Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 10
IX - A Rodovia


Notas iniciais do capítulo

https://www.youtube.com/watch?v=2logolRrpXY
GUM - Delorean Highway.

https://www.youtube.com/watch?v=uKBWxvN0VMc
Still Corners - The Trip.

https://www.youtube.com/watch?v=Uol4GEX1DTU
Warpaint - Drive.



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IX

A Rodovia

 

Annik falava sussurrando.

A Menina, observadora e atenta como era, percebeu isso enquanto ela falava com o bartender daquela taverna/bar/chiqueiro. Chiqueiro porque aquele lugar, o taverneiro que me perdoe, era uma nojeira completa. Parecia uma lanchonete dos anos sessenta, mas que foi completamente destruída por um apocalipse nuclear. Os bancos de couro vermelho estavam sujos e rasgados em alguns pontos; o chão e as paredes, um completo desastre, todos sujos, aparentando estarem oxidados; a iluminação era fraca, amarela, cheia de fios expostos. De fato, um lugar horroroso, mas estranhamente acolhedor. Bem, ou era o bar ou o deserto, que não tinha nada de reconfortante.

A voz dela era quase um sibilo. Na verdade, era como se ela expelisse muito ar nas vogais e desse bastante ênfase às consoantes, como o s, f, h e x. O volume, sempre baixo, ajudava a manter esse tom sussurrante que ela possuía.

As palavras lhe saíam de um jeito etéreo. Como se suas palavras fossem leves como uma pluma e, devido a isso, fossem carregadas pelo vento, se espalhando pelo ambiente mais como uma brisa do que como um som. Não era uma voz deslizante e áspera como a de uma cobra, mas que se deixava flutuar por aí, sem rumo, e era tão suave como seda. Não era como um veneno amargo de uma serpente, mas levemente doce. Se a Menina pudesse descrever sua voz com um cheiro, seria provavelmente o de perfume. Perfume doce e suave.

Era quase sedutor o jeito como ela falava. Era acalentador, mas ao mesmo tempo transmitia uma brisa suave e agradável. A Menina poderia ouvi-la falando o dia inteiro que não se cansaria. Mas Annik mal falava; era adepta do silêncio. A única vez que a ouvira falando mais do que uma frase inteira fora quando ela… destroçara o homem desconhecido no deserto, quando pediu desculpas. Ela podia ser uma adepta do silêncio, mas falava muito bem. Suas palavras eram densas, amargamente frias, mas, acima de tudo, eram sinceras, o que era ainda mais surpreendente.

Mesmo com aquela desculpa, ela não pôde deixar de sentir medo. Annik, no início, parecera-lhe boazinha, solícita quando a perguntou se queria andar com ela. E ela fora burra, aceitara. Não deveria ter aceitado… mas seria pior. Talvez fosse melhor ter aceitado. Bem, ela ao menos tinha uma esperança ali, não é mesmo? Mas se nada desse certo… Bom, a morte por inanição e sede ainda parecia melhor que morrer espancada pelo taco de baseball — a Menina olhou para o taco nas costas de Annik. Ela fugiria, se as coisas não dessem certo, e morreria de outra forma menos cruel.

Entretanto, havia algo no jeito daquela mulher que ainda lhe parecia… bom. Que era totalmente inconsistente com aquela crueldade. Na verdade, aquela crueldade era inconsistente com Annik, e ela mesma dissera aquilo. O descontrole por algo antigo. Não sabia o que era, mas ficou curiosa, é claro. Talvez não fizesse mal em perguntar. Ela perguntara outras coisas durante outros momentos e Annik não fizera nada além de respondê-la. Ela não era uma pessoa ruim, de fato.

Deveria nutrir algum tipo de esperança? Algo lhe dizia que sim. Não sabia se as suas observações e devaneios constantes a levaram a tirar essa conclusão ou se fora algum outro sentimento mais profundo — confiança. Ela realmente tinha medo de Annik, mas algo a impelia a confiar nela. Talvez fossem aquelas palavras que ela tinha dito. Eram tão sinceras…! Não tinha como ser mentira. Não podia ser mentira. Ela vira a expressão de Annik na hora, sentiu o peso das palavras dela como se fossem chumbo. E aquilo já bastou para que a Menina confiasse nela.

Talvez estivesse muito cedo para confiar, mas se não confiasse naquele momento, quando confiaria? Talvez nunca, e talvez aquilo a levasse a morte mais cedo do que confiar na totalidade das palavras dela.

Entre confiar e desconfiar, obrigada, prefiro confiar e sair andando com uma louca por um deserto bizarro a desconfiar e morrer de fome.

No fim, aceitar confiar naquela mulher — sempre com o medo, seu sentimento de alerta a permeando — não fora tão doloroso quanto ela própria imaginara. Afinal, desde que ela matara o homem até chegarem ao bar que Annik falara, a Menina pensara e repensara se deveria ou não acreditar nas palavras. E cada vez que não acreditava, seu sentimento de dó para com a assassina aumentava. Realmente, ela ficou com pena daquilo. Ela estava alterada e não tinha controle sobre si própria. Era lamentável. Porém, quando pensava se deveria confiar, ficava ressentida. Ela matou a porra de um homem! Era o suficiente para falar “não, obrigada, prefiro morrer de outro jeito, haha!”. A risada claramente para quebrar o gelo enquanto Annik pensava “por que diabos ela riu?”. E enquanto ela ponderava, a Menina começava a correr pelo deserto. Simples assim.

Todavia, algo mais forte lhe disse que deveria confiar nela. Muito mais forte que simplesmente as palavras dela, ou o jeito que ela falava, ou o olhar dela, ou tudo que ela fazia. Nem mesmo a Menina conseguia explicar aquilo. Talvez houvesse uma palavra naquela língua esquisita — kra'vstan, é kra'vstan que se chama! Não se esqueça! — que explicasse aquilo. Mas a Menina nem mesmo sabia explicar aquela sensação para si mesmo, como a verbalizaria para Annik?

— Você bem sabe que está assustando os fregueses, senhora Annik! — dizia o balconista, limpando um copo com um pano de higiene duvidosa.

— Por favor — a voz sussurrante de Annik soou… fofa. Meu Deus, ela conseguia soar daquele jeito! A Menina nem mesmo conseguia imaginar que ela poderia fazer aquilo. Ela era fria, mas até que era boa em convencimento. — Preciso, precisamos — corrigiu-se — do carro.

— Precisamos, eh? Quem mais está com você, Annik? — a voz dele soou como o ácido mais corrosivo do mundo quando ele pronunciou o nome dela.

— Veja por si próprio. — E então Annik afastou-se um pouco para que o bartender pudesse ver a Menina, sentada num banco, tomando refrigerante de casco. A Menina obviamente percebeu, já que seus olhos eram ávidos por informação, mas fingiu que não viu.

Os olhos do senhor balconista se arregalaram e brilharam.

— ¡…Ahkrevaz…! — ele tentou conter sua voz ao máximo para falar baixo, mas digamos que não deu muito certo… A Menina ouviu, como sempre. Ou talvez fosse ela a com audição apurada. — Annik…! É isso mesmo que estou lendo, ou melhor, que não estou lendo?!

Annik assentiu, séria, sem um traço de sentimento no rosto. Mesmo a Menina, que já se via como uma boa leitora de sentimentos, não conseguia visualizar de primeira o que a assassina sentia. Annik era complicada de se ler. Não bastava ler as linhas; tinha que ler as entrelinhas, depois juntar partes do que leu em um capítulo inicial com o final da história, para finalmente chegar à conclusão e ao entendimento do livro. Normalmente, esse tipo de livro é para aqueles leitores vorazes, como era a Menina, e, mesmo penosos, eram recompensadores.

— Kra'vstanlas — sussurrou Annik… ou falou, quase não havia diferença entre um sussurro e um mero falar para ela.

— Eles disseram por tanto tempo que era um mito…! Que-que não iria existir…!

— Estavam certos. Veja quantos tempos demoraram. Nós fomos os tolos, nós demos ouvidos e olhos a essa lenda… — Sussurrou. – Perdemos muito tempo procurando algo que nem sabíamos se realmente existia ou não. Tínhamos tudo, mas por causa de uma história, de uma palavra…! — Annik cerrou os punhos e as pálpebras. Era como se estivesse quase vendo, quase agarrando, e então relaxou, abrindo as mãos e os olhos. Perdeu aquilo que via ao longe, por isso os olhos semiabertos, perdeu aquilo que as mãos fechadas quase agarravam. — Deixamos tudo escapar. Eu tenho culpa de muitas coisas, senhor Bert, mas não de nossa primeira falha. Eu os avisei no início, que estavam colocando muita fé em algo que poderia ser mentira, mas eles insistiram e nós tivemos nossa primeira consequência.

Era possível ler um traço bem tênue de frustração no rosto de Annik. Uma frustração aceita. Um destino desgraçado que foi seguido sem o mínimo de cuidado. Um simplesmente “é a vida, aceite e siga em frente” que o seu rosto demonstrava. Muita coisa inacabada deixada para trás, e por isso a frustração, ou coisas que quase, quase foram de um jeito, mas, que por infortúnio, por falta de cuidado, por erro, foram de outro e acabaram estragando tudo.

— Desculpe-me por isso, senhor Bert — ela chacoalhou a cabeça levemente, tentando expulsar aquelas memórias que retornavam cada dia com mais força.

— Tudo bem, tudo bem, garota… — a voz do balconista, o senhor Bert, era quase como a de um avô que consola o neto. A Menina perguntava-se há quanto tempo Annik conhecia aquele cara. — Enfim, você me provou que realmente precisa do carro. Está na garagem, pode ir lá pegar, só tome cuidado com ele.

— Obrigada — ela sorriu, e pela primeira vez desde que ela havia acordado. Era estranho vê-la sorrindo. Primeiro porque combinava muito mais com ela do que aquela carranca que ela exibia, toda séria, ou aquela cara triste que era a mais comum. E segundo porque ela simplesmente não fazia aquilo! Mesmo a Menina, naquela desgraça de vida que estava levando, andando pelo deserto com uma assassina, se permitira sorrir algumas vezes, mas ela, não. Ela não ficava tão esquisita sorrindo. Ficava mais bonita, até. A Menina tomou mais um gole de refrigerante enquanto a observava.

Annik saiu do balcão e sentou-se no banco acolchoado à frente da Menina.

— E então, está pronta para partir?

A Menina deu mais um gole no refrigerante.

— Por mim tudo bem.

Largou a garrafa sobre a mesa enferrujada e levantou-se ao mesmo tempo em que Annik, e ambas saíram da taverna pós-apocalíptica.


O deserto estava frio. Muito frio. Era noite, ventava muito, mas não um vento sonoro, que passava soprando, mas um vento calado, que vinha do nada e congelava. Annik percebeu que a Menina estava arrepiada.

— Vamos depressa, está mais quente no carro.

Ela a conduziu até uma garagem ao lado do bar. Entraram por uma porta enferrujada, assim como a estalagem. Dentro da garagem, havia um carro velho, azul claro, mas com a pintura tão fraca em alguns pontos que se podia dizer que estava branco.

— Se isso tiver um aquecedor, vai ser uma maravilha — comentou a Menina. Annik não a respondeu, apenas pegou as chaves do carro num balcão ao lado, onde também estavam várias ferramentas sujas de graxa, e abriu a porta do motorista, ao lado esquerdo.

A placa do carro era azul com escritos em amarelo, e estava escrito algo numas letras que a Menina não fazia a menor ideia do que significavam ou em que língua estavam. Provavelmente o kra'vstan, supunha. Estava escrito algo como Łgac – O O V. Não sabia o que a primeira palavra, nome, kra'vstan, o que quer que fosse aquilo, significava. A outra marcação era ainda mais estranha que a primeira e a menina não tinha ideia se aquilo consistia em palavras ou outro símbolo.

Entrou no carro, nos bancos de trás, antes que Annik a enfiasse a força dentro do porta-malas, e deparou-se com o clima agradável — finalmente calor! — dentro do carro.

— Parece que realmente há um aquecedor — Annik finalmente a respondeu, dando partida no motor.

As portas da garagem, que estavam fechadas, se abriram e Annik acelerou. Da janela, a Menina pôde ver uma rodovia gigantesca se estendendo pelas areias do deserto. Era impossível saber onde aquela estrada terminaria, já que ela cruzava a linha do horizonte.

E então, no meio da noite, saíram de dentro da garagem e começaram a viagem pela Rodovia, que era tão sem fim quanto o próprio Saar.


“If you listen very carefully, I can show you how to get there

It only takes a minute, or two, or three, but I’ll show you how to get there…”¹

— GUM (Jay Watson); Delorean Highway.


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Notas finais do capítulo

¹Na frase final: "Se você ouvir muito cuidadosamente, eu posso te mostrar como chegar lá / Só leva um minuto, ou dois, ou três, mas eu vou te mostrar como chegar lá".



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