Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 12
XI - Alice




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XI

Alice


Muitos tempos pareciam ter se passado desde que a Menina Sem Nome dormira. E muitos mundos e vidas pareciam ter se passado quando ela acordara. Em um instante estava num mundo e, quando dormira, ele todo pareceu sumir sem vestígio, como se fosse um sonho esquecido.

O carro estava quente por causa do aquecedor, mas nem ele parecia esquentá-la do frio cortante do Deserto. A viagem era silenciosa; Annik não falava nada, nem mesmo um único murmúrio, e nem mesmo havia rádio ligado. E, se estivesse ligado, provavelmente iria emitir apenas estática.

A Menina sentou-se no banco traseiro e perguntou, meio sonolenta:

— Uhm… — ela bocejou. — Onde estamos?

— Ainda na Rodovia.

— E quanto tempo pra chegar… aonde você quer chegar? — a Menina não fazia sequer ideia de onde estavam indo. Annik simplesmente pegara o carro emprestado (se bem que ela duvidava de que a assassina fosse devolvê-lo) e subitamente estavam cruzando uma Rodovia gigantesca? O quê?! Se bem que, quando Annik a perguntara se quisera seguir com ela, a assassina não mencionou em momento algum o local para onde iria. É, era justo. Não tanto, mas um pouco.

— Muitos tempos.

— Pra onde a gente vai? — perguntou casualmente, sem nenhuma pretensão de obter alguma resposta, até porque as respostas de Annik eram escassas de informação, isso quando elas vinham.

— Encontrar um… velho amigo. Lembra-se das explicações sobre o kra'vstan que eu lhe disse que daria?

— Aham.

— Pois ele saberá explicar muito melhor a você. Eu posso ser boa com as palavras, mas sou melhor em outras… artes — Artes de matar, só se for, pensou a Menina. – Meu amigo, contudo, é exímio com elas e saberá explicar muito mais rápido e melhor do que eu. Mas esse não é o principal motivo de estarmos indo para lá; ele pode nos oferecer uma explicação sobre o porquê de você não possuir um kayrn. Aliás — Annik olhou para o retrovisor, observando os olhos da Menina pela primeira vez desde que entraram no carro —, você precisa de um nome. Chamá-la por algo que não é um nome ou próximo disso me é estranho. Soa até… frio — ela dizia aquilo como se fosse uma pessoa completamente inocente de qualquer coisa, quase um anjinho, faltando somente a auréola flutuando sobre a cabeça.

A Menina olhou-a de modo inquisidor, as sobrancelhas retesadas de “o que raios você quer dizer, sua demente?”. Mas o que falou foi apenas:

— Quê?

— Você precisa de um jeir. — A Menina manteve as sobrancelhas tensas, mas arregalou os olhos agora. — Não sei bem como explicar essa palavra a você, mas saiba que ela significa algo como “pseudônimo” na língua incomum. Bem, não é exatamente um pseudônimo, mas tem o mesmo valor de um. Em resumo, um nome o qual ser chamada. — Relaxou as sobrancelhas e os olhos. Agora sim tinha uma explicação um pouco… ahm… útil. Eu acho.

— Tá legal, e qual é esse “jeir” que você pretende me dar?

— Eu ainda não sei exatamente, mas tenho pensado em alguns nomes, alguns que li em livros quando era mais nova — a visão de uma Annik mais nova era até interessante… Imagina, uma Annik adolescente? — Se você tiver alguma sugestão, eu agradeço.

— Que tipo de nome vocês costumam ter aqui? — não fazia nem ideia por onde começar a sugerir.

— Quaisquer tipos — aquilo não era muito esclarecedor, mas tratando-se de Annik, a Menina já havia se acostumado com suas respostas quase inúteis. Era melhor que silêncio. Ao menos a voz dela era agradável.

— Ahm, você primeiro — tentou ser gentil, mas na verdade foi apenas burra, porque não fazia ideia de um nome para si mesma.

— O que acha de Sarah?

— Sei lá. O que você acha?

— Hum… Não parece combinar muito com você. A imagem que tenho desse nome me é completamente diferente. Parece-me alguém muito ligada a códigos de honra e/ou a ideais próprios. Ou seja, não me parece você, porque, até o momento, você apenas seguiu o que eu lhe pedi. Com exceção de quando você gritou comigo naquela hora… fora isso, não, nir. — A Menina concordou. Nem mesmo se imaginava defendendo ideais de honra ou coisa do tipo. Era interessante e bonito, mas não parecia combinar consigo. Ela era muito submissa, e se não fosse, talvez a situação ficasse pior. O maldito taco de baseball… — O que acha de Anna?

— Por Anna só consigo me lembrar do seu nome. — Kayrn, se corrigiu mentalmente. — Não mesmo.

— Tudo bem… — ela suspirou e, subitamente, arregalou os olhos como se num insight. — Alice.

— Não sei o que pensar desse, o que você acha?

— Li esse nome pela primeira vez lendo um livro. A personagem principal, Alice, me lembrava bastante você. Observadora, principalmente, sua característica mais marcante. — A Menina corou. Era estranho saber que Annik também reparava nela, quase tanto quanto a Menina reparava em Annik. — Ela também era muito obediente. Pensava por si própria, mas não tinha a coragem necessária para também agir por si mesma. Você pensa bastante, é possível perceber. É relativamente fácil ler seus sentimentos, enquanto seu nome ainda me intriga. Se é que você realmente tem um. E ela era bastante… não sei, chamava a atenção. Você também chama justamente por isso, por ser diferente das outras pessoas do Mundo. Ela era uma boa pessoa e você também parece ser bondosa.

— Com isso você quer dizer que eu sou covarde e submissa?

— Eu não disse que você é covarde, apenas submissa. E eu não estou falando que isso é ruim, apenas ressaltando um fato. — A Menina não era covarde. Submissa, talvez um pouco. Não, ela era mesma, tinha de concordar com isso. Mas não covarde. Ela acompanhava uma mulher que assassinou um homem a sangue frio, com a maior violência do mundo, e ela tinha a ousadia de falar que ela não tinha coragem necessária?! Aquilo era inadmissível. Se ela tivesse coragem, aposto que estaria morta, largada para as areias viajantes do deserto. O taco de baseball… o maldito taco de baseball

— Você iria gostar se eu, do nada, largasse você a sós? — retrucou-a, tentando controlar a indignação, e agindo de forma inteligentemente inquisidora.

— Não faria diferença para mim. — Ela era sincera até de mais, e a Menina teve que admitir isso: era a mais pura verdade. Não faria diferença para Annik se ela, um estorvo que fora desde o princípio, estivesse enterrada a sete palmos do chão. Talvez a assassina até agradecesse aos céus, a Deus, ou seja lá em o que ela acreditava, se é que ela acreditava em algo senão o deserto e a morte.

— Okay então… — Deu-se por vencida. Era melhor prosseguir o assunto antes que Annik se enfurecesse e porque também não tinha mais nenhum argumento para contestá-la. Nem mesmo estava certa em fazê-lo, pois a assassina estava certa. — Esse nome soa legal. Vou me chamar “Alice” a partir de agora?

— Sim, basicamente isso. É isso ou chamá-la de Menina Sem Nome, o que não me é agradável.

— Bem, ahm, nesse caso… obrigada. — Era estranho agradecê-la. Nem mesmo soube por que fizera aquilo. Ser chamada de Menina Sem Nome não a incomodava. Para quem já estava andando com uma psicopata louca, nem mesmo ser chamada de Estúpida iria incomodar. A visão do taco de baseball incomodava, mas um mero nome não. Talvez tivesse agradecido pela própria Annik. Naquele mundo nomes eram importantes e Annik parecia tratá-los com mais cuidado que o normal. Agradecê-la provavelmente iria mostrá-la que a Menina também se importava com tudo aquilo, quando na verdade não estava nem aí. Mas ela não queria ficar em maus termos com Annik, e nem era por causa do taco de baseball. Toda aquela preocupação em nomeá-la poderia significar que, sim, Annik não se importava apenas com nomes, kayrnva e kra'vstanva, mas com a própria Menina, agora dita Alice.

Annik olhou diretamente para a Menina — Alice, agora era Alice —, sem necessitar do reflexo de um espelho, e respondeu:

— Aranek. Não tem de quê — ela respondeu com suavidade e delicadeza, enquanto olhava fixamente para os olhos de Alice, que em resposta também adentravam os dela.

Normalmente, quando se responde a um agradecimento, o “não tem de quê” vem acompanhado de um sorriso de satisfação e gentileza. O de Annik não viera. Apenas a boca reta, sem esboçar um mínimo movimento de felicidade e os olhos frios, frios como a noite interminável do Deserto.


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