Flor do Mandacaru escrita por Luh Castellan


Capítulo 1
A Flor que Fecha ao Sol


Notas iniciais do capítulo

Agradeço pela leitura!
Algumas palavras ou expressões assinaladas com um "*" são características da linguagem nordestina, por isso deixarei um glossário nas notas finais com os significados.



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A criada apertou mais forte o vestido ao redor da minha cintura. Reprimi um gemido. Costureiras e suas ajudantes me rodeavam, apertando, ajustando, costurando e trabalhando ativamente na roupa, enquanto eu tinha de ficar em pé, imóvel.

Fitei o espelho a minha frente e vi uma noiva com expressão carrancuda. Meus lábios finos estavam contraídos, em forma de linha. Os olhos escuros me encaravam de volta, meio angustiados. Se alguém me visse naquele momento, notaria que “feliz” era o último adjetivo do mundo para me definir. O vestido era deveras bonito, com detalhes em renda, pérolas delicadas e babados. Papai havia gastado uma fortuna com ele. Entretanto, o objeto não representava nenhuma alegria para mim.

— Como está a minha noiva preferida?

Minha mãe entrou no quarto animadamente. Como adepta do modismo, uma das aderentes ao penteado La Garçonne, cortado à altura da orelha, uma febre na década de 20. Era baixinha, mas isso não a tornava nem um pouco deselegante.

— Tão bem quanto alguém que é obrigada a casar-se forçadamente deveria estar — Ironizei.

As moças começaram a desabotoar o vestido, despindo-me. Suspirei aliviada por poder respirar novamente.

— Então imagino que esteja ótima, visto o homem magnífico que seu noivo é — Rebateu, rígida.

Soltei um som de deboche.

— Ah, claro. Dom Joaquim é um noivo magnífico, ignorando o fato de ter o dobro da minha idade, ser nojento e extremamente arrogante.

Ela deu-me uma tapa no rosto no momento em que acabei de pronunciar estas frases. Minha bochecha ardeu com a dor.

— Nunca mais ouse em dizer essas atrocidades, Anita! — Ralhou, em tom autoritário. — Joaquim é de boa família, um rapaz educado, e seu pai é um coronel de grande renome. Tem muitas posses de terras, pode lhe conceder a melhor vida do mundo.

— A senhora só quer me casar com ele pelo seu dinheiro. — Conclui o óbvio, depois de tantas vezes que a ouvi enumerar as “qualidades” de Joaquim. — Mas esqueceu-se de perguntar o que eu quero, se sua filha de 16 anos realmente que se casar.

As criadas terminaram de tirar o vestido e começaram a me vestir com trajes de dormir, mas eu gentilmente as dispensei. Eu tinha todos os membros perfeitamente saudáveis, podia muito bem me trocar sozinha.

Minha mãe tomou minhas mãos e olhou diretamente nos meus olhos.

— Eu e seu pai só queremos o melhor para você, filha. Queremos a garantia de que você terá um futuro confortável, ao lado de alguém de bem. Há boatos de que uma grande crise se aproxima. Ter um marido financeiramente estável resolveria boa parte dos problemas. E você vai se casar com Joaquim o quanto antes.

Segurei-me para não derramar as malditas lágrimas que estavam se acumulando nos meus olhos. Ela deu uma batidinha de leve nas minhas costas.

— Oh, isso me lembra... Há tantos preparativos! — Exclamou, cheia de entusiasmo. — Buffet, lista de convidados, o bolo, a orquestra... Sim, certamente teremos uma orquestra.

Ela começou a andar pelo quarto, enumerando os detalhes do casamento. Eu não estava nem um pouco disposta para organizar festas naquele momento.

— Mãe... Se não se importa, estou um pouco cansada — Menti. — Amanhã continuamos a discutir os detalhes, sim?

Ela sorriu ao pensar que eu finalmente estava me interessando pelo casamento. Detestava mentir, mas infelizmente, essa era a única alternativa para eu ter um momento a sós.

— Claro. Minha filhinha precisa estar bem disposta amanhã, e sem essas terríveis olheiras — Torceu o nariz para as manchas arroxeadas ao redor dos meus olhos.

— A bênção — Pedi, fazendo referência à uma tradição clássica dentre as famílias nordestinas.

— Deus te abençoe.

Ela me deu um beijo na testa.

Depois que ela e as criadas deixaram o quarto, sentei na cama e apoiei a cabeça nas mãos. Não podia me casar com Joaquim, amando outro homem. Esse fora o motivo das longas noites mal dormidas.

Ouvi um barulho peculiar vindo da janela. Parecia com pedrinhas batendo no vidro. Vesti o robe apressadamente e fui descobrir o que era. Meu rosto iluminou-se instantaneamente, quando abri as cortinas e vi o rapaz que estava lá embaixo.

Trajava calças de couro e uma camiseta de algodão cru. Portava uma faca embainhada, atada a sua cintura e mantinha uma mão escondida nas costas. Sua pele era bronzeada naturalmente pelo longo tempo exposto ao sol. Tinha cabelos castanhos ondulados, que viviam desarrumados, combinados com um par de olhos da cor da noite. Feições bem marcadas e maxilar proeminente. O que diferenciava Tomaz dos outros do seu bando era o amplo e lindo sorriso que enfeitava seu rosto na maior parte do tempo. Desconstruía a imagem que a sociedade criava de “bandidos selvagens e violentos” sobre os cangaceiros. E foi por esse motivo que eu me apaixonei por ele.

Abri a janela e debrucei-me na varanda.

— Boa noite, minha dama — Ele cumprimentou.

— Bom te ver, meu vagabundo — Sorri, tratando-o pelo apelido que ele auto intitulou-se quando nos conhecemos.

Tomei impulso no pedestal para pular a janela e desci, escalando a grade até tocar o chão. Ele envolveu-me em seus braços, num abraço que dissolveu todo o meu tormento de momentos antes. Eu adorava o seu cheiro, másculo, misturado em tons amadeirados. Era capaz de reunir as melhores lembranças e provocar as melhores emoções.

Revelou o que estava escondendo: uma delicada flor branca com pétalas sobrepostas e miolo amarelo. Era uma flor de mandacaru, uma espécie de cacto bastante comum no sertão. Esse tipo de flor só desabrochava a noite, começando a murchar logo ao amanhecer. Ela simbolizava o nosso romance, as saídas noturnas e o fato de Tomaz sempre ir embora antes do nascer do sol. Ele colocou-a atrás da minha orelha, destacando em meio aos meus cachos negros.

A noite estava agradável. Tempo frio era algo quase impossível no Nordeste. Sentamos num banquinho debaixo de uma árvore, tomando o cuidado de não fazer barulho para não acordar meus pais. As cigarras e grilos faziam sua sinfonia noturna no meio do mato.

Tomaz passou o braço ao redor da minha cintura de forma protetora e eu apoiei minha cabeça no seu ombro. Contei-lhe sobre toda a situação, sobre o noivado do dia anterior que fui obrigada a aceitar, sobre as broncas da minha mãe e os preparativos do casamento. Dessa vez, não pude evitar as lágrimas. Elas desceram pelas minhas bochechas como água brotando numa fonte.

— E... Eu não sei mais o que fazer — Finalizei o relato penosamente.

— Mas eu sei — Ele levantou meu queixo, me fazendo fitar no fundo das suas íris escuras. — Fuja comigo.

Essa afirmação em forma de convite me causou um impacto momentâneo. Eu nunca havia cogitado aquela possibilidade.

— Fugir?

— Sim. Com meu bando. Eu já iria te chamar, de qualquer forma. O nosso tempo aqui na região ‘tá se esgotando. Logo vamos partir para outro lugar, e eu não aguentaria te deixar para trás.

Sua mão acariciou a minha. Era grossa, devido ao trabalho pesado. Mãos de homem. Eu quase havia me esquecido da vida nômade que os cangaceiros levavam. Recordar-me daquilo foi como uma pontada no coração.

Avaliei as minhas opções. Eu poderia deixar minha família para trás e fugir com o homem que eu amava, me tornando uma bandida, vivendo à deriva sem nenhum luxo, ou me casar com um cara rico, insuportável e passar o resto da minha vida infeliz.

Depois de um longo tempo em silêncio, ouvindo o canto das cigarras, fiz a minha escolha. Se era loucura? Com certeza. Mas situações extremas requerem medidas desesperadas.

— Eu vou com você — Afirmei, tentando transmitir o máximo de confiança.

Um sorriso surgiu nos seus lábios.

— Ótimo!

Ele levantou-se e me puxou. Eu parei com o corpo colado em seu peito, sentindo-o subir e descer com a respiração. Nossos rostos estavam bem próximos.

— Venho te buscar amanhã mesmo — Ele sussurrou.

— Estarei te esperando, meu cangaceiro — Sussurrei de volta, com os lábios próximos à sua orelha.

O moreno roubou-me um beijo. Senti como se um rio de fogo corresse em minhas veias, espalhando-se por todo o meu corpo.

Nos separamos, ofegantes. Eu tinha certeza de que minhas bochechas estavam da cor de um tomate. Essas demonstrações de carinho mais “ardentes” não eram costumeiras para uma moça solteira que se preze, como dizia mamãe.

— Agora eu tenho que ir — Despediu-se com um leve roçar de lábios.

— Até amanhã.

Ele soltou-se de mim e eu voltei para perto do casarão. Virei-me a tempo de ver Tomaz montando em seu cavalo e desaparecendo na mata. Escalei a grade novamente e desabei na cama, com o coração batendo acelerado. Eu iria fazer a maior loucura da minha vida.

***

Molhei a pena no tinteiro novamente e assinei a carta. Muitas lágrimas foram derramadas ao escrevê-la, porém foi algo necessário. Eu havia me retirado para o quarto mais cedo, com a desculpa de que estava indisposta, o que não era totalmente mentira. Passei o dia inteiro me sentindo culpada toda vez que ela mencionava algo sobre os preparativos do casamento. Repreendi-me mentalmente quando isso acontecia, pois esse maldito casamento forçado era justamente uma das causas da minha fuga. Reli a carta, para ter certeza de que não tinha esquecido de nada.

Queridos painho e mainha,

Os senhores não fazem ideia do quão difícil está sendo para mim ter que fazer isto que estou prestes a fazer. Sei que quando lerem esta carta irão ficar furiosos e desapontados comigo, mas humildemente peço que tentem entender o meu lado, e saibam que não fiz por mal.

Em primeiro lugar, peço desculpas por ser uma péssima filha, por decepcionar vocês e ao Dom Joaquim. Infelizmente eu não o amo e não me sinto nem um pouco confortável com esse casamento. Peço desculpas por ter fugido assim, de uma hora para outra, mas acreditem, não estava planejado.

Eis um dos muitos motivos os quais não posso me casar com ele: eu amo outro homem. Sim, estou apaixonada por um rapaz e encontro-me com ele há algum tempo. Não o apresentei aos senhores por motivos óbvios. Com toda certeza ele não seria do seu agrado e reservo-me ao direito (se é que ainda tenho algum) de guardar a identidade dele só para mim.

Eu sei que só querem o melhor para mim, e sinto-me horrível em ter que contrariá-los, entretanto peço que tentem entender o meu ponto de vista. Quero começar uma nova vida diferente desta e ter só um gostinho do que dizem ser “liberdade”. Quero ser dona do meu próprio nariz e tomar decisões, não importa se forem certas ou erradas. Ir atrás da minha felicidade, ao lado do homem que eu amo.

Por favor, não me procurem. Chega uma hora em que os passarinhos criam asas e precisam aprender a voar sozinhos. Esse momento chegou para mim. Preciso conhecer outros céus, voar para longe, cair e aprender a levantar. E preciso fazer isso sozinha. Nunca se esqueçam de que amo vocês. Tentarei enviar correspondências se puder.

Com amor,

Anita Carvalho.

Dobrei o papel antes que eu começasse a chorar novamente. Coloquei-o num envelope e deixei sobre minha escrivaninha. Vesti uma roupa confortável, uma calça e uma camisa de lã, de manga comprida e calcei minhas botas. Juntei algumas outras roupas numa bolsa, junto com itens de higiene pessoal, biscoitos e uma garrafa de água. Prendi meus cachos escuros numa trança lateral.

Dei uma boa olhada ao meu redor, para memorizar o meu quarto. Passei a mão sobre a colcha de crochê que cobria a minha cama, que eu mesma bordei. Demorei-me nos detalhes da pintura bege das paredes, e na poltrona confortável ao lado da minha estante de livros. Ah, os meus livros... Morreria de saudade dos meus romances, das enciclopédias e também dos livros de aventura, que eram taxados como literatura para homens.

Meus olhos fixaram-se num porta retrato que repousava na minha escrivaninha. Nele exibia-se uma fotografia em preto e branco de uma criança acompanhada de dois adultos. O meu pai, imponente de bigode, minha mãe, com seus olhos apertados e um coque elegante e por fim eu, com meus oitos anos, cabelo curto de franjinha e roupa bem engomada. Passei o indicador sobre os rostos na foto, como se substituísse os abraços de despedida.

Sobressaltei-me com o barulho das pedrinhas na janela. Estava na hora de ir. Enfiei a fotografia na bolsa e dei uma última olhada no quarto, antes de abrir a janela. Tomaz estava me esperando lá embaixo, parecendo uma espécie de deus na luz pálida do luar. Usava calças cobertas por perneiras de couro, botas e uma camisa bege sob um colete, também de couro. Dessa vez, levava uma arma a tira colo e um cinto de munição transpassado no peito. Aquilo serviu de lembrete para o que eu estava prestes a encarar.

Respirei fundo e desci. Tomaz me recebeu com um abraço acalorado. Porém, seu calor não foi suficiente para dissipar o meu frio na barriga.

— Tá pronta?

Olhei uma última vez para o casarão branco, algumas janelas iluminadas pela luz tremulante das velas. Depois dirigi-me para o rapaz, que me encarava com expectativa. Quase hesitei antes de responder.

— Sempre estive - O tremor na minha voz me contradisse.

Ele encostou os lábios nos meus delicadamente, como um bater de asas de uma borboleta. Era incrível a contradição de um cara tão forte, bruto e ao mesmo tempo delicado e carinhoso.

— Então bora*.

Tomaz me ajudou a subir no cavalo, um alazão da cor de canela que ele chamava carinhosamente de Panga. Ele subiu em seguida. Agarrei-me firmemente à sua cintura e demos as costas ao casarão, mergulhando no mar de juremas* e algarobas*. O cavalo seguia por uma apertada trilha entre as árvores. Vez por outra um galho chocava-se contra mim, arranhando minhas roupas ou pele. Aí entendi o porquê de os cangaceiros usarem roupas grossas de couro: para se protegerem quando estavam correndo no meio do mato.

— Hã... Algumas coisas que tu precisa saber sobre o acampamento — Ele falou, depois de um tempo. — Numa primeira impressão, os cabas* podem parecer um pouco... — Ele parou um instante, escolhendo as palavras. — Intimidadores. Mas todos são muito legais, resenheiros*, você vai gostar.

Assenti com a cabeça, num gesto de concordância. Só em seguida me dei conta de que ele não podia ver.

— Sobre o capitão Januário, você vai descobrir quando conhecer ele. Cabra macho, valente. É bem compreensivo, gente boa, mas minha flor vai precisar da autorização dele para entrar de vez no bando. É dele a palavra de ordem ali. Não o contrarie.

Um arrepio subiu pela minha espinha só de pensar no capitão do bando. É claro que os outros cangaceiros não eram iguais a Tomaz. Afinal, a fama que corria era que os cangaceiros eram criminosos cruéis e sanguinários. Onde eu estava me metendo? A ideia da fuga de repente não me pareceu tão boa quanto antes.

O bandoleiro deve ter percebido minha inquietação, pois soltou uma mão das rédeas e segurou a minha.

— Ei, relaxe — Tranquilizou-me com a voz mais aveludada. — Não vou deixar nada acontecer com você.

Abracei-o com mais firmeza, como se quisesse unir nossos corpos num só.

O sol já começara a raiar quando finalmente chegamos ao acampamento. Numa grande clareira erguia-se um círculo de tendas e barracas. Espalhados por toda parte haviam sacos, caixas, armamentos e outros apetrechos que eu não fazia ideia de como se chamavam. No centro havia uma fogueira ainda soltando fumaça, provavelmente por ter passado a noite acesa. Pude ver também alguns animais em cercados improvisados e cavalos amarrados à estacas.

Nossa chegada atraiu a atenção de dois homens que supostamente deveriam estar de vigia, mas cochilavam escorados em pedras. Eles acordaram sobressaltados ao som dos galopes de Panga. Ergueram as armas, dois rifles Winchester 44, porém as baixaram assim que reconheceram Tomaz. Um deles eram alto e esguio, de pele cheia de sardas. O outro era baixinho e usava um chapéu de couro um pouco grande demais. Seu rosto me lembrava uma raposa.

— Dia, Ciço. Zé Urêia — Tomaz cumprimentou os dois cangaceiros.

Ele desceu do cavalo e me ajudou a descer também.

— E hoje temos visita? - O Cara de Raposa me analisou de cima a baixo, um gesto que eu não gostei nem um pouco. — Quem é essa princesa?

Tomaz mandou-lhe um olhar enviesado.

— Tire o olho, Zé — Repreendeu — Essa dama aqui já tem dono.

Passou o braço ao redor da minha cintura de forma protetora. A movimentação no acampamento já estava aumentando, conforme o sol subia no horizonte. Algumas pessoas notavam o elemento estranho ali, eu, mas preferiam concentrar-se em seus afazeres.

— Vou falar com o capitão — O moreno dirigiu-se a mim. — Fique aqui. E cuidado, porque tem uns certos cabas safados que quando veem mulher bonita ficam parecendo cachorro no cio — Falou essa última parte alto o bastante para os dois vigias ouvirem.

Dei-lhe um beijo na bochecha. Logo em seguida, ele rumou em direção a uma grande tenda, talvez a maior do acampamento. Zé Urêia e Ciço envolveram-se numa discussão sobre quem roubou as balas do outro. Brinquei com os dedos na barra da camisa para tentar disfarçar meu nervosismo. Numa tentativa de distração, comecei a observar as pessoas em volta. Uma senhora um pouco gordinha despejava a água quente da chaleira num coador de pano. O cheiro de café espalhou-se pelo lugar, fazendo meu estômago roncar. Quatro ou cinco homens adultos prendiam amarras e proteções de couro em seus corpos. Uma mulher afiava facas numa pedra de amolar, enquanto conversava animadamente com outra. Essas e outras pessoas faziam suas tarefas com calma e prática, como se estivessem bastante acostumados a fazê-las. Pareciam confortáveis e felizes com aquela vida. Acima de tudo, pareciam uma família.

Eu estava tão concentrada em observar os cangaceiros que nem percebi quando dois deles se aproximaram se mim. Era meu namorado acompanhado de outro homem, supostamente o capitão Januário. Trajava roupas de couro, chapéu adornado e um lenço no pescoço. Seus dedos eram cobertos dos mais variados tipos de anéis, os quais fazia questão de ostentar. Seu rosto era sério, barba aparada, traços fortes e sobrancelhas grossas. Irradiava poder e confiança, porém não de uma forma arrogante. Ele certamente causava arrepios nos inimigos, mas para mim estava mais para um sábio líder, uma pessoa a quem procurar proteção quando se está em perigo.

— Capitão, essa é a moça que eu te falei, Anita — Tomaz nos apresentou.

Ele estava surpreendentemente calmo, como se estivesse apresentando a namorada aos pais num jantar de família.

— Prazer, Capitão — Estendi-lhe a mão e ele apertou-a, com firmeza, mas não ao ponto de doer.

Ele me analisou um instante com seus olhos frios.

— A senhorita sabe onde está se metendo, não é?

Concordei com um maneio de cabeça, um pouco nervosa.

— O cangaço não é um acampamento de férias para onde jovens revoltados vão quando se desentendem com as famílias. É um modo de vida. Uma forma de mostrar que estamos descontentes com as desigualdades desse nosso sertão. Uma tentativa de diminuir as injustiças e ajudar toda essa gente que só faz sofrer. Tu concorda com isso?

— Sim, senhor — Respondi de imediato.

Suor frio escorria da minha nuca. Um círculo de pessoas formou-se em nossa volta, para observar aquela cena.

— Ótimo — Sua carranca amenizou-se. — Saiba que a partir do momento em que a moça entrar no cangaço, não tem mais volta. Vai enfrentar dificuldades, passar dias sem comer, enfrentar frio e calor de rachar e sempre há o risco de não estar vivo no final do dia. Nós somos cangaceiros até morrer. Se a senhorita está disposta a assumir todos esses riscos...

— Estou disposta — Afirmei, com mais firmeza desta vez.

Um vislumbre de sorriso surgiu no canto do seus lábios.

— Então é bem vinda no meu bando. Aliás, na minha família. Porque é isso que nós somos. Se ajudando, protegendo, cada um fazendo a sua parte. A senhorita tem algum dote que seja útil?

— Sim. Sei bordar, costurar, fazer crochê e renda. Eu mesma fiz essa calça — Indiquei meu trabalho com presunção.

Certa vez, minha mãe dissera que mulheres não deveriam usar calças. Só para discordar, fiz a minha própria, mas nunca tive a oportunidade de usá-la. Gostaria que ela me visse naquele momento. Pensando bem, não gostaria.

— Além disso, faço serviços de casa, e aprendo rápido. Estou aqui para o que precisar.

— Não é à toa que enrabichou o coração de um cabra acolá, né Tomaz? — O capitão deu uma tapa de leve nas costas do meu namorado.

Ao ver o capitão brincando, um peso foi tirado das minhas costas. Eu sorri pela primeira vez naquele dia.

— Ei cambada, sejam educados! — Ele dirigiu-se aos outros no círculo. Pegou um dos meus braços e o ergueu. — Deem as boas-vindas à nova cangaceira do bando, Anita!

A pequena multidão irrompeu em vivas e aplausos. Meu coração pulsava loucamente no meu peito e um sorriso iluminava meu rosto. Tomaz também estava sorrindo, com orgulho. Quando o capitão me soltou, ele tomou-me nos braços e me deu um beijo.

Um moleque franzino chegou à clareira, esbaforido, interrompendo a festa. Era magro como um passarinho, de pele mulata e cabelos cacheados numa eterna bagunça. Aparentava estar na faixa dos dez a doze anos.

— Capitão! — Ele gritou, com o fôlego que lhe restara.

Januário assumiu uma expressão séria e dirigiu sua atenção ao menino.

— O que foi, Sabiá? Que carreira é essa?

Sabiá apoiou as mãos nos joelhos e respirou fundo, como um asmático à procura de ar. Deveria ter vindo de muito longe, correndo. O Capitão ficou impaciente.

— Desembucha logo, moleque! — Ordenou.

O menino finalmente conseguiu falar, entre lufadas de ar.

— Eu... Tava vigiando os macacos* como o senhor mandou. Escutei a conversa deles. Vão fazer uma nova busca para procurar o acampamento, e desconfiam que é por essa região. Vim o mais ligeiro que pude, mas eles tão de cavalo, então devem tá por perto.

O burburinho tomou conta do bando. Pelo pouco que eu sabia, os “macacos” deveriam ser os Volantes, um grupo de policiais que caçavam os cangaceiros como se caça peba* no mato. De vez em quando se encontravam em combate. E os resultados não eram nada bonitos.

— Diacho! — O Capitão resmungou. — Quero todo mundo pronto para partir, e é agora! Ciço, Zói Furado, Xique-xique e João Jiló, vocês vem comigo pela estrada principal. Tomaz e o restante vão pela Suçuarana, a estrada que vai dar no povoado. Eles vão ter que passar num desses dois caminhos. Bora, minha gente!

Os rapazes começaram a se aprontar rapidamente, amarrando arreios, carregando rifles e correndo de um lado para o outro. Tomaz voltou-se para mim.

— Tenho que ir.

Eu mal havia chegado e já ficaria sozinha naquele lugar, onde não conhecia ninguém. Meu coração apertou-se.

— Mas... — A palavra morreu em meus lábios. O que eu diria a ele? “Fique comigo, estou com medo”. Ele me acharia fraca e indefesa, enquanto eu estava tentando provar justamente o contrário. Além do mais, aquele lugar era meu novo lar agora, certo?

Engoli em seco.

— Eu volto logo — Ele acrescentou. — Inacinha vai cuidar de você.

Ele acenou para uma mulher que estava ali perto. Deveria ter aproximadamente 30 anos, era um pouco mais baixa que eu e tinha cara de poucos amigos. Usava um vestido cor de telha e botas de couro. Ela aproximou-se, meio à contragosto.

— Eu sei me cuidar soz... — Comecei a protestar, porém ele me interrompeu.

— Mostre o acampamento a ela — Dirigiu-se à mulher.

Em seguida, deu um beijo na minha testa e montou no cavalo.

— Se cuida — Murmurei, enquanto ele dava as costas e adentrava na mata com seus companheiros.

Inacinha avaliou-me de cima a baixo, com um olhar de puro desprezo.

— Era só o que me faltava, virei babá de burguesinha.

Fechei os olhos com força, numa tentativa de ignorar o comentário. Minha vontade era de falar umas verdades para aquela sonsa que mal me conhecia e mostrar para ela quem era a “burguesinha”, mas mordi a língua. Controle-se, Anita, falei para mim mesma. Seja simpática, tente se entrosar.

— Então... Eles não vão bater de frente com a Volante, né? — Perguntei, para puxar assunto.

Ela olhou-me como se eu tivesse dito uma das maiores idiotices do mundo.

— É claro que não, abestada. Seria suicídio. O bando vai só despistar os macacos, para eles não encontrarem o acampamento.

Tudo bem, minhas tentativas de ser amigável esgotaram-se com o “abestada”. Essa mulher não foi com a minha cara, nem eu com a dela.

— E se avexe* que o dia é longo e tem muita tarefa pra ser feita. Aqui não tem o luxo que você tá acostumada, não. A gente tem que ralar — Ela dizia isso durante o trajeto entre as barracas e pessoas atarefadas.

Grande parte dos homens havia saído, salvo algumas exceções. Restaram principalmente as mulheres, cuidando dos afazeres. Eu tentava acompanhar o passo da cangaceira, que andava com pressa na minha frente.

Inacinha parou de repente, em frente a uma das tendas.

— Aqui é a barraca do seu macho, onde você pode deixar suas coisas.

Era uma construção improvisada com paus, lona e esteiras de bambu. Afastei um dos panos que deveria ser a porta e entrei. Uma rede armada entre dois pilares, um velho baú de couro num dos cantos, coberto de frascos de perfume, um espelho meio sujo dependurado, uma cama de palha trançada e alguns vasos de barro compunham a pouca decoração do lugar. Joguei a bolsa sobre a cama e virei-me para sair, porém Inacinha estava bloqueando minha passagem.

Ela apertou os olhos.

— Tem sorte do Capitão ter deixado tu entrar no bando assim, tão fácil — Seu tom de voz era ácido. — Mas não fique se amostrando* não, só porque namora o “preferido” de Januário. Você é só mais uma na lista de passatempos dele.

O sangue subiu à minha cabeça. Cansei-me das piadinhas.

— Olhe dona, eu não fiz nada para merecer seu ódio, então se aquiete — Soltei, calma por fora, mas fervendo de raiva por dentro. — Não sou capacho pra receber esse destrato, e não sou essa “burguesinha” que você pensa. E o que acontece entre mim e Tomaz não é da sua conta.

Ela não se abalou. Ao invés disso, sorriu maliciosamente, como se tivesse topado um desafio. Saiu do caminho, deixando que eu me afastasse da tenda.

— Essas suas mãos de princesinha sabem arear panela? — Indicou algumas bacias de alumínio cheias de água que estavam no chão, ao lado de baldes com pratos sujos e caldeirões atolados de graxa. — Quero ver aqueles caldeirões brilhando.

Suspirei. Me sentei num banquinho ao lado das bacias e comecei o trabalho. Daquele jogo, duas podiam participar. E eu não me renderia tão fácil.


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Notas finais do capítulo

* Bora: Vamos embora.
* Juremas e algarobas: Plantas típicas da caatinga.
* Cabas: Forma informal de "cabras", parceiros, "manos".
* Resenheiro: Pessoa brincalhona, que gosta de fazer piadas, ou "resenha".
* Macacos: Forma que os cangaceiros referiam-se à Volante, a polícia que perseguia os bandoleiros.
* Peba: Também chamado de "tatu-peba", é uma espécie de tatu encontrada no nordeste.
*Avexar: Apressar-se, ir mais rápido.

Qualquer outra palavra que eu tenha esquecido, ou esteja em dúvida, podem perguntar ^^
Por favor, a sua opinião é muito importante. Nem que seja um "gostei, continua" ficarei muito feliz :)
Até o próximo o/



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