Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 14
XIII - A Promessa




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XIII

A Promessa


“Aquele que de vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela.”

— A Bíblia Sagrada; João 8:7.


O carro parou e Annik saiu dele.

— Pra onde você tá indo? — a Menina, acordada e observando, entediada como sempre, respondeu. Talvez aquela situação animasse as coisas. Animasse num sentido bem literal, porque animação, naquele mundo, parecia ser ou violência extrema ou aqueles nomes totalmente bizarros. Ou ambos. Apesar do evento extraordinário, ter que esperar no carro era igualmente chato.

Annik correu pelo asfalto sujo de areia. Era estranho vê-la correr. Alguém que sempre andava com passos lentos e trôpegos, quase se arrastando pelas areias como um explorador sedento, agora corria com vigor. Ficar sentada durante muitos tempos após ficar andando durante dias e noites que pareciam não ter fim talvez tivesse reposto um pouco de energia nela.

A Menina, obviamente, não iria ficar ali sentada, no frio do ar condicionado, esperando por Annik. É lógico que ela iria descer para ver o que estava acontecendo. E era até bom para deixá-la menos entediada. Argh. Viagem sem música ou sem livros parecia uma tortura lenta e excruciante. Na verdade, ela gostaria apenas de alguma coisa para fazer, mesmo que não fosse escutar música ou ler alguma coisa. Poderia até ser conversar… mas Annik não era muito de conversa, não. E duvidava que ela fosse falar alguma coisa. Era provável que ela respondesse apenas com um “hum” cada frase que Alice dissesse.

Arrependeu-se de ter descido do carro. Lá fora estava um calor infernal. Alice correu, indo aonde Annik estava, agachada, analisando alguma coisa que parecia o motivo da sua reação esquisita. Pessoas esquisitas tinham reações esquisitas, mesmo.

— Como você consegue aguentar esse calor?

Ela não respondeu. E a Menina soube por quê.

Annik estava ajoelhada diante de um… cadáver. Alice iria ficar amedrontada, mas a experiência anterior já tornava aquela cena muito menos pior. Nem mesmo era assustadora. Ela tomou um daqueles sustinhos de quando alguém grita no seu ouvido do nada. Ah, é só um morto, super normal. Mas, do jeito que Annik reagia àquilo, não parecia comum encontrar gente morta na Rodovia todos os dias. Justamente num mundo onde a vida parecia tão banal… Chegava a ser uma ironia dolorosamente engraçada. Uma piada de humor negro no meio de toda a desgraça.

O cadáver era um homem. Estava deitado, com um tiro na têmpora. Do buraco, saía sangue, mas já estava seco. Talvez tivesse sido morto havia muitos tempos.

— Você conhece ele? — perguntou a garota.

— Nunca vi na minha vida. Mas sei que se chama Rudolph. E levou um tiro na cabeça. Que infelicidade…

Parecia uma piada. De muito mau gosto, mas era o que tinha para agora. Alice riria se a piada — se realmente aquilo tinha sido uma piada — fosse engraçada, mas nem isso. Ou talvez Annik realmente estivesse verdadeiramente triste — só isso já soava como uma piada ainda maior, Annik triste por causa do destino alheio, e era uma piada muito mais engraçada — diante do destino deprimente do morto. O que Alice achava difícil. Apesar de ser igualmente difícil o fato de uma assassina como ela ter humor negro daquele tipo. Na verdade, era impossível conceber a ideia de que ela teria qualquer tipo de humor.

— Sabe quem matou ele?

Annik negou com a cabeça.

— Mas tenho algumas suspeitas — ela completou. — E, se minhas suspeitas estiverem corretas, nós provavelmente também estamos sendo caçadas.

Naquele momento, tornaram-se menos que nada. Menos que zero. De uma garota inútil e uma pária, eram agora algo próximo de um terrorista caçado mundialmente, temido e repudiado, tendo seus feitos comparados ao ponto da desumanidade. Em alguns casos, talvez fosse verdade, mas não no delas. Na verdade, talvez fosse meia-verdade. Annik realmente cometia atos que faziam com que a Menina duvidasse de sua humanidade, mas ela própria era inocente de tudo.

Aquele que nunca pecou, que jogue a primeira pedra. E a Menina a jogava, pois ela, naquele mundo, nunca tinha cometido uma sequer atrocidade que pudesse lembrar. A não ser se considerassem acordar uma mulher de um coma um pecado, ou ter medo e uma espécie de ingratidão por essa mesma mulher que acordara e que agora a protegia de todos os males que poderiam afligi-la.

Pensando bem, talvez fosse realmente pecadora. Annik, por mais desumana que pudesse soar em alguns momentos, ainda merecia seus eternos agradecimentos por ser sua guia, sua guarda-costas e seu único caminho. Seria um ato orgulhoso não agradecê-la, e seria mais ainda fazê-lo de má vontade.

Porém, vontade não era o que tinha naquele momento. Sentia calor, e o calor a irritava, ver um corpo na estrada apodrecendo a amedrontava e ser caçada como um animal a fazia sentir ambas as coisas. No entanto, era uma promessa que sua mente tecia inconscientemente e que, mal tendo se formado, já a cutucava para ser cumprida.

Sua mente gostava das coisas benfeitas e devidamente organizadas. Adiar uma promessa apenas desorganizava sua cabeça já pouco ordenada e a afligia. A sensação de “só mais um pouquinho” já nascia em sua cabeça. Um pouquinho se tornaria horas, dias, anos, nunca.

Não tinha toda aquela ansiedade em cumpri-la por causa de Annik e exclusivamente ela. Na verdade, a sua própria mente a importunava, retornando à consciência, como algo que mergulha e volta a boiar, sua promessa intrinsecamente feita. Aquela sensação de “algo deixado para depois” tornava-se um estorvo para sua mente que mal aguentava o pouco peso que carregava.

Entretanto, uma promessa carregava todo um peso de uma medida diferente, que, mesmo sua mente não podendo suportar, deveria. Uma promessa, pelo menos era o que parecia a Alice, era como as palavras da estranha língua do deserto: profunda. Carregava sentimentos dentro de um juramento, um “eu prometo” ou de um simples enroscar de dedos mindinhos. Uma promessa carrega os sentimentos de uma outra pessoa junto com os seus próprios, e largar esse peso é jogar da beirada de um abismo as emoções alheias, enquanto você próprio tenta evitar seu corpo de cair.

Ainda que os sentimentos de ambas as partes sejam carregadas dentro de um único voto, aquele que aceitou a promessa ainda tem o poder de se salvar. Afinal, empurrar outra pessoa da beirada de um abismo não quer dizer necessariamente que você também deverá cair.

Porém, Alice era inconscientemente consciente de tudo isso, e sabia o que jogaria fora caso não cumprisse a própria promessa. Talvez Annik a largasse no meio do deserto para morrer ao perceber a sua ingratidão ou talvez ela se enfurecesse e a matasse. Ou talvez, ao fazer aquilo, a Menina surpreendentemente machucasse os sentimentos de Annik. Era estranho pensar daquela forma. Estranho e cruel. Estranho porque era como pôr Annik na posição de um ser humano normal, com gostos, tristezas, alegrias, emoções, e não na posição de uma psicopata assassina desumana. E cruel por causa disso, também. Porque a Menina, que se julgava inocente, conseguia atacar e rebaixar aquela que, apesar de toda escuridão e maldade dentro de si, a ajudava sem nada a esperar em troca.

Sentiu nojo de si mesma quando percebeu que não era nada senão uma hipócrita e ingrata que tinha a coragem de fazer aquilo com a única pessoa que provavelmente a ajudaria naquele mundo de dor.

— Obrigada — sua mente obrigou-a a sussurrar.

— O quê? — A curiosidade de Annik interrompeu-a a ligar o carro.

— Nada. O cheiro desse cadáver já tá me dando náuseas, vamos embora logo.

Annik a olhou com uma certa desconfiança justificável, mas mesmo assim, Alice encolheu-se na sua vergonha de não ter conseguido encarar a promessa que fizera e permaneceu calada acerca daquele assunto.


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