Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 21
XVIII - Perdido




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XVIII

Perdido


— Estamos andando em círculos! — esbravejou Adam. — Em círculos!

— Ora, quem diria que o Bardo um dia iria se perder? — Às vezes o humor ácido da Serpente era um alívio, mas não naquele momento. Era só mais uma irritação para Adam. Já não bastava estarem andando sem ter nenhuma ideia para onde ir, havia a Serpente o alfinetando com sua ironia por vezes desnecessária e o fato de estar sentado numa posição totalmente desconfortável no cavalo.

— Eu não estou perdido! — retrucou. — Eu só… — O vento do Saar balançou seus cabelos e a crina de Crepúsculo. Ele suspirou, procurando se acalmar. — Só não sei para onde devemos ir. A Rainha não deixou nenhuma pista ou coisa assim?

— Eu acho que ela pensa que você é uma bússola natural e acharia sozinho — disse Dusq.

— Pois ela achou errado. Eu sei me guiar pelo deserto, mas eu não sou um detector de metais.

— Um detector de músicas seria mais apropriado — a Serpente disse. Pelo menos fora algo mais engraçado daquela vez, porém Adam não estava com bom humor para rir.

— Deveríamos começar a procurar por pistas — ela sugeriu. — Adam, você procurou essa Música por muito tempo, você sabe mais que a gente sobre isso.

— Tudo o que sei é que dizem que ela tem um poder sobre o deserto. Depois, antes de eu entrar para a Legião, eu tentei procurá-la com Annik, mas digamos que ela não estava muito… interessada. Ela queria procurar por uma coisa e eu outra. Não preciso nem dizer que não deu certo. Eu também sei que, provavelmente, foi um Príncipe que a escreveu, mas deve ser mentira. Mesmo um Obaten não teria capacidade para compor algo tão poderoso assim.

— Ssss — a Serpente sibilou, num gesto de reprovação. — Não duvide dos Obatenva! Eles eram muito poderosos e muitos sábios. Dizem que o conhecimento deles era tão grande que eles descobriram segredos obscuros sobre muitas coisas. Infelizmente, todo esse conhecimento foi perdido. — O semblante da Serpente se animou e suas presas ficaram escancaradas num sorriso ofídio. — Adam, tive uma ideia! Por que você não pensa em visitar a Instituição?

— Seria impossível entrar lá, Serpente — Dusq disse. — A Instituição foi tomada. A Organização está lá.

— Então vamos ter de pensar em outra coisa — Adam comentou. — E as opções não estão ao nosso favor.

— Adam — a Serpente o chamou —, você tem certeza de que não sabe de mais nada sobre isso? Você procurou por essa música a vida toda!

— E nem com esse tempo fui capaz de achá-la.

A Serpente balançou a cabeça. Decepcionada, provavelmente.

— Eu acho que tenho uma última ideia — Adam expôs. — Tenho um amigo que pode saber sobre isso. Se ele estiver vivo, na verdade. Com sorte, ele está. Lembro-me que, quando soubemos que a Organização estava massacrando membros da Legião, alguns Legionários se esconderam.

A Serpente fez uma cara de surpresa.

— Um membro da Legião? Vivo…?

— Sim. Ele deu a localização de seu esconderijo para mim e para Annik. Na época, muitos já tinham morrido, mas um pequeno grupo fugiu. Desertou.

— Você, Annik e mais quem?

— Ora, quem mais poderia ser? O único que não tinha nenhum talento para pegar num fuzil.

As presas da Serpente estavam a mostra, já que a mandíbula estava escancarada de tanta surpresa.

— Isaac…

Lembrava-se dele com pouca vivacidade na memória. Um homem baixinho, gordo e careca, os restos de fios de cabelo balançando no topo da cabeça. Era o mais próximo que tinham de “gênio” naquela época. Talvez fosse um, já que tinha todo o jeito extravagante e cauteloso, um transtorno obsessivo compulsivo, de um.

Ele até era um pouco como Adam: sem a menor aptidão para a guerra, mas com um olhar forte para seus livros, computadores, rádios, fios emaranhados e qualquer coisa que remetia à ciência e conhecimento. E era exatamente nisso que ele e Adam se diferenciavam: Adam tinha sua mente preenchida com música de todos os tipos, seus pensamentos eram melodia, enquanto os pensamentos de Isaac eram simples, concisos e exatos, como os números. Outra diferença era que Isaac não se apegava à própria mente, mas ao que deveria fazer. Com pensamentos simples e crus daquela forma, era difícil prestar atenção ao que a mente tinha a dizer.


Era fácil perder-se em sua própria mente quando seus pensamentos vêm à tona de modos atrativos, por isso Adam constantemente vagava dentro do labirinto sem paredes de suas memórias. Ele era como um deserto: vazio de opções. Toda sua vida, desde que caiu no Mundo, fora nula, sem saber o que fazer, sem ter um objetivo, um caminho a seguir. Toda sua vida seguiu-se sem premeditação, sem planejamento, sem um ponto crucial a ser atingido. O que aconteceu, aconteceu.

Perdeu-se no caos de sua mente e no caos do mundo. Sua mente era vazia de desejos, assim como de opções. O que fazer quando se cai num mundo completamente hostil e inóspito? Adam não sabia. Apenas seguiu, tentando sobreviver de maneiras esdrúxulas, chegando aos pontos que fizeram sua vida ser o que ela era.

No final das contas, ele era o coadjuvante da própria vida. Era apenas “mais um” na Universidade, depois “mais um” na Legião, e foi o coadjuvante da história de Annik quando pensara que ele era o protagonista. Tudo o que ele fez por ela e com ela apenas serviu para que ela escrevesse a própria história, enquanto a dele ainda permanecia em branco, a caneta destampada e as páginas amareladas e sem uma palavra nelas.

Por um instante, teve ódio dela. Tudo o que fizera fora apenas para que ela pudesse ascender, enquanto ele caía sobre as areias do deserto, uma dor excruciante no peito, o vazio, a morte... Tudo aquilo para no final ser rejeitado, jogado no lixo e condenado ao esquecimento.

De novo, aquilo voltava à sua mente como um pesadelo fedendo a mofo, tornando todo o sarlik ao seu redor pesado feito chumbo. A brisa gélida era quente como bafo e pegajosa como suor. O ar estava carregado de uma atmosfera tensa, como se ele carregasse radiação e estivesse impregnado com um cheiro terrível de morte.

As cenas passavam rapidamente, em flashes, em insights. Em milissegundos, ele sentia a dor do tiro, ouvia a voz sussurrada dela, ouvia o estampido da arma, sentia o cheiro horrível de sangue que subia e subia e tomava conta dele todo, entrava nele, e via a escuridão…

A Serpente percebeu quando Adam subitamente desmontou da sela do cavalo e sentou-se na areia. Crepúsculo ficou igualmente surpreso, mas continuou atento aos dois, esperando alguma ordem futura.

— Adam, você está bem? — a Serpente mostrou-se preocupada. — Por um instante você ficou meio “hipnotizado”, nos assustou.

Ele esfregou os olhos.

— Não muito. Vou ficar melhor, espero.

— Você está pensando nela, não é?

— Como sabe?

— Você fica com uma cara de tristeza quando pensa nela. Tristeza misturada com pena.

— Eu não estava com essa cara. — Ele não iria dar o braço a torcer. Sabia que, se contasse a verdade, o sermão dela seria insuportavelmente longo e chato, porém necessário, ele sabia.

Infelizmente, a Serpente era, além de teimosa e sarcástica, uma boa leitora de sentimentos.

— Ah, Adam, pare com isso, você é tão transparente quanto o vento! Qualquer um poderia saber o que você está pensando só de olhar para a sua cara!

— Certo, certo… Você acertou, eu estava pensando nela. Não nela exatamente, mas no que ela fez. Toda vez que me lembro… Por poucos segundos, é como se eu visse tudo aquilo de novo, só que acelerado. Mas os sons, os cheiros, a voz dela… É como se estivessem em câmera lenta.

E então, a estocada final, o golpe de espada bem no coração do oponente — quase literalmente.

— Você ainda gosta dela, não é?

Mas nem mesmo Adam sabia se aquilo era verdade. Se os outros achavam aquilo confuso, imagine ele? Às vezes, pegava-se querendo enforcá-la e vê-la sofrer por tudo o que ela o fizera passar, mas em outros momentos, só queria que voltassem a ser como os velhos camaradas que foram.

— Não sei se é gostar… mas eu quero saber por quê...! Eu não vou descansar enquanto não saber!

— Para você descobrir, vai ter que cumprir o que a Rainha mandou. Mesmo que isso signifique ter de invadir aquela Instituição e matar todo membro da Organização que estiver rodando por lá. Você não pode deixar esse tipo de coisa impedi-lo. Annik está a quilômetros de quilômetros de distância da gente. Você deveria parar de pensar nela e se focar em achar essa maldita Música do Deserto.

— Você diz isso como se a odiasse.

— E odeio, depois que soube o que ela fez com você. Nesse ponto, o Hasir e a Organização estão certos: ela é uma traidora, Adam. Ela traiu o Faraó depois traiu a Legião. Ela traiu você, que mais confiava nela. O que você acha que ela vai dizer quando você perguntar a ela o porquê? Ela não vai pedir desculpas, Adam. Talvez até tente matá-lo de novo. Ela tentou matá-lo uma vez porque você era um estorvo para ela.

— Isso não faz o menor sentido. Você não estava lá. Você não ouviu o que ela falou antes de atirar.

— Hm. E o que ela disse?

Adam pôs as mãos sobre os olhos, mentalizando aquele momento com tanta vivacidade que parecia que a noite do deserto havia se tornado manhã. O insight deixou de ser insight e se tornou quase um sonho desperto, uma outra dimensão, um pesadelo lúcido. Parecia que Annik estava ali, na sua frente. Ele conseguia sentir o cheiro dela, conseguia ouvi-la se movimentando, o vento batendo no sobretudo e balançando o cabelo desajeitado dela; sentia as palavras de Annik tão próximas como se estivesse murmurando-as bem perto de seu ouvido. O sarlik naquela manhã estava mais forte que o usual. Conseguia ouvir o barulho do vento como se fosse agora. Até a sua surpresa continuava a mesma depois de tanto tempo, depois de repetir aquela cena na sua cabeça tantas vezes que até enjoou.

— Ela disse: “Adam, me perdoe”. E atirou.

A Serpente ponderou. Ela não era de parar para pensar, e sim falar para pensar.

— Isso… é bem estranho, Adam. Agora entendo por que você quer saber o que a levou a fazer isso. Não que eu esteja defendendo-a, é claro, ela tentou matá-lo, e eu ainda a odeio por isso. Mas não é como ela agia...

— Sim. Eu sei que ela não faria isso. Você também sabe, você conviveu com ela!

— Realmente, ela não era de fazer esse tipo de coisa. Era quieta e observadora demais. Muito calculista. Fria, talvez. Mas ela não era de machucar quem ela… gostava, ou algo perto disso. Talvez ela tivesse um bom motivo para fazer isso. Um bom motivo…

— Ei, vocês dois. — Crepúsculo aproximou-se deles. Não parecia ter se importado com uma vírgula da conversa dos dois. — Não acham que está na hora de irmos? Não podemos demorar muito tempo ou chegaremos tarde demais no esconderijo do seu amigo. — Infelizmente, o tarde demais não significava atrasado para um encontro casual, ali. Significava tarde demais para encontrar algum resquício de vida.

— É, você tem razão. — Adam levantou-se, com a Serpente já enrolada em seu punho, e subiu no cavalo. — Eu só sei de uma coisa, Serpente: seria melhor se nós jamais tivéssemos conhecido Annik. Seria melhor se EU jamais tivesse a conhecido. Se eu fui um estorvo para ela, para mim, ela foi a mesma coisa.


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