentir melhor com o que acabara de fazer. Seria um gesto lindo e fofo se ele não fosse inútil àquela altura e se Alice não estivesse com uma maldita ânsia de vômito e não estivesse tentando não sentir nada além de manter a comida dentro do seu próprio corpo. Além de estar se sentindo segurando uma bigorna chamada culpa, ainda tinha que passar por aquela demonstração de fraqueza terrível. Não podia nem mesmo se defender sem passar mal ou sem chorar feito um bebê em seguida.

Estava tudo bem, ela queria responder, mesmo sendo mentira. Uma mentira descarada, ainda por cima.

Entretanto, quando levantou a cabeça para fitar Annik e respondê-la, tudo o que conseguiu sair da sua boca foi um vômito azedo e marrom com pedaços de ave morta e cozida que boiavam sobre a gosma.


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Notas finais do capítulo

¹Na epígrafe: "Tortura é pro torturador!... ou pro cara dando ordens pro torturador".



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