Raízes da Ditadura escrita por Ana Dapper


Capítulo 1
Raízes da Ditadura - Oneshot


Notas iniciais do capítulo

Hey, a fic irá conter coisas que não são reais, portanto não precisam vir me falar sobre história do Brasil e que tem coisas que não aconteceram, pois é uma história apenas BASEADA em fatos reais. Dito isso, aproveitem a leitura ♥



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“Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Somos todos soldados, armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não”

Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, Geraldo Vandré.

Quando tudo começou, eu tinha cinco anos. Nasci em 1959, no Brasil. No ano do meu quinto aniversário, os militares aplicaram um golpe de estado, e assim minha vida mudou para sempre. Meu pai era o melhor amigo de infância de um militar chamado Artur da Costa e Silva. Meu pai sempre soube de tudo.

O golpe aconteceu no dia primeiro de abril de 1964, que por coincidência é o dia da mentira, mas infelizmente o ocorrido foi totalmente real e assustador: o início da ditadura militar no Brasil, que teve duração de quinze anos. Os piores quinze anos de minha vida.

Ninguém deveria saber do golpe, pois era um segredo da milícia e a pena da revelação seria severa. Mas, meu pai sabia. Seu melhor amigo atendia apenas por Costa e Silva. Eles se conheceram há muitos anos atrás, na cidade de Taquari, onde ambos nasceram. Mas, aquela era uma época inocente e eles eram apenas crianças; o problema real veio quando apesar dos anos, apesar da distância e apesar de tudo o que aconteceu em suas vidas, eles continuaram amigos até o fim. Obviamente, era uma amizade secreta, pois se alguém soubesse que Artur contava segredos do estado para meu pai, pedia o auxilio dele, bebia com ele e até mesmo chorava com ele, Costa e Silva nunca teria chegado onde chegou.

Mas, esse homem não fora o primeiro presidente que assolou nossos corações, que nos dominou pelo medo e que nos fez questionar o Estado sobre seu métodos e sobre o motivo de diversas outras coisas.

Durante toda a minha vida busquei respostas, formei-me como jornalista e me tornei uma bela mulher, devo admitir. Felizmente, para minhas ambições, beleza e inteligência sempre foram as chaves do sucesso.

Em 1964, a ditadura se iniciou com o suposto objetivo de impedir que o comunismo se instalasse no país, além de buscar fazê-lo evoluir. O primeiro presidente da ditadura se chamava Humberto de Alencar Castelo Branco, mas como é comum aos militares, era conhecido somente como Marechal Castelo Branco. Depois dele, assumiu o amigo de meu pai, Costa e Silva, antecessor de Médici, Geisel e Figueiredo.

Muitos dizem que Costa e Silva foi um dos mais temidos e radicais presidentes da ditadura. E, de certa forma, acho que ele foi o principal motivo de meu ódio pelo Estado, naquele período de governo que não parecia terminar de forma alguma.

Meu pai sempre soube do golpe militar, mas não havia contado para mim ou minha mãe. Ficamos sem saber de nada determinada noite...

Meu pai e o Marechal Costa e Silva bebiam na varanda. O militar revelava suas preocupações com o golpe, e minha mãe acabou por ouvir. Ela não sabia o que deveria fazer, então manteve segredo por muito tempo. Mas, um dia, quando o amigo de meu pai estava na presidência, ela revelou o segredo para uma amiga. No dia seguinte, minha mãe havia desaparecido e o governante do país havia mudado. Eu nunca soube o que aconteceu com ela.

Nunca, durante muito tempo, mas muitos anos depois, tive uma revelação. Meu nome é Mariana Linhares, sou gaúcha de Porto Alegre e essa história é sobre minhas descobertas. Peço encarecidamente para quem quer que esteja lendo, não publique isto. Pelo menos, não enquanto ele viver.

Desde meus cinco anos, o governo não foi dos melhores. Pessoas desapareciam, os problemas não pareciam se resolver e o povo era cada vez mais reprimido. Eu sempre achei que os militares pensavam que essa era realmente a melhor forma de comandar um país, mas estavam errados. Lutei durante os quinze anos da ditadura em segredo, e só no último ano, quando eu tinha meus 20 anos e estudava jornalismo, tudo se esclareceu.

Eu sempre busquei saber mais sobre como tudo isso poderia acontecer e ninguém buscar mudar, o que acabou por acontecer apenas anos depois do início da ditadura. Eu criei laços, adquiri contatos e me esforcei ao máximo. No final, aos meus 20 anos, eu era a amante do presidente. Ele me contava a história por trás da ditadura e eu lhe dava prazer. Parece horrível, eu sei. Mas, eu precisava saber. E eu soube.

Esses registros possuem um resumo de tudo o que ele me contou, mas ninguém pode saber que ele revelou tantas coisas enquanto ele viver. Por esse motivo, este documento ficará sob custódia de uma velha amiga minha, que não o abrirá até que o presidente morra, e depois ela poderá fazer o que quiser com o que possui em mãos. Essas informações são muito valiosas.

A ditadura não é o que você pensava.

***

Mas sei, que uma dor
Assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança...

Dança na corda bamba
De sombrinha
E em cada passo
Dessa linha
Pode se machucar...

Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show
De todo artista
Tem que continuar...

O Bêbado e a Equilibrista, Elis Regina.

O primeiro presidente da ditadura se chamava Humberto de Alencar Castelo Branco. Ele sempre me pareceu interessante por sua coragem em ser o primeiro presidente de uma nova forma de governo, sem nem ter referências ou alguém a quem pudesse imitar. Castelo Branco também me parecia alguém com quem eu gostaria de conversar, já que era parente de um de meus autores favoritos, José de Alencar.

Porém, com o passar do tempo, eu já não sabia se gostava tanto dele. Quando o golpe militar fora aplicado e ele assumira a presidência, muita coisa mudou. É claro que não pretendo falar somente do que ele fez durante a ditadura, há muito mais na história destes homens, além disso.

Humberto era Cearense, mas iniciou sua carreira como militar no estado gaúcho em 1918, o mesmo ano em que Costa e Silva iniciou sua própria, no Rio de Janeiro. Em sua carreira, Castelo Branco passou por diversos lugares, exercendo diferentes papeis no exército brasileiro. Quando entrou para a presidência, era conhecido como Marechal Castelo Branco, um homem que merecia respeito.

E, realmente merece. Para o povo, ele apenas iniciou o que seriam quinze anos de sofrimento, mas nenhum deles sabe como o país seria caso o golpe não fosse aplicado.

Com o início da segunda guerra mundial, em 1939, uma sociedade secreta encontrou a distração perfeita para que seus membros pudessem finalmente assumir o controle do país. Mas, como sempre, há alguém que discorda da opinião de seus companheiros, e este foi procurar o poder militar, pois já sabia que, para impedir que aquilo acontecesse, apenas a força bruta e o medo serviriam como arma. Foram cinco anos articulando uma maneira menos intensa de tomar o poder do país. Grande parte dos militares teve medo e não quis assumir a presidência, mas Castelo Branco era diferente. Ele sabia que se fosse necessário, daria a própria vida pelo país que tanto amava. Ele não se importou em enganar, mentir, trair e comandar atrocidades, desde que o povo não ficasse nas mãos de alguém muito pior.

A sociedade era comandada por um descendente de imigrantes chamado Miguel Bortolotto. Seus objetivos eram dominar o país e implantar uma mistura de sociedade comunista e monárquica. Ele pretendia ser um rei de um país em que a nobreza seria formada por todos que o ajudaram a chegar lá, e o resto do povo viveria uma sociedade comunista, julgada totalmente por Miguel. Ele queria ter poderes de um Deus, decidir quem perde e quem ganha, quem vive e quem morre. Castelo Branco não poderia permitir isso. Ele amava seu país.

Para mascarar o motivo de seu domínio sob uma nação inteira, os militares criaram Atos Institucionais e buscaram melhorar o país de uma maneira dura e equivocada enquanto, em segredo, caçavam os membros da sociedade de Miguel. Essa sociedade se chamava Argerich, em homenagem à única pessoa que Miguel já amou. Seu nome era Sarah, e ela fora morta durante uma operação militar. Foi então que tudo começou.

Infelizmente, o ato heroico dos militares, em especial Castelo Branco, acabou por formar coisas que eles não poderiam parar tão facilmente. Coisas como a sede pelo poder, a crueldade e a escuridão no coração de cada homem que se tornasse presidente durante a ditadura. Eles criaram a tristeza, a solidão e a desgraça de grande parte do povo brasileiro e o pior de tudo é que nenhuma pessoa sequer em meio a esse povo sabia do que estavam sendo salvos. Nenhum deles sabia, e talvez nenhum venha a saber.

Humberto de Alencar Castelo Branco foi um dos maiores heróis que essa nação já possuiu, mas sua estória sempre fora oculta pela poeira e pela escuridão. Assim como a de todos que participaram daquele golpe. A milícia nunca mais fora vista da mesma forma e manter a vivacidade da nação nunca fora tão semelhante a andar em uma corda bamba, quase sem esperança de poder de manter de pé.

***

Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera

Primavera Nos Dentes, Secos e Molhados

Em 1967, o mandato de Castelo Branco se encerrou e o melhor amigo de meu pai entrou para a presidência. Eu era uma criança de apenas oito anos, mas desde aquele dia eu soube que as coisas ficariam ruins para o nosso lado. E, realmente ficaram. O Marechal Costa e Silva foi o presidente que iniciou a fase mais brutal da ditadura, mas ele comandou o país por somente dois anos. Em 1969, aos meus dez anos, ele sofreu um derrame cerebral e ficou impossibilitado de exercer seu cargo.

Porém, durante seus dois anos, ele conseguiu realizar grandes avanços contra a Argerich e dissipou grande parte dos seguidores. Entre os militares, a desconfiança perante seu suposto derrame cerebral é imensa.

Quando Costa e Silva já não estava no poder, os membros da Argerich voltaram a se juntar.

Isso significa que parte do trabalho dele, ao separá-los, foi vão? De forma alguma...

Em março de 1967, assim que passou a exercer o cargo, Costa e Silva caçou os inimigos da mesma forma que um leão abate suas presas. Ele fora astuto, veloz, sábio, observador e, principalmente, silencioso. Durante seu governo, Costa e Silva voltou-se para o combate da inflação, a expansão do comércio exterior e investimentos em setores como os de transporte e de comunicação. Meu pai sempre soube tudo que ele estava prestes a fazer, sempre o aconselhou e buscou apoiá-lo. Mas, no final, nada foi em vão. É claro que nem mesmo o melhor dos segredos estava realmente protegido. Minha mãe sabia. E, mesmo após todos aqueles anos, o segredo ainda a sufocava e ela não suportou mais ter que guardá-lo. O problema foi que ela contou exatamente para a pessoa errada.

Uma das amigas de minha mãe era esposa de um membro da Argerich, dessa forma ela buscava aproximar-se cada vez mais, esperando ansiosamente pelo dia em que poderia ser útil ao seu marido. Ao final, a informação que o homem conseguiu fora a mesma que matou meu pai, e o presidente. Aquele homem era um espião disfarçado, um ser imundo que corrompia a força militar que lutava tão bravamente, em segredo, para manter a vida da população minimamente melhor.

Ele revelou a um dos superiores da milícia que o presidente havia contado absolutamente tudo para um homem que não participava do exército, e continuaria revelando seus segredos. Assim, sequestraram meu pai. Ameaçaram assassinar ele no caso de Costa e Silva não desistir da presidência. Disseram que perseguiriam cada uma das pessoas que ele amava, mas ele não acreditou. Assim, meu pai fora assassinado. Mas, o exército não precisou mais matar ninguém pois o presidente sofreu um derrame.

Minha mãe passou a se culpar pela morte de ambos a partir dali, mas se ela soubesse o que estava por trás disso tudo, ela teria tirado sua vida muito mais cedo. Quem assumiu a presidência fora justamente o homem que delatou o suposto crime de Costa e Silva e seu nome era Emílio Garrastazu Médici.

Esse homem fez o país tremer, fez toda a nação brasileira sofrer e chorar, ele provocou a pior dor no coração de quem ama, a dor de não saber. Muitas pessoas perderam cada vez mais entes queridos, sem nem sequer saber o que lhes havia acontecido, já que simplesmente sumiram. Médici foi o maior monstro da ditadura brasileira. Nada poderia pará-lo. Bem, quase nada...

***

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de Você, Chico Buarque

O General Médici assumiu a presidência, o que poderia parecer um alívio para algumas pessoas, já que Costa e Silva não era exatamente um presidente muito adorado. Porém, com o passar dos anos, Médici se tornou uma das piores coisas que a nação já viu. Ele representou e liderou o país por cinco anos, tempo que utilizou para assassinar militares que ele dizia serem espiões e traidores, mas eram apenas pessoas que não confiavam plenamente nele. Também, durante seu mandato se iniciaram coisas como a censura, o combate aos movimentos sociais, além do exílio, tortura, assassinato e desaparecimento inexplicável de inúmeras pessoas.

Seu objetivo era simples: voltar o povo contra os ditadores e força-los a abandonar o poder para que Miguel surgisse como um herói da revolução e recebesse o amor e apoio do povo, enquanto fortificaria os seus e garantiria a impossibilidade de revoltas. Era um plano quase perfeito. Mas, talvez o povo não quisesse isso.

Porém, Médici não sabia se controlar tão bem e acabou por auxiliar a nação em alguns poucos pontos. Por exemplo, em seu governo ocorreu o chamado “milagre econômico”, quando o PIB brasileiro aumentou consideravelmente. Ele buscou um governo que parecesse estar aberto ao povo. Infelizmente, seus atos ruins acabaram por superar os bons e no final, apenas por ter realizado o milagre econômico, pôde escolher seu sucessor. Mas, essa é a história dele.

Médici foi presidente entre meus dez e quinze anos. Em seu último ano de mandato, acusou minha mãe de inúmeros crimes contra a ditadura. Torturou-a, estuprou-a, fotografou-a e enviou-me todas as fotos, com a ameaça de que se eu contasse qualquer um de seus feitos a alguém, eu passaria por tudo que ela passou. Ele foi o monstro que assolou grande parte da minha vida. Ele instalou um medo desmedido na minha alma e me fez chorar todas as noites antes de dormir, mesmo estando longe.

Eu tinha apenas quinze anos e fui enviada para um orfanato onde obviamente ninguém quis me adotar, devido a minha idade. Mas, com o passar do tempo, todo o meu medo se transformou em ódio. Eu precisava de respostas e precisava ver alguém sofrer. Alguém além de mim. Alguém que me fez sofrer. Mas, não havia caminho fácil para isso.

Escondi tudo o que sentia. As pessoas pensavam que meu pai fora assassinado e que minha mãe desaparecera, assim como aconteceu com muitas outras pessoas. Eu estudei muito, superei todos que me cercavam e me formei na escola com dezesseis anos. Nesse ponto, Médici já não era mais presidente, porém ainda possuía muito poder. Claro que nunca me importei com a quantidade de poder que ele poderia ter. Eu veria ele sofrer, nem que fosse a última coisa que eu fizesse.

Emílio foi um pesadelo para milhares de famílias brasileiras, ele fez as pessoas chorarem em silêncio, fez com que o medo inundasse a todos e que aguentassem tudo calados. Ele, com as censura, limitou o que as pessoas saberiam ou não. Fez todos virarem medrosos desprovidos de informação, ocos por dentro e cheios de buracos em seus corações. Ele fez com que todos temessem o que poderia lhes ocorrer no caso de se mostrarem contra a ditadura e por isso sempre soube que eu não poderia ser a única pessoa que guardava um ódio tão grande dele.

Atualmente, ele é o ditador do qual as pessoas menos se lembram. Dizem, na psicologia, que quando algo nos traumatiza demais, nossa mente nubla todos os detalhes. Deve ser por isso que muitos esqueceram. Mas, eu me lembro. Eu nunca esquecerei. Não importa o quanto aquilo me machucou, traumatizou e incomodou. Eu nunca esquecerei um mínimo detalhe do rosto do canalha que destruiu minha família. E, sei que não sou a única.

Deixei de amar, deixei de sorrir. Tudo que eu passei a sentir foi a dor, o ódio, o medo e o prazer. Apenas os desejos da carne e os sentimentos mais terríveis e destruidores que alguém poderia ter. Eu me tornei uma arma cada vez mais poderosa. Mas, eu não sabia onde estava me metendo.

***

Eu sou a mosca que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar
Eu sou a mosca que perturba o seu sono
Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar

Mosca na Sopa, Raul Seixas

O presidente Ernesto Geisel governava durante grande parte da minha faculdade e nunca me assustou da mesma forma que Médici. Talvez isso se deva ao fato de ele não ser uma pessoa tão terrível. Quando eu comecei a articular meus planos, pensei em aplica-los nele. Porém, não iria funcionar. Eu poderia não conhecer Geisel muito bem, nunca sequer o vi pessoalmente, mas ele não era o homem que eu estava esperando.

Geisel buscava a abertura política e apesar de não o ter conhecido, eu sei o motivo. Figueiredo me contou tudo. Quando criança, Geisel sofreu um grande trauma; ele nem mesmo sabia falar “órfão”, quando se tornou um. Infelizmente, ninguém o adotou. Com o tempo, o orfanato faliu e Geisel deu seu jeito e entrou para o colégio militar aos 14 anos. Era um menino inteligente, de verdade. Ele sabia, de certa forma a diferença entre estar livre e estar sob as regras da milícia. Portanto, insistiu em manter-se onde estava e evoluir cada vez mais até que um dia pudesse fazer alguma diferença, pois pensava que ninguém deveria viver tão oprimido. Ele quis ser presidente desde o momento em que a Argerich fora descoberta. Ele queria fazer a diferença e salvar a nação dessa ameaça aterradora. Ele daria sua vida para isso, sem se importar com o que poderia lhe acontecer, e sem se importar em não receber o merecido louvor, já que sua luta se manteria em segredo.

Ele era um homem bom, talvez semelhante comigo, de certa forma. A diferença entre nós sempre foi o fato de que com sua dor, ele aprendeu a lutar por algo bom e eu fiz o contrário. Infelizmente, Geisel estava atrapalhando meus planos. Quando ele decidiu que o mandato de um presidente deveria durar seis anos, uma onda de desespero se instalou sob mim. E se a ditadura se encerrar e eu não obtiver uma vingança? Geisel era algo que não me permitia dormir, suas ações me mantinham inquieta. Mas, no final, todos os meus temores se provaram ridículos.

Cheguei a pensar, algumas vezes, que ele pudesse saber quem eu sou, de alguma forma; que pudesse me conhecer e estivesse tentando impedir minha vingança. Mas, isso era impossível. Apesar de eu ser filha do homem a quem Costa e Silva revelara os segredos militares, eu não era algo que alguém temesse pois não parecia estar planejando algo e provavelmente pouquíssimos militares sabem do ocorrido. Na verdade, quem pode provar que foram eles que o fizeram? E se todos fossem membros da Argerich? Era difícil saber. Mas eu buscaria descobrir.

Uma coisa que aprendi com Geisel é que mesmo quando tudo é tirado de você, ainda há esperança. Você ainda deve lutar para que ninguém passe pelas mesmas coisas que você. E é isso que eu vou fazer. Geisel e sua motivação foram a última peça que restava para que meu plano fosse perfeito. E ele foi.

Infelizmente, durante o mandato de Geisel uma crise econômica se instalou e ao ver que o presidente não estava contribuindo para nada, Argerich forjou mortes que causaram a revolta do povo. Então, em um último ato como presidente, revogou o AI-5 que havia sido um dos piores golpes de Costa e Silva contra a Argerich, apesar do pensamento de muitos de que aquilo apenas prejudicaria o povo. Infelizmente, o AI-5 não teve o resultado esperado (que seria poder aplicar a Miguel o que ele realmente merecia), Geisel o anulou e restaurou o habeas corpus, podendo assim indicar um bom sucessor para ele. A partir daí, o homem que realmente me ajudaria a concluir meu plano se tornou o presidente do Brasil, seu nome era João Baptista Figueiredo e ele sempre foi, para mim, uma ótima pessoa, além de ter sido o último presidente do regime militar que açoitava os sentimentos do bom povo que vive nesse país. Felizmente, com ele, veio a derrota do tão temido inimigo. Figueiredo contou-me muitas histórias, mas a melhor entre elas foi a dele. De uma maneira totalmente estranha e inesperada, ele me ensinou a amar novamente. Geisel deixou de ser uma mosca zumbindo ao meu redor e passou a ser o homem que me alcançou a vitória em uma badeja de prata, sem ao menos saber.

***

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Cálice, Chico Buarque

Eu o conheci um ano após o início de seu mandato. Como já era formada em jornalismo, me aproximar não foi tão difícil, principalmente porque ele parecia me querer por perto. Realmente, é natural que a maioria dos homens caia na teia de uma mulher bela e cheia de curvas. Acontece nas melhores famílias.

Figueiredo não hesitou em me levar para a cama ao primeiro encontro, e não acho que ele tenha se importado com o fato de que mulheres que o aceitam não são “para casar”. Ele não queria se casar, queria se apaixonar. Sua esposa era apenas algo que ele obtivera para despistar seus pais da necessidade de ele encontrar uma mulher para ser mãe dos seus filhos.

Ele foi um bom presidente, apesar de não ter sido cuidadoso ao revelar os maiores segredos de seus aliados. Ele não se importava, sabia que eu era inteligente e seria sábia ao receber essas informações. Ele sempre soube que eu não arriscaria meu pescoço apenas para dizer que os militares eram boas pessoas e que um deles, o pior ser humano que já conheci era um traidor. Apesar do pouco tempo que tínhamos juntos, ele conseguiu me compreender completamente, conseguiu me ouvir e conseguiu me ajudar.

João começou com o processo de redemocratização, e permitiu a volta do pluripartidarismo. Felizmente, os aliados dos militares que foram exilados durante o governo Médici puderam retornar, mas trouxeram com eles os exilados que participavam da sociedade inimiga. Porém, Figueiredo já sabia como lidaria com isso.

Em segredo, ele caçou somente os líderes da sociedade, e os exterminou. Os outros membros simplesmente se espalharam e durante o resto do mandato de João, não voltaram a ser uma ameaça.

Ele não me contou coisas como onde nasceu ou como cresceu. As suas histórias eram voltadas para pequenas situações do dia-a-dia e suas lições. Ele me ensinou a ser uma pessoa melhor, com um sorriso verdadeiro e um coração aberto. Era realmente um homem extraordinário, esse tal de João Baptista Figueiredo.

***

Mas depois de um ano eu não vindo
ponha roupa de domingo e pode me esquecer
Acorda amor
que o bicho é bravo e não sossega
se você corre o bicho pega
se fica não sei não
Atenção, não demora
dia desses chega sua hora
Acorda Amor, Chico Buarque

João Baptista Figueiredo. Ah, eu o amei, e como! Aquele homem era diferente de tudo, seu sorriso, sua tristeza, seus medos, seu carisma. E ele era meu, em segredo. Dizem que proibido é melhor, e não sei se é. Mas, meu único amor foi proibido, e não me importa se o motivo de ele ter sido tão bom foi o fato de ser proibido, o fato de ser único ou o fato de ser meu. Quando o amor é verdadeiro, apenas o que importa é vive-lo; mesmo quando achamos que pensamos em muitas outras coisas e todas elas nos importam, o amor é apenas o que está em nossa mente quando ocorre. Eu sei, eu vi. Eu mudei e ele também.

João, se algo der errado e esses registros forem divulgados antes da sua morte, não esqueça de forma alguma que eu te amo. Fuja, fique, faça o que quiser, mas não esqueça que apenas fiz isso porque apesar de o seu amor ser o maior em minha vida, meus pais merecem ter suas almas descansando em paz, e eu mereço que a última coisa que eu faça antes da morte seja exercer minha vingança. Sei que hoje pela manhã deixei-te sozinho na cama, mas há um motivo. Seus colegas estavam atrás de mim e eu não podia deixar que me encontrassem contigo, muito menos que vissem meus registros. Isso mataria a nós dois. Porém, vou morrer de qualquer forma, assim como você. Apenas estou tentando prolongar a sua vida. Espero que nunca leia isto, pois para mim é melhor que você nunca saiba o que aconteceu comigo a morrer por minha causa. Assim mesmo, vou providenciar para que você possa saber o que ocorreu e viver em paz. Adeus, meu eterno amor.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, até mais ♥



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