Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 15
XIV - A Partida


Notas iniciais do capítulo

birds of a feather, we are birds of a feather...

https://www.youtube.com/watch?v=QKFw4i0jsoM
Warpaint - Billie Holiday.



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XIV

A Partida


Adam estava sorridente mesmo sabendo que, muito provavelmente, ele iria morrer.

A Serpente também estava sorridente. Ou o mais sorridente que uma cobra poderia estar. Já Dusq não parecia nada além de calmo, como se aquele dia, aquela missão fosse como qualquer outra. Bebia sua água tranquilamente e talvez a Rainha até tivesse lhe dado uns torrões de açúcar do café da manhã.

Adam estava sorridente não por que iria morrer — era óbvio que não. Havia algumas pendências para resolver antes da morte. E a promessa da Rainha era lei: se ele cumprisse, tudo aquilo que ele mais quis desde o tiro seria realizado, e ele então poderia morrer em paz. Ou ser morto em paz. Tanto faz. Desde que ele realizasse o que pensava ser sua missão, sua grande missão. Aquela ali era apenas um intermédio para conseguir alcançá-la.

— Já está na hora — Adam avisou para Dusq e a Serpente. Ambos assentiram. A Serpente, com um sorriso no rosto. Crepúsculo, com um assentir de cabeça profundo.

O Bardo selou o cavalo, amarrando todas as rédeas e todos os suprimentos necessários para aquela longa, longa e possivelmente interminável viagem. A Rainha havia lhe dado água, o mais importante, e carne seca para a Serpente e Adam. Serpente também ganhara alguns ratos mortos. Para Crepúsculo, havia capim e torrões de açúcar — mas não muitos. Na verdade, não havia muito para ninguém ali, tendo em vista o tempo da viagem.

As armas também estavam devidamente prontas. As espadas — Adam era péssimo com elas, vale ressaltar —, brilhando de tão polidas e afiadas. Havia três montantes e uma cimitarra. Adam era tão terrível com elas que até mesmo a Serpente, mesmo sem mãos, deveria ser melhor manejando uma. Ou Dusq.

Tentou imaginá-los usando uma das espadas. A Serpente com uma delas enrolada na ponta da cauda e Crepúsculo mordendo o cabo de uma e virando o pescoço violenta e desajeitadamente, tentando atacar qualquer um que se aproximasse. Era engraçado. Deveria se agarrar àquelas visões para não ter um destino de loucura ou tristeza no Sanduur.

Havia também armas de fogo. Algumas pistolas e revólveres e um rifle de assalto. Adam era terrível em atacar, mas uma arma de fogo era de grande ajuda, melhor que uma espada. Mirar e atirar. E lidar com o recuo da arma, mas, com sorte, talvez só as pistolas dessem conta.

Adam montou no cavalo, tendo a Serpente enrolada em seu pulso. Ele, assim que montou, olhou para trás e viu a Rainha e o conselheiro Aaron, os observando.

Crepúsculo, sem precisar de nenhum comando, deu partida e cavalgou pelo deserto.


O Saar era um mar, e Adam se afogaria nele. Ele o engoliria em meio às suas ondas frias mesmo no calor, numa jornada sem volta. Seu corpo descansaria não no fundo do oceano, mas boiaria sobre as areias, até que outra onda de grãos se quebrasse contra ele, e outra, e mais outra, e assim seguir-se-ia por eras incontáveis, mais tempo do que ele já havia vivido, até que seu corpo seria então submerso a seco e sua história talvez esquecida. Talvez não, mas as chances eram de que ele não teria chance.

Se não tinha chances, por que o faria?

Porque não havia mais nada a fazer.

Sua vida tinha sido um desperdício, e agora era a chance de fazê-la valer um pouco mais.

Ele tinha uma escolha de dormir como Annik provavelmente tinha feito ou de verdadeiramente morrer e apagar toda sua consciência, seus nomes e sua essência daquele mundo. Deixar a consciência vagar num mundo etéreo ou, como se ela fosse uma vela, pôr um copo sobre ela para que a chama morra.

A primeira opção era a mais chamativa, mas Adam não sabia por que motivo não a queria. Talvez porque fosse fácil demais, e sua vida sempre fora fácil demais. Talvez porque havia a possibilidade de alguém, algum dia, acordá-lo, e ele não gostaria de viver sua vida de novo.

Talvez... talvez a morte fosse um fim mais digno. Talvez ela fosse o fim de que precisava. Dormir era um falso final, que os medrosos escolhiam com medo de encarar o verdadeiro monstro do término. Ele, no entanto, estranhamente não tinha medo do resto. Na verdade, via até uma certa calma no fim. Sua vida sempre seguiu-se com acordes e/ou notas de violão, mas na morte, a única canção que iria acompanhá-lo era o silêncio. E sem silêncio, não há o som.


Adam começou a tocar uma canção em seu violão enquanto Dusq trotava. A Serpente começou a sibilar com sua língua bifurcada. O som dos trotes, o sibilo da cobra, as notas sendo tocadas e o sarlik soprando. Com aquela canção, as areias se movimentaram numa dança calma, feito um ritual. Adam as observou. Elas pareciam abrir alas para eles, enquanto fechavam-se logo atrás.

As palavras têm poder, era o que Annik e muitos outros diziam, mas a música também tinha, e para Adam, ela bastava. Deixava que as notas e acordes falassem por ele.

Virou-se e viu, no meio de uma confusão de areias que se dispersavam no ar, cada uma procurando seu lugar trombando uma com a outra naqueles instantes em que a gravidade permitia-lhes planar, as sobras opacas da Rainha e de seu ajudante. Não sabia quem ela era nem por que lhe permitiu fazer aquilo, mas era o único caminho que podia seguir. Enquanto via a sombra deles em meio aos seus pensamentos, as areias os encobriam mais e mais, até que os fez desaparecer por completo. Atrás, havia um amontoado de grãos que flutuavam e fechavam até mesmo o céu.

Voltou-se e viu à sua frente o céu lilás sem nuvens, as areias alaranjadas o chamando para uma batalha que jamais venceria. E, não por orgulho ou beligerância, Adam aceitou com um sorriso. Um sorriso destemido, talvez, mas com mais tristeza do que coragem.


 

E, desde então, Adam não olhou mais para trás.


“And it’s for my heart that I’ll live

‘Cause you never die…”¹

— Warpaint; Billie Holiday.


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Notas finais do capítulo

¹Na frase final: "E é pelo meu coração que eu vou viver / Porque você nunca morre...".



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