Pan-demonio escrita por GreeneMoon


Capítulo 4
Capítulo 4


Notas iniciais do capítulo

Esse demorou, hein?! Porém, está aqui, como eu tinha prometido!

Desculpem pela demora, a vida corrida e as novas ideias não me deixam em paz um segundo se quer. Alguém me ajuda a parar de ter inspiração pra novas fics o tempo todo? Acho que estou doente! Hahaha

Esse capítulo é super importante para o enredo da história, então, aproveitem :D



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Wendy Darling

"Eu tive que passar pelo inferno
Para provar que eu não sou louca
E tive que conhecer o diabo
Apenas para saber o nome dele
E foi aí que o meu amor estava queimando
Sim, ainda está queimando"
[Ghost - Ella Henderson]

Três dias. Sua mente voltou à contagem em que permanecia presa desde o ataque ao acampamento. Três dias, sete horas e trinta e quatro minutos, segundo seus cálculos. Três dias de tormento. Sete horas na companhia do pão duro e da água velha. Trinta e quatro minutos de angústia. Uma angústia sem fim.

Seus olhos passearam novamente pela pequena fresta entre as pedras que compunham sua cela. Ela tinha cavado aquele buraco – que era ainda menor do que agora – até que ele lhe proporcionasse uma visão decente do céu negro que pairava sobre eles. Estava desenterrando todas as suas lembranças sobre observar as nuvens e fazer delas seu relógio natural para ignorar os gritos que clamavam por socorro. Eles nunca paravam – o que deixava a doutora Darling completamente desesperada.

Não estava acostumada com aquilo, e não tinha a mínima vontade de aprender com o tempo. A vontade de ajudar qualquer pessoa que precisasse dela estava entranhada em seu sistema nervoso. Não havia nada que ela pudesse fazer. Era uma médica formada e com muita experiência no ramo, não podia ficar parada quando sabia as condições nas quais outras pessoas estavam vivendo. Os pensamentos altruístas rondavam sua cabeça sem trégua, o que atrapalhava a capacidade de raciocínio da mulher.

Ela poderia facilmente surtar a qualquer hora.

Fechou os olhos, tentando se concentrar nos minutos que se passavam em seu cronômetro interno, porém, tudo que conseguia visualizar eram as criaturas horrendas que atacaram o acampamento de refugiados. Ela não podia descrever o quanto seu coração estava aliviado por terem conseguido evacuar todo o local antes que as gárgulas chegassem. Não gostava nem de imaginar todas aquelas pessoas nas mesmas condições que ela e o resto dos prisioneiros. Não desejava aquela situação para ninguém, nem para o seu pior inimigo.

Respirou profundamente, tentando afastar as lágrimas que insistiam em serem suas companheiras ultimamente. Ela não queria chorar. Não queria ser fraca. Mas, era quase impossível diante de tudo. Todos os acontecimentos fizeram com que Wendy se sentisse tão vazia quanto um pedaço de madeira oco. Seu coração doía enquanto sua mente processava todos os seus erros, fazendo questão de esfrega-los em sua cara.

Era possível que uma pessoa pudesse causar tanto estrago? Sim, era. Ela era a prova viva de que o amor poderia destruir qualquer alma, sendo ela forte ou não. Tinha vivido a experiência na pele e causado a mesma em outra pessoa. Não lhe restavam mais dúvidas de que aquele sentimento tinha poder o suficiente para mudar tudo a sua volta.

Era uma pena que Wendy tinha aprendido aquilo tão tarde.

Muita coisa poderia ter sido evitada se a omissão não tivesse sido a escolha da mulher no passado. Se ela não tivesse permitido que o medo tomasse conta de sua cabeça, talvez ela não precisasse estar ali. E nem todas aquelas pessoas. A culpa é toda sua, seu senso de autocritica gritou em sua direção. Você não foi esperta o suficiente naquela época e olhe onde estamos!

— Estamos no buraco... – murmurou, completando a frase que ecoava em sua cabeça. A voz então voltou a agredi-la com a verdade: Sim, estamos, e adivinhe só, Wendy? Não temos escapatória!

Sua mente estava furiosa com suas atitudes. Ela estava furiosa com suas atitudes. Como poderia ter pensado que seu abandono não causaria efeito algum? Como pode minimizar tanto o amor dele por ela? Tinha sido tão egoísta... Tão negligente. E agora ela não sabia como sair daquela situação, como encará-la sem perder as forças nas pernas. Era uma covarde de marca maior, e aquilo era tão vergonhoso quanto a suas escolhas.

Seu suspiro desgostoso ecoou pelo seu espaço, retumbando por toda a cela abafada. O suor tornava sua pele grudenta, colando suas roupas por todo o seu corpo, incomodando-a como os insetos que perambulavam, vez ou outra, em alguma parte sua. Estava com sede, mas se negava a tomar da água que lhe deixavam. Estava com fome, mas o pão era tão duro que ela não conseguia morder. Estava com sono, mas tinha medo de dormir e encontrá-lo em seus pesadelos. Não tinha ideia do que fazer para continuar seguindo os dias sem enlouquecer. Tudo a sua volta parecia tão envenenado quanto seu organismo, o que lhe causava dor física e psicológica. Não aguentava mais estar naquelas condições, porém não sentia vontade nenhuma de reclamar. Sabia que merecia aquilo, era seu castigo por ter parte naquele presente sombrio e, provavelmente, um futuro do mesmo modo.

Não sabia o que fazer. Precisava se alimentar para manter suas forças, mas não conseguia parar de pensar e se martirizar por tudo que acontecia a sua volta. Sentia saudades de casa, do colo de sua mãe, dos conselhos do seu pai e dos olhares de compreensão de seus irmãos. Desejava de todo o coração que, pelo menos eles estivessem ali naquele momento para segurar sua mão e dizer que aquela era apenas mais uma aventura que iam viver juntos, que Peter voltaria para ela, lhe perdoaria por seus pecados e se tornaria o seu garoto doce novamente. Que ele não a odiava. Que ele entendia os seus motivos. Que ele voltou por ela, mas ela não estava lá.

Ela não estava lá... Por que ela não estava lá? Por que ela não voltou para conferir? Por que escolheu a saída mais fácil e lhe virou as costas? Seus motivos pareciam tão irreais agora. Wendy nem ao menos sabia a resposta para todos os seus por quês. Sua mente estava tão falha, tão abatida e tão confusa que, por todos esses dias, tinha esquecido tudo que havia enfrentado e superado e dado vazão aos sentimentos de culpa e aceitação.

Ela só não sabia o que estava aceitando. A sua parcela de culpa em toda a história? O fato de que um erro seu causou toda a destruição? Ou que aquela era a sua sentença e ela teria que cumpri-la de um jeito ou de outro? Não sabia.

Ela não sabia de mais nada.

Sentiu seu corpo trabalhar para fugir da loucura que teimava em pegá-la desprevenida. Ela não identificava o veneno que continha naquela cela, mas tinha certeza que havia algo. Talvez fosse o solo envenenado, como Tigrinha já havia lhe dito. Talvez fosse sua mente lhe pregando peças depois de todo o sofrimento. Tudo que a doutora Darling sabia era que nada nela estava normal, tudo dentro dela parecia intenso, pesado e sombrio. Ela quase podia sentir suas células começarem a se moldar a forma do seu cativeiro. Podia sentir seu corpo se tornar parte dele, mesclando-se nas pedras cheias de limo, deixando sua carne gelada e morta.

Olhou para suas mãos, o nervosismo estava assolando seu sistema nervoso ao ponto de deixar suas juntas trêmulas. Tentou respirar fundo, mas o ar parecia conter uma dose pesada de alguma coisa que inundava seu cérebro, deixando-o ainda mais insano. Olhe ao seu redor, Wendy, estamos nos desfazendo. A mesma voz, de alguns momentos atrás, voltou a falar em sua cabeça. Por algum motivo que Wendy não compreendia – ou estava muito perdido dentro da confusão que era seu interior – ela sentia que não podia confiar em nada que soasse naquele timbre. No entanto, ainda assim, ela sentia-se compelida a acatar todas as ordens que eram despejadas em sua cabeça, sem nem mesmo pestanejar. Era por aquele motivo que a doutora Darling olhava fixamente para suas pernas enquanto as mesmas eram sugadas pelo solo fétido.

O grito de pavor rasgou sua garganta a fora quando tentou se mexer, mas seu corpo não obedecia. Estava suando frio, o ar lhe faltava cada vez mais, e seu cérebro parecia estar se desfazendo em uma massa mole dentro de seu crânio. Olhe para você, pequena Wendy, está enlouquecendo. Aquela não era mais a voz de sua consciência. Procurou no meio de toda a bagunça, evitando assimilar realmente o que lhe envolvia quando se deparou com a figura em pé em frente às grades de sua cela e percebeu que ela não lhe era desconhecida. Os cabelos loiros caindo em ondas por seus ombros, os olhos azuis como o oceano em seus melhores dias e a pose autoritária, digna da rainha da Inglaterra, eram as únicas partes boas que Wendy tinha catalogado naquela fada.

Sininho era o tipo de criatura que ela esperava evitar durante toda a sua estadia na Terra do Nunca e, mais especificamente, nas masmorras de Peter Pan. Mas, o que sua mãe sempre lhe disse em toda a sua vida pós-mundo-mágico e infância arruinada, foi que não se pode fugir por muito tempo dos seus demônios. Eles sempre dão um jeito de te encontrar.

— Ora, ora, ora... O que temos aqui? – se tinha uma coisa que conseguia embrulhar o estomago resistente da doutora Darling, essa coisa era a voz de Sininho. – A pequena Wendy não está nos seus melhores dias.

O sorriso debochado estampado naquele rosto era o suficiente para completar todo o embrulho não digesto que a mulher estava recebendo durante aqueles três dias. E saber que Sininho tinha razão era o estopim para que a velha Wendy Darling gritasse em fúria.

— Ora, ora, ora... Parece que a fadinha encontrou alguma coisa para chamar atenção do homem que ela sempre quis. – não podia negar, não conseguia frear. Aquela era a verdadeira Wendy. Nunca dispensava uma boa briga, independente das condições nas quais se encontrava. – Desculpe, errei na somatória. São duas coisas.

Sua voz estava rouca, como se tivesse passado todo aquele tempo comendo areia em suas refeições, mas, ainda assim, podia ver o efeito de suas palavras na fada, quando deixou seus olhos recaírem sobre as duas longas pernas e os dois bonitos pés pregados ao chão. Nada de asas, nem pó de pirilim-pin-pin. Quase uma mulher de verdade.

— Vamos ver se essa sua pose vai permanecer intacta quando Peter acabar com você. – ouviu as trancas rugirem em vida e passos pesados em sua direção. Era chegada a hora então. Seu último pedido era apenas uma visão melhor do que todo aquele conjunto embaçado.

A figura grande apareceu em seu campo limitado de visão, agarrando seus braços com força desnecessária. Sentiu suas pernas desgrudarem-se do solo e agradeceu, ao menos, por aquilo. Não conseguiria sair daquela jaula mental nem se quisesse. Seus pés estavam falhos quando a criatura a colocou para andar em direção a saída, porém, independente de sua forma física estar derrotada o suficiente para dar um pingo de gosto para a fada maldita, sua mente trabalhava muito bem. Bem até demais.

— Peter, hein? – tentou fazer sua voz soar clara e seu sarcasmo também. – Então, finalmente, ficaram íntimos? Estou orgulhosa, Sininho!

Não obteve resposta, mas seu braço claramente sentiu o desgosto que havia provocado. O que lhe fez sorrir tão insanamente que por um momento pensou que estivesse literalmente louca.

Porém, quando analisou melhor a situação, ela só teve certeza de que a loucura não era a culpada de nada, mas, ela mesma. Aquela era só a antiga Wendy dando as cartas e começando o jogo.

Peter Pan

Estava começando a entrar em um estado sério de agonia antecipada. Desde o momento em que pôs os pés naquela sala e sentou em seu conhecido trono, tendo os lugares ao seu lado preenchidos por seus filhos, que sentia que seu coração dava sinal de vida cada vez mais. Ele estava batendo tão rápido que Peter podia senti-lo pronto para quebrar suas costelas.

Tentou respirar fundo, colocar alguma sanidade a sua disposição, mas nada parecia funcionar para acalmar seu sistema nervoso. Ele odiava sentir-se daquele jeito, porém, era inevitável quando o assunto era ela. E por mais que mentisse para si mesmo dizendo que não se importaria com a figura que se apresentasse a sua frente e nem mediria esforços para destruí-la, ele sabia, no fundo de sua alma, que não seria capaz. Não ele. Não o Peter Pan. Talvez sua figura obscura, mas não sua cara limpa. Não sua verdadeira face. E a prova disso era não ter ido buscar suas duas prisioneiras de ouro pessoalmente. Deixou a tarefa para Sininho, como um covarde teria feito. Ele era um covarde.

Você pode fazer isso, Pan. Não seja um moleque. Era ele de novo. Estava tão presente em sua cabeça ultimamente que sentia que podia enlouquecer apenas escutando aqueles conselhos sombrios. Não podia reclamar já que aquilo era apenas sua parte racional tomando conta, mas era impossível pensar por si próprio quando sua mente estava sendo invadida com tanto fervor. E com tanta frequência.

— Pai, eu ainda acho que o senhor não deveria tomar uma atitude precipitada agora. – Deleve, novamente, tentando levantar a bandeira branca por Tigrinha. Peter estava cansado do mesmo discurso de seu filho. – Pense nos seus longos anos de amizade com Lily, ela era importante para você.

— Justamente. Ela era, no passado. – curto e grosso. Não estava com paciência para aturar a ladainha de ninguém naquele momento. Deleve pareceu entender o recado, pois voltou para a sua posição inicial, calando-se por completo.

Cantou vitória por alguns segundos até que percebeu que sem seu filho atormentando suas ideias, ele teria mais espaço para pensar nela. Lutou contra a vontade de fechar os olhos, de demonstrar fraqueza perante todos que vieram ver o julgamento. Não podia deixar sua fraqueza transparecer para aquelas criaturas. Todos esperavam apenas um deslize dele para terem o beneficio da dúvida e começarem a burlar suas regras, e ele não permitiria isso. Nem ela seria capaz de desorganizar seu reino daquela maneira.

— Majestade. – a voz da loira era conhecida por seus ouvidos, mas ele não a olhou diretamente nos olhos. Sabia que aquilo deixava Sininho tão possessa quanto uma sereia rejeitada, mas tinha experiência demais com tudo aquilo para se importar. – Com sua permissão, estaremos entrando com a primeira prisioneira.

Podia sentir no timbre dela o quanto a fada estava gostando daquilo, e se ela estava tendo todo aquele prazer era porque, finalmente, estava tendo sua vingança contra sua inimiga mortal. A certeza de que a prisioneira dois a espera de seu julgamento era Wendy, avançou duas casas.

Fez um sinal que significava que a permissão estava concedida, e logo em seguida uma Lily Tiger apareceu em seu campo de visão. Voltou seus olhos para a figura da morena descuidada, despenteada e completamente desnutrida, e sentiu uma pontada em seu peito. Ela tinha tido um valor importante em sua vida, e ninguém naquele salão lamentava tanto quanto ele por estarem naquelas posições tão opostas.

— Lily Tiger, você é acusada de traição contra a coroa, pronunciamento de nomes banidos e matar exatos dez soldados do rei. – o elfo responsável pela burocracia de seu reino começou a citar todos os crimes de Lily, dando ênfase no pronunciamento de nomes banidos, provocando burburinho por todas as classes de criaturas mágicas presentes. – Por todos os seus crimes e o seu depoimento deixando oficialmente claro que não pretende mudar seus hábitos e nem se redimir com a coroa, esse reino te sentencia a morte.

Esse reino te sentencia a morte. Por que aquela frase não soava tão bem aos ouvidos de Peter? Por mais que soubesse que ele mesmo tinha dado àquela sentença a índia, por que não se sentia leve e reconfortado por mais um rebelde eliminado de suas terras?

Talvez porque aquela rebelde era diferente de todas as outras. Ela tinha sido seu porto seguro em toda a sua infância, sua amiga e fiel escudeira, pronta para entrar em qualquer batalha ao seu lado, fosse ela com espadas de ferro puro ou madeiras ocas. Ela tinha sido uma parte importante e longa de sua vida. Mesmo com todas as suas mudanças e todo o seu afastamento de toda e qualquer luz, ele ainda sentia bem no fundo de sua alma que carregaria a morte de Lily em sua memória para sempre. E aquilo iria doer como o inferno queimando suas entranhas.

— Pronunciamento de nomes banidos, huh? – a voz rouca, porém marcante de sua velha amiga ressoou por todo o local. Os burburinhos pararam quase que imediatamente. – Então quer dizer que eu não posso me relembrar de velhas amigas? Que pena! Então imagino que minha alma devesse ser sentenciada a morte também já que eu cometi um pecado ainda pior do que pronunciar seu nome.

Foi o suficiente. Ela tinha conseguido chamar a sua atenção como queria. Peter voltou seus olhos furiosos para a figura de joelhos no meio do salão de mármore branco. A compaixão e nostalgia deixaram seu organismo instantaneamente, dando lugar apenas para a raiva pura e crua. Agora, olhando para suas roupas rasgadas e sujas, seus cabelos suados e sebosos, sua boca seca e rachada, e sua expressão pálida e fraca, Peter só conseguia sentir prazer. Um prazer tão cruel que ao mesmo tempo em que lhe causava felicidade, também lhe dilacerava por dentro.

Ela não merece o seu perdão. Era ele, de novo, porém, o acesso que havia aberto em sua mente era propício o suficiente para o seu outro eu saber que tinha chances de vencer aquela batalha. Mande jogar seu corpo consciente no rio para que ela sinta a fera devorar sua carne, e não permita que as sereias devorem sua alma. Deixe que ela perambule por aí sentindo a dor de cada nativo que você jogar no rio pelos próximos anos. Deixe-a sentir a dor que é não por fazer nada. O sorriso que se fez em seus lábios explicava tudo para Tigrinha mesmo sem ela perguntar. Seu rosto outrora tão confiante, agora era um mar de desesperança.

Peter estava pronto para abrir a boca e mandar cortar a maldita cabeça de Lily Tiger, quando seu filho o interrompeu novamente:

— Pai, por favor, não. – o tom era de um desespero que há muito Peter não escutava vir de seu filho mais velho. – Não faça isso comigo, por favor.

A última frase captou a atenção do rei tão rápido quanto às últimas palavras da índia. Virou-se para encarar as feições distorcidas em agonia do seu menino. Ele estava sofrendo.

— E por que eu não deveria? – a pergunta foi seca, mas seu interior amolecia. Toda a fúria que sentiu segundos atrás estava diluindo-se em um poço de preocupação.

— Porque eu a amo. – foi à resposta que obteve e que não lhe agradou. Deleve sempre fora reservado com suas coisas, com seus relacionamentos e seus possíveis casos, e talvez fosse por aquilo que Peter nunca houvesse percebido que ele nutria um sentimento tão forte por Lily. Era verdade que todos haviam crescido ali, e que apesar de estarem em posições diferentes, em cargos diferentes, tinham a mesma idade, mas, imaginar seu filho e sua velha amiga era difícil.

— E o que eu deveria fazer Deleve? Perdoar? – não era aquela resposta que ele preferia dar ao seu filho, mas era a única que estaria disponível. Manteve seus olhos fixos nos dele enquanto esperava uma resposta.

— Sim. – respondeu rápido e sem nenhum pingo de medo. Ele estava realmente disposto a se meter naquela batalha. – Porque se não perdoar, pai, eu sugiro que me condene à morte também.

O choque transpassou por todo o seu corpo, mas não se fez presente em sua expressão. Estava paralisado demais para poder terminar o trajeto do seu espanto até que ele ficasse visível. Nunca ouviu Deleve tão decidido a alguma coisa quanto naquele momento. Podia sentir sua certeza sobre aquela decisão tão forte que poderia se tornar palpável. Aquilo realmente era amor.

— Você não o faria. – tentou uma ultima vez.

— Experimente então. – o desafio era claro em sua voz, e Peter odiou tanto aquilo quanto odiava a existência de Lily Tiger naquele momento. Respirou profundamente, procurando forças e discernimento para contornar toda aquela situação sem se afundar em um mar de questionamentos. Nunca havia voltado em uma decisão que já havia tomado – por mais que quisesse.

Se for ceder ao seu filho, então a castigue de outra forma. O tom diabólico estava lá novamente. Peter aguçou os ouvidos e prestou atenção na próxima ideia que lhe renderia um bote salva-vidas perante a situação que Deleve tinha criado. Acho que temos algo conosco que a nossa Lily gostaria muito de ver novamente. Ah, ele tinha. E aquele era o trunfo perfeito para a noite perfeita.

— Hoje é o seu dia de sorte, princesa. – sua voz se fez presente no salão, transformando o recém-começado burburinho novamente em poeira. O sorriso malicioso que voltou a moldar os seus lábios era tão sincero quanto sua maldade. – Parece que alguém intercedeu por você, e como eu sou um homem fascinado por acordos, eu estou lhe concedendo o direito de ficar com sua vida em troca de outra.

Quando terminou, apenas virou-se para os guardas que se prostravam atrás de seu trono e lhe deu as ordens para trazer o prisioneiro número um para o salão. As gárgulas sumiram de vista, encaminhando-se para as masmorras subterrâneas para onde ele mandava os seus hóspedes importantes. Quando criou aquele conjunto de celas e as destinou para um grupo seleto de prisioneiros, ele já antecipava o quanto precisaria de um deles em algum momento.

— O que está fazendo, pai? – Deleve sussurrou em sua direção. Peter não se deu o trabalho de voltar os olhos para a sua figura novamente. Não podia fraquejar de novo.

— Você deveria saber que eu não sou um homem inclinado ao perdão, filho. – sua resposta seria o suficiente para Deleve entender o que estaria por vir. Ele tinha lhe pedido para poupar a vida de Lily, mas não se faz acordos com o diabo sem pagar o preço.

Os passos ecoaram muito antes de Peter ouvir a voz da gárgula pedindo permissão para adentrar o salão com o prisioneiro número um. Ele então acenou com a cabeça permitindo toda e qualquer coisa que fosse capaz de ferir profundamente a alma de Lily Tiger no salão e esperou pela reação da pequena princesa indígena. Fixou seus olhos de águia na mulher ajoelhada a sua frente, observando todos os movimentos dela, até mesmo o modo como estava respirando. Ela sabia o que estava vindo a seguir, ele podia sentir. E era aquilo que tornava todo o jogo mais divertido.

As respirações ofegantes, o olhar inabalado da princesa e um filho mais velho tendo um colapso nervoso ao seu lado. Tinha noite mais divertida do que aquela?

Deixou seu sorriso crescer ainda mais quando o elfo começou a citar todos os crimes cometidos pelo prisioneiro número um – e mais novo favorito de Peter Pan:

— Boss Tiger, você é acusado por ser o fundador do primeiro grupo de rebeldes, assassinar a sangue frio mais de dez guardas do rei, ajudar fugitivos da lei e por mau comportamento na prisão. – a medida que as palavras soavam pelas cordas vocais do elfo, mais Peter sentia-se afundar na escuridão que o dominava sempre que queria fugir de alguma coisa. – Por esses e outros crimes, este reino te sentencia a morte.

O grito de Lily ecoou por todo o salão quando a figura de seu pai, magro e desidratado, apareceu em seu campo de visão. Peter pode assistir de camarote o sofrimento e a dor refletida nos olhos de sua velha amiga traiçoeira. Sorriu. Porém foi automático. Sentia uma alegria esplendorosa dentro de si, mas não se considerava dono dela. Apesar de estar se vingando, uma parte dele implorava para parar enquanto ainda tinha tempo. Mas, ele não ia parar. Ele nunca parava. Ele era Peter Pan, e não se arrependia de nada que já tinha feito em toda a sua vida.

O resto de toda a situação foi como um borrão rápido e silencioso, apesar dos gritos da pequena Lily. Ela implorava e pedia perdão por todos os seus pecados, mas Peter não estava interessado naquilo. Ele nem era mais o Peter naquela hora.

Seus olhos eram de um negro tão profundo e insano que ninguém ousou a respirar alto demais para que ele não pudesse ouvir. Todos conheciam a inconstância de sua dupla personalidade.

— Por favor... Peter! – a princesa permanecia gritando seu nome, implorando pela sua misericórdia. – Não faça isso! Por favor! Mate-me, mas não toque nele! Peter! Por favor, não faça isso comigo!

A mulher debatia-se sobre as correntes que a algemavam e sobre os braços das gárgulas que a seguravam. As lagrimas lavavam seu rosto, enquanto seus olhos permaneciam fixos na preparação da execução de seu pai. O caro senhor Boss Tiger estava ajoelhado em frente a grande mesa de mármore branco, com sua cabeça deitada na superfície gelada. Os olhos perscrutadores do senhor olhavam firmes em direção do menino-perdido de olhos negros que sentava em um trono tão negro quanto sua alma. Ele não tinha raiva, nem desespero. Não implorava por sua vida e nem se humilhava pedindo perdão por suas atitudes. Peter achava louvável a atitude do senhor, mas não esperava diferente. A família Tiger tinha sangue nobre, apesar de tudo.

Quando o elfo deu permissão para a gárgula levantar o grande machado de lâmina afiada e finalmente acertar o ponto certo entre o pescoço e o corpo de Boss Tiger, o senhor despregou os olhos da figura de Peter e olhou sua filha por uma última vez. Ele sorriu, aquele sorriso doce que ele sempre reservava para as crianças ao redor da lareira que iam a sua aldeia para escutar suas histórias sobre o menino-que-sabia-voar, e só então ele fechou os olhos. Também pela última vez.

— Não! – o grito de Tigrinha ecoou pelo silencio da noite, enquanto seus olhos se fechavam para a visão da cabeça de seu amado pai rolando pelo salão impecável. Peter desejou fazer o mesmo, mas não podia. Não era covarde. Tinha que arcar com suas consequências.

Ao invés disso, ele simplesmente voltou-se pra seu filho mais velho, absorvendo sua feição decepcionada e lhe sussurrou:

— Por que você não vai consolar a sua garota? – o veneno escorria de sua alma tingindo mortalmente suas palavras. – Conhecendo Lily como eu conheço, eu aposto que ela lhe agradecerá muito por ter poupado a vida dela.

Deleve não respondeu, e Peter não esperava que o fizesse. Apenas levantou-se e encaminhou-se para a princesa desesperada, ajoelhando a sua frente. Desviou sua atenção deles e voltou-se para seus outros filhos. Nenhum demonstrava emoções, e Peter também não esperava que o fizessem.

— O segundo julgamento é de... – o elfo travou sua frase no meio. O curso dos acontecimentos não havia parado apenas porque um ícone da Terra do Nunca havia sido executado, e isso incomodava um canto da alma de Peter Pan. – Wendy Darling.

Todo o seu corpo travou. As exclamações de horror foram ouvidas por todos os cantos, até mesmo suas gárgulas sentiram o poder que aquele nome carregava. Sentiu seus olhos tremerem enquanto ouvia os passos aproximarem-se e a voz de Sininho ressoar novamente anunciando quem deveria receber seu destino naquele momento. Pelo prazer indescritível que continha em sua doce voz de fada, ele sabia que era ela. Ela estava ali. Ao alcance de suas mãos. Pronta para ser julgada por ele. Pronta para morrer.

No entanto, saber que estava com ela em baixo de seus pés não adiantou em nada. Ele ainda se sentia acuado. Ele ainda precisava se esconder atrás de suas trevas. Ele ainda sentia seu coração rugir ferozmente, lutando por um espaço em tudo aquilo. Ela ainda conseguir ser tudo que ele temia.

— Wendy Darling, – a voz do elfo tremeu ao pronunciar o nome da mulher e Peter podia jurar que seu criado tinha todo o seu corpo balançando em um tremor incontrolável. Ele se sentia da mesma forma. – você é acusada por...

Porém, o elfo não pode terminar seu discurso, pois foi interrompido por uma longa risada conhecida. Ela estava rindo em seu próprio julgamento, e aquilo era típico de sua personalidade incurável. Peter não esperava nada a menos de Wendy. Aquilo quase lhe deu certo prazer.

— Sou acusada pelo que? – a voz dela, o timbre dela, atingiram em cheio o âmago de Peter. Suas mãos começaram a tremer, enquanto sua alma se dilacerava em busca de um centímetro que fosse daquela mulher. Podia sentir todo o seu ser querendo um pedaço dela, querendo um pouco dela, lutando e brigando para mover seu corpo até que estivesse com ela em seus braços e não a deixasse ir embora nunca mais. Peter nunca havia esquecido Wendy, e só agora ele teve tanta certeza disso que não podia questionar. Nem mesmo seu lado negro encontrava forças dentro de si para isso. – Por existir?

— Os prisioneiros tem o direito apenas de se manterem calados. – o elfo fora curto e grosso pensando que aquela atitude chamaria atenção de seu rei para ele, mas o que não se imagina é que Peter Pan não sentia nenhum apreço por quem tratava Wendy Darling como um prisioneiro qualquer.

Mas, ele não demonstraria aquilo. Demonstraria?

— Condene. – as palavras saíram de sua boca sem ele nem ao menos perceber. Por um momento, questionou-se se foi ele mesmo quem havia dado a ordem, porém, não voltou atrás. E nem olhou na direção de Wendy. Não podia fazer aquilo, não seria capaz.

As cadeiras ao seu lado rangeram quando foram atiradas com brusquidão contra algo duro, provavelmente suas paredes. Seu olhar foi capturado pela direção de onde veio todo rebuliço e pode ter a visão clara de seus filhos, todos eles, furiosos. Observou enquanto, rápidos e silenciosos, eles desceram a escadaria que os levavam a parte baixa do salão e envolveram a figura ajoelhada em um circulo. Rebelião. A palavra que veio em sua cabeça foi alta e clara, mas ele não estava nem aí pro que ela significava. Tudo que seus olhos miravam era a mulher que o encarava de volta.

Seus olhos azuis como pedaços do céu, seus cabelos loiros – um pouco mais loiros do que o normal – moldavam-se em cachos que ele conhecia bem e se encantava tanto, sua boca avermelhada, sua pele alva e sua coragem latente. Mesmo a um centímetro da morte, ela não perdia a segurança que tinha em si mesma, e Peter sempre invejou aquilo nela. Fora ela que sempre o encorajou para ter mais fé na pessoa que ele era, e isso tinha o alavancado para níveis tão mais altos que ele pensou que viver em um mundo onde Wendy não existisse para lhe dar conselhos, seria impossível. E fora, na verdade.

— Então é isso? – ela tornou a falar, e uma parte de Peter agradeceu por aquilo. A voz dela era reconfortante, mesmo que decepcionada. – Você se tornou esse ditador amaldiçoado que tem prazer em ver a dor dos outros? – seus olhos azuis mergulhavam em suas orbitas negras à procura de algo que ele sabia que não existia mais dentro dele. – O que aconteceu com você?

Ele não respondeu. E também não poderia. Estava paralisado pela presença dela. Até mesmo suas palavras pareciam ter travado em sua garganta. Sentiu sua respiração acelerar quando ela debateu-se sobre as correntes, enquanto seus filhos afastavam suas gárgulas com olhares tão assassino quanto o dele próprio. Observou enquanto ela se erguia e caminhava em sua direção. As pernas pareciam estar bambas, mas aquilo não a impedia. E ele também não achava que poderia.

— Se vai me condenar à morte, ao menos, faça você mesmo. – suas palavras eram como facas afiadas cravando-se direto no lado esquerdo do peito de Peter. – Pare de ser covarde e se esconder atrás desses seus belos olhos negros e dos seus bichinhos de estimação, e faça você mesmo! – as correntes foram puxadas quando chegaram ao seu limite e Wendy parou no meio exato das escadarias. Lily Tiger ainda permanecia nos braços de Deleve, observando toda a cena como se estivesse saboreando um bolo de chocolate. Ele amaldiçoou a existência daquela princesa indígena com tanto fervor que poderia vê-la explodir só com a força de seu pensamento. Era tudo culpa dela. – Ao menos seja homem e mate a sua mulher com suas próprias mãos ao invés de deixar todo o trabalho sujo para os seus subordinados!

Fúria. Raiva. Ódio. Rancor. Decepção, e uma vontade assassina tomaram conta do ser de Peter, movendo-o de encontro a Wendy. Ela não moveu nem um membro enquanto ele se deslocava como um raio, pronto para estrangulá-la com suas próprias mãos. Toda aquela coragem o irritava com tanta força que ele não sentiria remorso quando a visse sugar sua última respiração.

— Não, pai! – um dos seus gêmeos, Hector, gritou. Peter pode sentir todos os seus filhos erguendo-se contra ele e construindo um muro impenetrável ao redor dela, como fizeram na primeira vez em que a viram. A memória da casa de madeira, enfeitada por flores tomou conta de sua cabeça, lhe lembrando-o quanto ela era importante para cada um deles.

— Se fizer isso com ela, terá que passar por cima de todos nós primeiro. – Henzo, seu outro filho foi quem falou.

— Vocês estão todos contra mim? – Peter perguntou, observando as feições de cada um de seus filhos. As trevas que o dominavam, a cada segundo, perdiam a batalha contra o velho menino-que-sabia-voar. Inseguro e completamente apaixonado por seus filhos. E por ela.

— Não estamos contra você. – foi à vez de Deleve falar. Ele caminhava para a reunião familiar na escadaria do trono, seu rosto distorcido em decepção e determinação. – Mas, ela é a Wendy. Ela é a nossa mãe. E ela está de volta para nós agora, depois de tudo e todos esses anos, ela está aqui. Então, lide com isso, pai, porque você não vai descontar todo o seu rancor nela desse jeito. – o filho mais velho de Peter parou em frente ao seu pai e o olhou com firmeza quando terminou: - Se pensa que mata-la vai resolver os anos de mágoa que você tem guardado dentro de si, está muito enganado.

E aquilo foi o suficiente para destruir todas as barreiras de Peter Pan e libertar sua natureza insegura. Ele pode sentir seu corpo bambear para trás, fugindo dos olhares de seus filhos e do olhar dela. Tudo que ele sempre temeu estava acontecendo bem ali a sua frente e aquilo parecia um pesadelo sem fim. Ela estava de volta para sua vida, pra sua história e, novamente, entrou fazendo uma bagunça irreparável.

Ele não podia lidar com aquilo agora. Não tinha forças o suficiente.

Então, como nunca havia feito durante toda aquela sua nova vida, durante todo o seu reinado, Peter Pan virou as costas para as únicas pessoas que tinham acesso ao seu coração e para todo o publico que observava sua rendição, e caminhou apressadamente para a saída.

Podia ouvir seu outro eu gritando em fúria pela derrota, mas não podia deixar que as ordens de matar Wendy Darling saíssem por sua boca pelo simples fato de que a dor e o remorso que iria sentir durante toda a sua existência miserável depois de presenciar a execução de sua mulher seria insuportável.

E também porque ele ainda a amava.

A amava tanto que a odiava.


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Notas finais do capítulo

Antes que alguém fale que o Peter está se entregando fácil demais, eu gostaria de deixar claro que ele nem começou ainda com suas maldades hahahaha A Wendy vai sofrer um pouco e, convenhamos, do jeito que ela é durona, o Peter também vai sofrer!

Quem achou o filhos a coisa mais linda do mundo levanta a mão? E quem achou a Sininho uma vaca levanta a outra? E quem achou o Peter um fdp por ter matado o pai da Lily levanta as duas? Hahahahaha

Espero que tenham gostado desse capitulo!

Um beijo e até a próxima.