Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 18
XVI - Expectativas


Notas iniciais do capítulo

fluctuations are aching my soul, expectations are taking its toll...

https://www.youtube.com/watch?v=Rywi9oXJg08
Tame Impala - Expectation



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/653186/chapter/18

XVI

Expectation


“It feels like in all of the universe

There is nobody for me…”¹

— Tame Impala; Expectation.


Annik não dormia.

A Menina pôde perceber isso quando ela se levantou e fez a cama ranger. Ela se levantou devagar, não foi culpa dela, mas da cama, aquela madeira podre e velha. E Isaac ainda se importava com aqueles móveis… Desde então, não apenas Annik estava acordada como Alice também, fingindo que estava dormindo enquanto, na verdade, apenas ouvia, mas não via. Afinal, a Menina nunca fora boa em ver nada além do que ela mesma gostaria de ver.

Ouvindo, ela via melhor do que observando.

Annik pisava a passos largos no chão de carpete. Ouvia seus passos. Podia vê-los através dos sons. Eram passos firmes, decididos. Podia ver a distância de cada um sem precisar se remexer na cama ou abrir os olhos.

Porém, remexeu-se. Abriu os olhos. Viu e ouviu.

— Annik… — sua voz era meio sonolenta. — Você não consegue dormir?

A outra negou com a cabeça. Estava sentada diante da janela, sem nem mesmo observar a Menina. Mas Alice sabia que Annik, diferente dela mesma, era boa em ver e observar. E também era igualmente boa em ouvir e observar.

Annik vestia-se de modo muito bizarro. Moletom cinza e calças de pijama brancas. Estava descalça e sem a boina, o que era estranho. Engraçado, até, considerando que ela era uma assassina a sangue frio… não. Alice não podia pensar daquele jeito. Não depois de tudo o que ela havia feito para a Menina. Annik era boa. Mas havia uma parte nela que era ruim… ou o contrário. Temia pelo contrário. Preferia acreditar na bondade corrompida dela.

— O que você tá vendo? — perguntou a Menina, sem sono. Ver Annik ali, sem sono e sozinha, a fez perder o sono também. Ela iria se arrepender depois, sabia disso. Dormir no carro não era nem um pouco confortável e provavelmente morreria antes de achar outra cama macia como aquela.

— Eles.

— Eles? Eles quem?

— A Organização. Eles estão nos caçando. Soube disso no momento que vi aquele corpo morto na autoestrada e Isaac apenas confirmou o que eu já sabia.

— Eles não vão entrar aqui na casa e nos trucidar, você sabe, né?

— O quê? — Houve um lampejo de sorriso nos lábios de Annik. — Eles não irão fazer isso mesmo, não. Vão fazer coisa pior. Entrar é pouca coisa; eles irão invadir, arrombar as portas. Ou talvez nem se deem o trabalho: vão incendiar a casa. Mas caso eles entrem, ou melhor, invadam, eles vão não apenas nos trucidar. Eles vão nos torturar, mas não nos matar. Eles querem que o inimigo sofra o máximo possível. Eles vão nos esquartejar ainda vivos e, caso sejam piedosos, vão “apenas” nos crucificar. Ou coisa igualmente sinistra.

Pelo visto Annik aprendera muito com as barbaridades daquela Organização. Mas nem ela tendo torturado um homem daquela forma a tornava tão ruim, tão demoníaca quanto aquele grupo sórdido. Ela era boazinha, uma boa samaritana perto desses… sub-humanos. Sub era pouco, ainda. De acordo com a descrição, eles pareciam ser seres das profundezas, do Hades, do verdadeiro Inferno, se é que tal coisa existisse naquele mundo. Ou aquele mundo era o próprio Inferno e Alice tinha morrido e ido parar ali, com assassinos, pederastas, ladrões e hereges. E aquele inferno parecia ser do pior tipo possível. Não havia fogo por todo lado, nem demônios vermelhos de rabo pontudo como flechas carregando tridentes andando por aí, nem valas onde os condenados ficavam de cabeça para baixo ou mergulhados num lago de piche ardente. Era menos pior que sofrimento físico. Mas o sofrimento psicológico deveria ser pior. Muito pior. O que é o Inferno de Dante comparado àquilo? Pior que ter de ver os condenados sofrendo fisicamente era ter de andar com uma, conviver com uma, ver as atrocidades cometidas por uma.

Que mal tão terrível teria cometido a Menina para ir parar ali, onde apenas os mais terríveis seres da humanidade pareciam ir após a morte? Por um instante, teve nojo de si mesma.

A Menina levantou-se da cama e Annik ruborizou. Olhou para si mesma e viu que estava apenas de roupa íntima. Logo tratou de vestir e abotoar o sobretudo que Annik lhe dera.

Aquilo era estranho. A Assassina não tinha vergonha de torturar um homem até a morte, mas tinha vergonha do fato de a Menina estar seminua. A ética daquele povo era completamente adversa. Tinham vergonha de tudo que estava ligado à sexualidade e ao afeto, mas não tinham nenhum pudor em matar, aniquilar, causar dor e sofrimento.

Alice aproximou-se de Annik e sentou-se ao lado dela. Estavam próximas como nunca haviam estado. Próximas até demais. O suficiente para que a Menina se sentisse desconfortável. Mas veja o lado bom, ali não havia nenhum taco de baseball… apenas as mãos nuas dela… Não, ela não vai fazer isso. Ela não iria simplesmente estrangular a Menina, oras. Se quisesse, já teria feito há muito tempo… Ou não? Que merda, ela não podia pensar desse jeito!

— Você acha que a morte aqui pode ser a pior coisa — disse Annik, olhando fixamente para seus olhos, e, por um instante, pareceu à Menina que ela estava lendo seus pensamentos. Não, ela só estava dando continuidade ao assunto… Se ela lesse seu pensamentos, estaria muito, muito fodida —, mas na verdade a morte é um alívio. Um alívio para toda essa desgraça. — Ela voltou a ver pela janela. — Há coisas piores que a morte. Eu já vi. Eu já sofri. — Ela deu um suspiro pesaroso. — Eu fiz.

— Annik… Ahm…

— O que houve?

— Bem… Me desculpe.

— Pelo quê?

— Por ter sido uma idiota com você.

Ela arqueou as sobrancelhas, sem saber do que Alice estava falando.

— Mas você nunca foi idiota comigo.

— Bem, eu gritei com você naquela vez. — Aquele maldito momento que a Menina não gostava de se lembrar. Pensava que teria pesadelos todas as noites, mas tudo o que vinha quando ela dormia era a escuridão do sono mesclada ao frio cortante do deserto. — Mas eu pensei muitas coisas ruins sobre você. Mas você não parece ser ruim… bom… não tanto quanto eu esperava.

Annik levantou as sobrancelhas.

— Eu… não sei o que responder. Ninguém nunca me disse esse tipo de coisa antes.

— Apenas agradeça. — Tentou mostrar bondade nos olhos e na fala.

— Obrigada. Densk.

— Como é “de nada” em kra’vstan?

— Aranek.

— Nesse caso, aranek.

Annik sorriu. Um sorriso verdadeiro. E demorado. Alice pôde ler nos olhos dela que ela estava feliz… não, feliz era algo forte demais… contente com aquilo. A felicidade era barrada por um campo de força ao redor de Annik, um campo de força vermelho, fedendo a sangue, tripas e suor que impedia quaisquer sentimentos bons de se aproximarem. E quando eles vinham, iam embora tão rápido quanto haviam entrado.

— Você teve medo após… aquilo, não é?

— Medo?

— De mim.

— Ahm… sim, mas…

— Você estava certa em ter medo. É por isso que talvez tudo o que eu toco acaba virando pó. É por isso que, sempre que eu me aproximo de algo, ele se afasta. Você entende o que eu digo, certo?

Infelizmente. Infelizmente a Menina entendia. Era por causa da crueldade que as pessoas se afastavam. Que todos haviam morrido — não sabia se pelas mãos dela ou por que ela havia se envolvido. Que todo o passado dela havia virado ruínas de um templo destruído. Não era algo com o qual Alice se sentia bem. Na verdade, se sentia bem mal. Tinha um gosto muito amargo para o seu gosto. Um cheiro muito ruim. Uma sensação de impotência, de não saber o que fazer, tristeza e pena. Tudo junto.

— Eu… ahm… entendo. — Não queria ter respondido aquilo, mas seria pior se dissesse que não tinha entendido. Ela iria explicar em detalhes, provavelmente, e Alice não queria se sentir mais triste e com pena e impotente do que já estava. Era como… ela se sente mal e o que eu posso fazer? Nada, ela sabia. Ela apenas podia, apenas devia ficar sentada, observando e não fazendo absolutamente nada. Talvez pudesse confortá-la, mas não se sentia no direito de fazê-lo. E Annik talvez não aceitasse aquilo muito bem. Umas poucas palavras bastariam, desde que fossem verdadeiras. E seriam, porque a Menina não estava se sentindo nada bem com aquela… confissão. Será que um padre se sentia assim quando iriam confessar? Ou apenas ouviam aquela conversa enfadonha de pecado e depois dizia para os fiéis “e não peques novamente” como Jesus tinha dito a uma pecadora? — Eu… sinto muito, Annik. De verdade.

— Está tudo bem. — Não estava. Ela conseguia ler na voz dela. Mas o que diria se negasse? Não está tudo bem, oras, você está sendo caçada por um bando de torturadores cruéis que querem te esquartejar, você parece ter uma puta de uma crise de identidade, todos os seus amigos morreram, e uns por suas mãos ainda!, veja bem, e você ainda quer me falar que está tudo bem? Você está completamente sozinha, Annik, todos te odeiam ou têm medo de você, e eu inclusive! Não, calma. Foi apenas um descontrole, só isso. Só um descontrole. Respire. A Menina não odiava nem tinha medo de Annik mais. E ela não tinha crise de identidade, apenas estava… confusa e arrependida. Tecnicamente, a Menina e Annik tinham bastante coisa em comum. Ambas eram meio descontroladas (apesar de que o descontrole de Alice resumia-se aos seus pensamentos), confusas, arrependidas e sozinhas no meio do Deserto.

— Sério? — Era a melhor forma de dizer “não está” indiretamente.

— Sim. Sério. — E ela sorriu. Duas vezes naquele mesmo dia, superando todas as expectativas da Menina.

E foi com aquele sorriso que Alice percebeu que estava errada. Totalmente errada. Annik não estava sozinha. Aliás, nenhuma das duas estavam. Elas tinham uma à outra.


“What is better — to be born good, or to overcome your evil nature through great effort?”²

— The Elder Scrolls V: Skyrim; Paarthurnax.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

¹Na frase inicial: "Parece que em todo o universo / Não há ninguém para mim".

²Na frase final: "O que é melhor — nascer bom, ou superar sua natureza má através de grande esforço?"



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Entropia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.