Pan-demonio escrita por GreeneMoon


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo fresquinho. Espero que gostem :D



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– Wendy Darling –

"Estou voltando para casa
Diga ao mundo que estou voltando para casa
Deixe a chuva lavar toda a dor de ontem
Eu sei que o meu reino espera e eles perdoaram meus erros
Estou voltando para casa"
[Diddy-Dirty Money - Coming Home]

A escuridão era tudo que Wendy Darling podia ver. O cheiro de mofo e humidade invadiam suas narinas, não deixando espaço para o oxigênio. Ela sentia que estava sufocando aos poucos, enquanto o terror de estar sozinha em um lugar completamente desconhecido apertava suas entranhas. Precisava sair dali, mas como faria aquilo se não enxergava um palmo a sua frente? Não havia janelas, nem portas... Todo o local era adornado por uma escuridão sem fim.

Estava perdida, com frio, com sede e, principalmente, com medo. Um medo tão cru que, por um momento, Wendy pensou ter sido transportada para o seu subconsciente – aquele compartimento dentro de sua mente onde ela tinha jogado todas as suas porcarias durante anos e trancado a sete chaves. E como se sua mente estivesse lhe pregando peças, um frio conhecido correu por sua espinha quando a mulher ouviu os primeiros sussurros ecoarem pelo local:

“Wendy...”, a doutora sentiu seu coração pular ao reconhecer o timbre de Peter. Ele parecia tão ameaçador e tão cru que levou um tempo para que ela associasse à voz a figura.

“Peter não é mais o mesmo, “Ele não só cresceu, mas, se tornou algo que está fora da sua compreensão”, outras vozes surgiram ao seu redor, sussurrando frases desconexas sobre o seu menino-perdido. Wendy procurava incessantemente de onde todas aquelas vozes estavam vindo, mas tudo que seus olhos captavam era o nada. Sua respiração acelerou na mesma medida em que seu coração bombeava forte em suas costelas. Ela podia sentir o medo se agarrando aos seus ossos, gritando em seus ouvidos para que ela corresse o mais rápido que pudesse. Sua consciência estampava avisos em vermelho de que ela não gostaria do que estava prestes a ver.

“Nada é como você se lembra, Wendy, tudo acabou”, A Terra do Nunca não é mais um lugar para crianças”, a última frase retumbou por seus tímpanos enquanto a cena a sua frente desenrolava como um filme. Um rio de sangue banhava a beira dos seus pés, enquanto a mulher observava a enchente acontecer. Estava alheia a toda e qualquer situação, seu corpo estava presente, mas sua mente não tinha controle sobre nenhum membro mesmo que tentasse. Ela queria correr... Correr o mais rápido que podia, mas suas pernas estavam sendo agarradas por duas pequenas mãos. “Me salve, Wendy...”, a criança sussurrou em agonia. Seu pequeno corpo foi puxado para dentro da água vermelha, seus gritos sendo sufocados, mas a doutora podia ouvi-los com clareza mesmo depois de o corpo ter afundado.

Lágrimas encheram seus olhos enquanto Wendy tentava escapar de alguma forma daquela cena horrenda. Ela queria fazer alguma coisa, queria pular na água e salvar aquele pequeno garotinho, mas seu corpo permanecia travado. Deixou seus olhos permanecerem na busca incessante por alguém, mas... Tudo que viu foram cabeças flutuando por toda a extensão do rio.

O grito que saiu de sua garganta foi suplicante e cheio de dor. Ela reconhecia aquele rio agora. Peter costumava traze-la ali para ver as sereias e observar as demais criaturas mágicas da Terra do Nunca. A bile subiu por seu estômago, porém não havia nada para colocar para fora além das lágrimas que nunca paravam de rolar. “Por quê? Peter! Por quê?”, ela se ouviu gritando. O desespero alojou-se em seu coração quando a certeza de que o culpado de tudo aquilo era o seu menino-perdido, tomou conta de sua cabeça. “Peter!”.

Então, como se ele pudesse ouvi-la, toda a cena foi sugada novamente para dentro da escuridão, como se alguém tivesse apagado a luz. “Precisamos de você”, a frase soou em um sussurro chamando a atenção de Wendy. A doutora procurou a fonte, mas não conseguia enxergar. “Precisamos de você”, sua respiração travou no meio do caminho quando sentiu algo movimentar-se atrás do seu corpo. “Precisamos de você”, a voz despejou em seu ouvido, o hálito fresco acariciando sua pele exposta. “Precisamos de você”, as três palavras saíram altas e claras em um grito estrondoso. Todo o corpo de Wendy Darling tremeu convulsivamente, enquanto seus pés trabalhavam em uma corrida pela escuridão, levando-a cada vez mais para dentro de sua mente. Ela tinha certeza que aquilo não era real, mas não fazia a mínima ideia de como acordar. Mesmo que gritasse por socorro ninguém a ouviria. Estava completamente sozinha, a mercê dos seus demônios e não tinha nenhuma arma para lutar contra eles. Nunca tivera.

O barulho de algo se acendendo em sua cabeça fez com que seus pés cravassem em um chão que Wendy não conseguia enxergar. Seus olhos automaticamente procuraram a origem do som e o que encontrou foi o suficiente para ela desistir de tentar fugir. Ela nunca se livraria do maior de seus arrependimentos.

Peter estava parado bem a sua frente, com a cabeça baixa, batendo um dos pés no chão no mesmo tique nervoso que sempre tivera. O seu famoso chapéu verde estava esmagado em sua mão direita, enquanto a esquerda segurava uma grossa corrente de ferro. Wendy ergueu os olhos lentamente, seguindo o caminho que aquelas amarras lhe apontavam, mesmo que sua mente explodisse fogos de artificio para chamar sua atenção para o aviso que piscava em neon “Não olhe!”. O gemido agoniado foi à primeira coisa que a doutora captou, sendo absorvida logo então pela imagem de Tigrinha, com seus braços e pernas presos pela mesma corrente que Peter carregava na mão. Ela queria – e tentou – perguntar o que estava acontecendo ali, mas sua voz parecia ter sido sugada para um compartimento secreto no qual não tinha acesso. “Precisamos de você”, a princesa falou, com seus olhos fixos na loira a sua frente. “Todos nós precisamos...”, as luzes atrás de Tigrinha se acenderam lhe dando uma bela visão de todos que ela conhecia da Terra do Nunca. Todos os seus amigos, e seus pequenos filhos. “Você é a nossa única salvação”.

»✤«

Seus olhos se abriram com velocidade, enquanto Wendy respirava fundo diversas vezes seguidas. Seus pulmões estavam ardendo pela falta de ar puro e sua cabeça doía como nunca, mas nada anulava o efeito assombroso que aquele pesadelo teve sobre ela. A doutora podia sentir todos os seus nervos latejando, o desespero esmagando seus ossos e a compreensão de que seus demônios eram mais fortes do que ela imaginara, apavorando cada célula do seu corpo.

Sentiu sede. Uma sede fora do comum, como se tivesse corrido uma maratona inteira até o fim. Lembrou-se do sonho e constatou que a sede era apenas uma forma do seu subconsciente lhe dizer que ele estava ali e sabia muito bem o que ela escondia dentro de si. Respirou fundo, tentando conter a tremedeira, mas era impossível ter controle sobre os seus medos quando eles estavam fora de sua jaula. Fechou os olhos para afastar a nuvem de sono que ainda embaçava sua visão, mas não suportava estar imersa na escuridão novamente. Estava sem saída.

A mulher passou as mãos pelos cabelos descoloridos, penteando as mechas rebeldes para trás e deixando seus dedos descansarem por entre os fios. Estava confusa pelo sonho e pelas sensações tão intensas que ele havia lhe provocado. Ela sentia que seu coração estava sendo apertado por alguma força gravitacional que a rondava desde os primeiros minutos que abriu os olhos. Havia alguma coisa de errado por ali, ela só não sabia o que era.

Colocou sua cabeça para trabalhar da melhor forma que conseguia para organizar todos os pensamentos soltos que se embaralhavam uns nos outros. Estava sentindo o seu corpo completamente carregado pela ressaca que não se lembrava de ter procurado na noite anterior...

A noite anterior. Como uma explosão, todas as imagens voltaram para a sua cabeça, uma a uma, desabrochando suas cenas como rosas na primavera. A lembrança de Tigrinha em sua casa, seu discurso sobre o quanto precisavam dela e, finalmente, quando um pó foi soprado em seu rosto, fazendo-a desmaiar. Sentiu seu coração apaziguado voltar a martelar forte dentro de seu peito, enquanto erguia sua cabeça em uma rapidez invejável. Estava de volta a Terra do Nunca. Deus, ela estava de volta. O amontoado de edredons retalhados no qual estava sentada confirmava aquilo.

Sentiu sua garganta começar a fechar, enquanto as lágrimas enchiam seus olhos. Tigrinha não tinha o direito de ter feito aquilo com Wendy. Ela não sabia pelo que a doutora tinha passado para esquecer tudo que aquele lugar representava em sua vida. Tinha lutado muito, por dias e noites, para esquecer todas as suas esperanças, sonhos e histórias. Não era justo que, em alguns poucos minutos, todo o seu trabalho tenha sido jogado no lixo. Tentou botar em prática seus exercícios para manter a calma, mas tudo que sentia era uma fúria crua e devastadora. A doutora podia sentir a antiga Wendy Darling socar suas paredes em busca de um pouco de liberdade de expressão. A mulher presa dentro de si tinha raiva para distribuir com quem quisesse um pouco, e aquele sentimento não era reservado para Tigrinha, mesmo que seu cérebro canalizasse para o meio mais fácil. Aquela raiva tinha um destinatário definido e bem escrito em letras cursivas: Senhorita Darling.

Sentiu mais ódio, mais fúria e mais raiva ao constatar que teria que passar por todo o tratamento de choque mais uma vez por culpa de uma pessoa que pensou ter ficado em seu passado. Odiaria a si mesma mais uma vez, se sentiria fraca mais uma vez, perderia a noção de felicidade mais uma vez... Tudo estaria duplicado em sua memória. Aquilo era inaceitável.

Levantou como um raio, observando cada canto da pequena cabana que a abrigava. O cheiro de couro de animal invadiu suas narinas pela primeira vez desde o momento em que acordou, lembrando-a das vezes em que aprendera a confeccionar uma daquelas para si mesma no passado. Sentiu sua raiva crescer mais um décimo pela memória fugaz. Ela não queria lembrar daquilo. Caminhou a passos duros, chutando tudo que via pela frente, até chegar à pequena abertura na armação que a separava do que estava lá fora. Passou pela porta improvisada, pouco se importando com que ou quem encontraria. Estava com tanto sangue no olho que sua visão estava embaçada por um vermelho vivo.

Ela queria encontrar Tigrinha e lhe dar uma boa surra, como nos velhos tempos.

– Tigrinha! – seu grito foi exageradamente alto. Queria chamar atenção e estava conseguindo. Os indígenas que caminhavam tranquilamente pararam para olhar para a doutora ensandecida. – Tigrinha!

– Vejo que você acordou. – a voz da princesa estava em suas costas. Wendy virou com rapidez para fitar o rosto moreno da mulher.

– Me diga que isso é um sonho e eu vou acordar a qualquer momento. – exigiu com a mandíbula travada. Estava a um passo de ranger os dentes para a morena, tamanha era a raiva que estava sentindo.

Tigrinha não respondeu de imediato, apenas ficou observando o rosto vermelho de Wendy. Fazia tempo que a princesa não sentia tanto medo como agora. Ela conhecia sua velha amiga e sabia a força que habitava seu interior. A doutora Darling nunca foi uma garota para se brincar, e agora, depois de ter se tornado uma mulher feita, estava ainda mais perigosa.

– Não é um sonho. – a princesa respondeu calmamente, recebendo em resposta um grito furioso da mulher a sua frente.

– Você não tinha o direito! – a loira atirou para a morena sem pestanejar. Não estava com a mínima vontade de controlar suas palavras abusivas naquele momento. – Quem você pensa que é para me tirar da minha casa e da minha realidade dessa maneira? – a mulher cuspia veneno para todos os cantos, sem se importar com a acidez que transbordava por sua saliva.

– Essa era a única forma de você vir. Eu fiz o que era necessário. – a princesa parecia tão calma quanto o céu de verão. Aquilo irritava Wendy em níveis estratosféricos. Como Tigrinha poderia estar tão tranquila, quando ela parecia estar tendo uma série de ataques cardíacos? – Você precisava ver com seus próprios olhos, Wendy. Você não entenderia se eu apenas explicasse.

E então, quando Tigrinha citou seu nome alto o suficiente para que as pessoas em um raio de dez metros a ouvissem, que Wendy percebeu que algo estava definitivamente errado por ali. Todos os olhos voltaram-se para princesa em choque, como se a mesma tivesse acabado de invocar algum fantasma. Os queixos caídos, as exclamações de horror e as mães protegendo seus filhos atrás do corpo, completaram o cenário confuso.

– Você compreende agora? – Tigrinha permanecia com seus olhos fixos na loira à sua frente, tentando ajuda-la com o quebra-cabeça que acabara de descobrir que existia. – Tudo mudou por aqui, Wendy, principalmente as suas histórias. Para todas essas pessoas você é uma lenda, um mau presságio. – os olhos fixos da princesa permaneciam fitando os de Wendy, enquanto ela começava a explicar uma parte de um todo. – Pronunciar seu nome é um crime contra a coroa. Contra o Peter. Ele mandaria decapitar qualquer pessoa que ousasse citá-la de alguma forma.

O chão pareceu desaparecer deixando o corpo da doutora sem equilíbrio. Seu coração estava diminuindo dentro do seu peito, e aquilo lhe provocava uma dor excruciante. Nada podia ter lhe preparado para aquelas palavras. Ela nunca pensara que o seu abandono tinha tido consequências tão grandes na Terra do Nunca, e muito menos em Peter. Quando Tigrinha lhe disse que este lugar não era mais o mesmo, a doutora não tinha levado ao pé da letra, mas, agora, diante daquela verdade amarga, ela entendia o que a princesa estava tentando lhe dizer. Wendy Darling tinha destruído a alma de Peter Pan quando o deixou.

O rosto dos nativos assustados com a sua presença era o suficiente para que a loira se sentisse envergonhada. Tudo que ela havia construído naquele lugar em sua infância fora jogado no lixo por sua estupidez e omissão. Todas as pessoas que conhecia ali teriam medo de estar perto dela, porque o simples ato de pronunciar seu nome era um crime grave contra o rei daquelas terras. Porque ela era um mau presságio. Uma lenda viva que, a maioria dos habitantes dali, preferia que estivesse morta.

Tudo que ela representou para a Terra do Nunca tinha se tornado pó.

Deixou que seus olhos se fechassem por um momento, sentindo toda a dor acumulada por anos inteiros. A agonia concentrada em seu interior estava triplicando seu tamanho, como uma ameba que cresce ao mesclar-se com outras da mesma espécie. Ela podia sentir cada fibra do seu ser gritar mil e um protestos em sua cabeça por estar deixando que sua barreira fosse rompida daquela forma. O que ela poderia fazer então? Tudo em que podia pensar era voltar para dentro da cabana, enrolar-se no edredom retalhado e chorar até não restar nem uma gota de água em seu corpo. Estava perdida e sozinha, em um lugar que fora seu refugio há muito tempo atrás, mas que agora era a prisão, não só do seu corpo, mas também da sua alma.

– Eu entendo pelo que está passando agora. – a mão quente em seu ombro foi à primeira coisa que a mulher sentiu antes de escutar a voz da princesa. – Eu sei o quanto é difícil e sei quais são os estágios, já passei por eles quando tudo começou.

Wendy queria abrir os olhos, mas sua força de vontade estava na estaca zero. Mesmo que seu cérebro enviasse uma pergunta atrás da outra para Tigrinha, ela não conseguia encontrar sua voz. Estava mortificada e altamente destruída. Precisava do seu piloto automático naquele momento, mas nem mesmo ele queria ajuda-la. Estava sozinha para lidar com tudo aquilo. Não havia escapatórias.

Era um castigo da sua consciência, e Wendy podia sentir perfeitamente aquilo se desenrolar dentro de si, da maneira mais cruel.

Quando a morena percebeu que a loira não daria inicio a nenhuma pergunta, como era de se esperar, voltou a se concentrar em tentar fazê-la entender que a maior das suas preocupações não deveria ser a proibição de mencionar seu famoso nome, mas sim o que estava acontecendo com o seu antigo lar:

– Não posso imaginar a dor que é saber que o homem que ama não suporta ouvir seu nome. – a morena começou calmamente, tentando não assustar ainda mais sua velha amiga. – Mas, tenho plena consciência da dor que é ver um amigo ter a sua alma destruída e, por isso, destruir tudo a sua volta. – Tigrinha podia sentir os calafrios subirem por suas pernas e balançarem todo o seu corpo. Seu coração valente estava tão machucado quanto o de Wendy. Ela tinha acompanhado sua amiga desde o momento em que ela decidira deixar a Terra do Nunca, e sabia todos os reais motivos do abandono da loira. Fora por isso que ela nunca desistiu de estar ao lado da doutora, que escolheu exercer a profissão que tinha por saber o que é passar por situações difíceis. – O meu povo está morrendo, Wendy. Todos os dias, vejo as pessoas a minha volta, amigos com quem cresci, anciões que me ensinaram tudo que eu sei, serem levados até Peter por algum crime que os Northis dizem que cometeram. Vejo famílias rezando por suas almas, porque não tem esperanças de que um dia retornem para casa. Vejo crianças crescendo sem pais ou mães, vejo adolescentes perderem seus primeiros amores, seus irmãos, seus amigos. Vejo guerras sendo travadas e vejo meu povo, todos os dias, no meio da zona de fogo, sobrevivendo dia após dia com medo. – Tigrinha apertou levemente o ombro de Wendy para que ela seguisse para a pequena floresta que havia mais à frente.

A mulher entendeu o recado, colocando seus pés para trabalharem em direção da mata, passando por algumas árvores que escondiam o acampamento. Wendy deixou que sua mente processasse todas as palavras da morena, absorvendo todas as imagens que seu consciente criava. Todas aquelas informações batiam tão bem com seu sonho que, por um momento, a doutora sentiu-se sendo transportada novamente para aquele universo sombrio e perverso.

– Quando eu te trouxe para cá não tinha a intenção de fazê-la pagar por nenhuma parcela de culpa que tenha em toda essa história. – a princesa continuou seu discurso, enquanto seus pés seguiam a trilha, conduzindo Wendy. – Tudo que eu quero de você é que nos ajude, e antes que você diga que não pode fazer nada, eu quero informar que também já ouvi isso dos anciões. – os olhos de Tigrinha voltaram-se para os de Wendy que parecia tão atordoada quanto um passarinho que acaba de nascer. Desacelerou os passos, parando a poucos centímetros do que realmente chocaria sua amiga, adiando um pouco a próxima coisa que cortaria o coração da doutora. – Eu ouvi todo o tipo de conselho sobre a ideia, aparentemente absurda, de lhe trazer de volta para a Terra do Nunca, Wendy, mas, não dei ouvidos a nenhuma, porque eu sei o que eu sinto no meu interior. Eu tenho fé em você e tenho fé em Peter. Por mais que o meu velho amigo tenha se perdido dentro de toda a escuridão que carrega em sua nova face, eu tenho fé. Eu sei que o que o faz ser o que é hoje e sei o que poderá curá-lo. – a índia suspirou profundamente antes de completar: – Você é a cura para todo o caos, Wendy, mas, para se convencer disso, você precisa ver com seus próprios olhos.

Então, com um aceno de cabeça, Tigrinha indicou o caminho que Wendy Darling deveria continuar seguindo. Sem pensar duas vezes, seu coração tomou o controle de sua mente e seguiu suas batidas, uma a uma, sempre em frente, até se deparar com a pior visão que já teve em toda a sua vida.

Sentiu as lágrimas brotarem em seus olhos, tornando-se um dilúvio por suas bochechas em questão de milésimos. Suas pernas trêmulas fraquejaram e seu corpo foi ao chão, sendo puxado pela gravidade. A doutora sentia sua cabeça girar, e girar e girar com tudo que via.

Estava tudo morto. As árvores, antes tão verdes, agora eram de um negro fétido. Os rios estavam poluídos pelas trevas, gritando a distância o quanto eram venenosos. O pasto estava seco e sem vida. Não havia criaturas mágicas, nem fadas voando pelo céu, nem mesmo as fênix que sempre eram tão curiosas. O sol parecia ter sido engolido pela tempestade que rodopiava em uma espécie de furacão incansável acima de sua cabeça. O vento era tão gelado que petrificava seus ossos e maltratava sua carne. Tudo estava engolido por uma melancolia infinita, uma tristeza sem esperança e uma escuridão implacável.

Mas, o que fez o coração de Wendy falhar miseravelmente, foi o grande castelo erguido no epicentro de tudo. Não estava longe, o que dava a doutora uma visão completa dos muros altos feitos de pedras, e das grandes bandeiras verdes respingadas com um vermelho vivo. Ela não queria pensar no que aquela mistura de cores significava. Seu estômago estava embrulhado o suficiente para provoca-lo com mais algumas informações adicionais. Havia várias janelas na construção, seguidas por grandes torres ovais que compunham todo o ornamento. Era um castelo assombroso. Algo que ela nunca poderia imaginar sendo o lar do seu Peter.

– Está tudo... – não conseguia terminar a frase sem soluçar. O choro estava irrompendo por sua garganta, explodindo em seus olhos. A dor em sua alma estava sendo refletida em todos os seus membros, anulando toda e qualquer chance de por o seu corpo em movimento. Queria fugir. Mas, não poderia. Queria gritar. Mas, não conseguia. Queria fazer alguma coisa. Mas, não sabia por onde começar.

– Sim. Está tudo morto. – Tigrinha foi quem completou a frase. Ela parecia tão calma quanto antes, mas, a tristeza em seu timbre era quase palpável. – Você compreende agora?

Aquela pergunta novamente. Sim, Wendy podia compreender agora. Ela sabia do que Tigrinha estava falando. Não havia mais mistérios, e nem pontos para conectar. Tudo estava ali bem a sua frente. Aquele era o resultado de sua negligência.

– Sim, eu compreendo. – a loira respondeu, empurrando a frase por sua garganta. – Eu não posso... Eu... Sinto tanto.

– Sei que sente, Wendy. – a morena sentou-se ao seu lado também fitando o horizonte morto. – Eu também sinto mais do que posso colocar em palavras.

– Eu nunca poderia imaginar que tudo estivesse tão... Difícil. – começou, tentando explicar todos os anos em que pensara que a Terra do Nunca estava sã e salva. – Nunca me passou pela cabeça que Peter teria se tornado este tipo de pessoa. Eu sempre acreditei que ele estava voando por aí, sendo o eterno menino que sempre quis ser, correndo pelas matas, brincando com fadas, desafiando o Gancho, e ouvindo as histórias de sua avó quando anoitecesse. – as lágrimas rolavam incessantemente pelo rosto da mulher, enquanto ela visualizava uma realidade completamente diferente daquela. – Eu sempre acreditei que todos estavam bem, que você estava bem, que Peter estava bem, que os meus meninos estavam bem. Era isso que me fazia levantar todos os dias da cama. E então agora... Eu não tenho mais motivos para isso.

O silêncio pairou sobre as duas mulheres. Ambas estavam pensando em todas as realidades que poderiam ter se concretizado se as decisões erradas não tivessem sido tomadas. Wendy fechou os olhos, tentando fugir da visão a sua frente, mas não conseguira mantê-los assim por muito tempo. Sua própria mente estava obrigando-a a encarar toda a destruição.

– Você pode pensar assim agora, Wendy, mas eu espero que não continue com essa linha de raciocínio. – depois de um tempo, Tigrinha falou. – Eu sei que parece estar tudo perdido, mas, eu não acredito nisso. Minha avó costumava me dizer que quando se tem fé e esperança, nada é impossível. Eu tenho fé e tenho esperança, então nada pode ser impossível para mim. – um pequeno sorriso solitário repuxou o canto dos lábios da princesa quando ela encarou a imagem aflita da doutora Darling. – Lembra quando costumávamos brincar de salvar esse mundo? O quanto a nossa coragem era infinita e nossas costas eram largas? Eu sentia que podia enfrentar quantos leões aparecessem a minha frente quando você estava comigo. – deixou que sua mão envolvesse a mão gelada de Wendy e a apertou firme. – Eu te trouxe para cá não só porque eu sei que você tem o poder de salvar o Peter, mas porque eu sei que você tem o poder de salvar a todos nós. Você é a mulher mais corajosa que já conheci em toda a minha vida, Wendy. Sei disso porque conheço você e todos os seus motivos para ter abandonado essas terras. Sei o que você passou, sei o que você sofreu, e sei o quanto você precisou de coragem para enfrentar tudo sozinha. – o choro convulsivo explodiu mais uma vez no peito da loira, enquanto os soluços abriam caminho para fora. – Nada é forte o suficiente para parar a Bucaneira Dill quando ela quer alguma coisa. Espero que essa lenda não tenha morrido dentro de você.

Aquelas foram as últimas palavras de Tigrinha naquele momento. A morena ergueu-se em suas pernas e acariciou as mechas descoloridas de Wendy lhe dando conforto, para logo depois refazer seu caminho de volta para o acampamento. Tudo que restou a doutora fora ficar ali, observando a paisagem morta e pensando na fé, coragem e esperança que a princesa tinha dentro de si.

Deixou-se chorar por mais longas horas, revivendo momentos bons e ruins, trabalhando sua autoterapia interior. Só depois que tinha esgotado toda a sua cota de lágrimas e jogado toda a sua auto piedade morro abaixo, que ela voltou para a tribo. No entanto, quando entrou em sua cabana e deitou em seu edredom, o sono não a adormeceu para lhe dar descanso. O que a mulher sentiu foi a sua velha companheira sair de sua cela, espreguiçar todos os seus músculos e estalar os dedos.

A Bucaneira Dill, mãe dos meninos-perdidos, agregada da tribo Pixucum¹, companheira de Peter Pan e contadora de histórias nas horas vagas, tinha um trabalho a fazer.

Um sorriso brotou nos lábios rosados da loira quando sua consciência gritou:

Wendy Darling foi absolvida de todos os seus pecados. Ela está livre.

»✤«

『¹ Pixucum é o nome que dei a tribo de Tigrinha. No entanto, é um nome fictício. Não está na história original.』


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Notas finais do capítulo

E chegamos ao fim. Deixem nos comentários o que acharam desse capítulo, eu gosto muito de saber o que vocês pensam da história e do desenvolvimento da mesma.

Obrigada pelos reviews do capítulo passado. Fiquei tão feliz