Invisíveis como Borboletas Azuis escrita por BeaTSam, tehkookiehosh


Capítulo 30
Verso 29: Suicide




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Stella P.O.V.

Sinto vergonha dos meus olhos vermelhos, dos cabelos desgrenhados. Sabia que acabaria encontrando-a, mas torcia que não fosse tão cedo.

Não agora.

Não quero ouvir todas as suas lamentações, todas as suas reclamações, toda sua raiva.  Sim, eu mereço, mas isso não significa que eu aguente. Meus pés pesam, como preso a uma bola de ferro. Tento correr para longe, mas algo me prende. Não algo simplesmente emocional, mas algo físico: os braços de Bia.

—Stella....Você voltou – sussurra chorosa em meu ouvido.

— Você não tem ideia do quanto eu senti sua falta.

É difícil de pensar. Só vem um vazio escuro como a noite à minha mente. Meu coração se acelera demais, ameaçando sair pela boca. Isso.....não faz sentido. Por que ela não me odeia?  Ela está sendo sarcástica? É alguma forma de vingança? Não é possível, principalmente depois de tudo que fiz. Se até eu me odeio, porque ela não odiaria?

— Por que voltou? Aqui não te machuca? – ela seca as minhas lágrimas.

— Ah, entendo. Soube sobre seu pai, apesar dele ter cortado relações com a minha família depois daquilo. Desculpa.

Ela não precisa de mais palavras. O tempo que ficamos em silêncio já diz tudo. Deixo todas as lágrimas rolarem, principalmente depois de nos afastarmos para aquele canto ensolarado.

Passei minutos e mais minutos chorando – acho que foi para compensar esses últimos anos. Aquela imagem do meu pai volta à minha mente. Por mais que eu me esforce para atenuá-la, todos os detalhes estão nítidos em minha memória.

“Ele pode morrer a qualquer momento”. Dói demais saber que desse pesadelo não vou acordar.

Cada lágrima derramada pesa 16 anos de tristeza e um dia de remorso. Gota a gota, meu corpo queima todo o peso que carreguei desde que nasci. Bia apenas espera em silêncio, apertando a minha mão. Não mereço isso. Ela deveria rir da minha cara, dizer “bem feito”, cuspir de volta tudo o que já disse para ela.

Bia não o faz.

Mesmo depois de tudo o que já fiz, ela não ressente. O calor de sua mão é tão nostálgico... Lembro de ele aquecer as partes mais gélidas do meu ser. Por mais que nunca tenha dito em voz alta, sempre amei seu jeito de afastar os meus fantasmas.

Por mais que tenha demorado talvez duas horas, meu choro cessa. Sei que parece muito, mas sei que choraria muito mais se ela não estivesse ali, com sua compaixão em cada ação. São atitudes tão simples, mas tão aconchegantes. A mão que ela não afastou, as lágrimas que ela enxugou, aquele sundae com cobertura de chocolate extra, aquele que sempre dividíamos, bem na minha frente, só me aguardando.

Antes que aquela delícia nostálgica se desmanchasse no calor infernal do Rio (mesmo com ar condicionado), devoro-a em lentas mordidas. Esse sundae, por mais que seja até um pouco doce demais, ele traz tantas lembranças... Eu insistia em reclamar quando a Bia dizia que era o melhor da cidade. Nunca vi nada demais nesse sundae, mas jamais saboreei tanto uma sobremesa quanto hoje.

Enquanto como vagarosamente cada pedaço, tentando resgatar cada memória, Bia me encara com seus marcantes olhos negros como ébano. Sempre me perguntei: se eu os encarar de volta por tempo o suficiente, seria eu engolida pela escuridão do seu olhar? Uma escuridão da qual não tenho medo, mas me acoberta e esconde das sombras que me perseguem. Claro, nunca tentei. Nunca tive coragem, na verdade. Por isso, até hoje me pergunto como seria.

Estou quase ficando sem fôlego quando ela desvia o olhar. Conheço-a bem o suficiente para ler aquela expressão. O queixo apoiado na mão esquerda, o cenho levemente franzido e os olhos semicerrados, sem rumo definido: ela com certeza está pensando no que falar. Esse é o jeito dela de fingir que está calma quando está nervosa.

Por muito tempo, o único barulho na mesa era o tilintar da colher na taça de vidro e o assoar do meu nariz. Ao contrário da maioria, não me constranjo com silêncio. Afinal, sei que esses serão meus últimos minutos de paz. Não quero conversar, revisar explicações minimamente plausíveis para o inexplicável, inventar desculpas para o imperdoável, relembrar todos os meus pecados, todas a minhas sinas. Não ligo se ela gritar, berrar, reclamar ou jurar nunca me ver.

Mentira.

Mas sei que mereço tudo isso, então não vou reclamar. Só queria ter o poder de fazer perdurar esses últimos segundos de, bem, já não sei se felicidade é o nome certo para isso, mas algo parecido. Nesse curto espaço de tempo, posso esquecer de toda a minha culpa e voltar há dois anos atrás, quando tinha tão pouco para me preocupar que nem percebi. Quero que essa paz serena a qual sentia quando estava perto dela nunca se quebre. Por mais alguns segundos, a lentidão com que como meu sundae me proporciona isso.

Infelizmente, o silêncio é quebrado por seu suspiro:

— Stella...

Não respondo. Não por birra, mas porque simplesmente não sei o que falar. Foi bom enquanto durou, porém não consigo pensar numa desculpa plausível para o que fiz. É agora que eu volto para a realidade, essa em que eu sou culpada e ela não vai voltar a falar comigo – a menos que seja para me xingar. Continuo encarando a taça, ou não tenho certeza se poderei aguentar até o final.

— Desculpa. – Surpreendo-me quando essa palavra da sua boca e não da minha. Afasto-me da mesa, ao ouvir o resto, incrédula. – Estive pensando esses anos, tudo isso foi minha culpa. Não fui presente o suficiente, não fui complacente o suficiente, não fui compreensiva o suficiente. Só porque eu não tive problemas, agi como se você também não os tivesse. Isso foi muito, muito errado. Você era a pessoa mais importante para mim e eu não dei valor. Foi por minha causa que a sua vida no Brasil se tornou insuportável. E por minha causa que você teve que se mudar para Coreia.

Seus olhos se enchem de lágrimas numa cena rara. A Bia não chora. Minha cabeça é atingida por um turbilhão de pensamentos e não consigo analisar um.

— Você sabe, eu sou horrível com desculpas – continua. – E sei que você não vai me pedoar, nem eu me perdoo. Como fui tão imbecil de estragar a vida da melhor pessoa que já conheci por causa das minhas opiniões fúteis? Eu criei isso tudo e não sei como consertou. Isso não deve importar, mas chorei todas as noites por meses. Demorei demais para perceber o que tinha feito e entendi, você já tinha ido embora. Até hoje não consigo digerir isso. É um nó que está preso na minha garganta por anos. Mesmo que eu não devesse, senti saudade e pedia para você voltar todas as noites. E, olha só como sou egoísta, até fiquei feliz quando a vi, mesmo que chorando! Eu sempre pensei no que era melhor para mim, não para você. Sei que nada vai consertar o que fiz, mas tem algo que realmente preciso dizer: desculpa.

Não aguento mais ouvir isso. Cerro meus punhos sobre a mesa e levanto ferozmente a ponto de calá-la de susto.

— CALA A BOCA!!! – Berro alto o suficiente para todos na lanchonete nos encararem. Quem liga? Deixa esse bando de curiosos entender a merda que eles quiserem disso aqui. – POR QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO ISSO? Eu e você sabemos que a culpada aqui sou eu, inquestionavelmente! Então por que faz isso?! É compaixão porque pareço tão miserável aos seus olhos? Ou é uma nova forma de me fazer me sentir mais culpada?! Pois, saiba, está funcionando! Eu não quero isso! Eu sei o que mereço e não é compaixão. É TUDO CULPA MINHA, EU SEI! ENTÃO, EM VEZ DE FAZER ESSES JOGUINHOS, ME MATA LOGO! É única forma de compaixão que eu aceito depois de tudo o que fiz. Agora, já que você teve o seu momento de pseudo-arrependiento, não precisa se preocupar em falar mais comigo. Eu sei que você não quer. Eu sei que você tem nojo de mim, eu mesma tenho. Então faça um favor para si mesma e guarde essas palavras aconchegantes para si mesma. Você sabe que eu não mereço.

Saio correndo, deixando-a sozinha em lágrimas. Merda! Eu tenho que parar de dar piti e sair correndo chorando como uma criança. Já é a segunda vez hoje. Merda! Merda, merda, merda, merda! Não era isso o que eu queria! Por que só grito com as pessoas que eu realmente amo?

Eu me odeio.

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Tardo a chegar em casa. Meus pés doem de andar e andar sem chegar a qualquer lugar bom. Só nadando... No caminho, até entrei num shopping e respondi as mensagens do Jungkook da maneira mais genérica. Não quero que ele saiba o quão miserável estou agora.

Não estou aqui porque quero. Por mais que seja o pôr-do-sol, nuvens cinzentas cobrem o céu de amargura. É claro que nem o céu estaria bonito como naquele dia. Ele só quer me torturar, me forçar a voltar para essa desgraça. Tudo culpa desse merda de cidade que só sabe afogar em si mesma!

Meu estômago reclama por falta de comida. Aquele sundae não bastou para me deixar em pé. Parece que o universo todo está conspirando para me obrigar a abrir esse portão. Que universo sádico.

Novamente, as grades estão firmemente trancas. Já era de se esperar. Tudo nessa casa é coberto de espinhos para machucar meu coração. Está funcionando, mas não vou deixa-los saber disso. Seria a minha derrota.

Desenterro aquela velha chave do meu bolso. Haha! Vocês não contavam com a minha astúcia! Ou algo assim... Sei lá, não estou muito no humor para fazer piadas.

A casa parece estar tranquila. Ouço barulho da televisão ao longe e as luzes acesas. Elas com certeza estão aqui. Infelizmente, a porta se fecha atrás de mim antes que possa impedi-la. Merda! Agora elas sabem que cheguei.

Para evitar problemas, vou direto para a cozinha. É isso, só preciso comer e ir para o meu quarto, mais nada. Só isso.

Espio as panelas uma por uma. Nada. Nada. Mais nada. E um pouco mais de nada. Toda a comida “magicamente” desapareceu. “Não tem problema” tento me convencer. Sei muito bem que isso foi proposital. Mas eu sobrevivo. É só eu abrir a geladeira e...

— Essa comida não é sua – mamãe surge no batente da porta. – Essa é a comida que eu fiz para a minha filha.

Dessa vez, o espinho que me atira entra funda na pele, perfurando meus sentimentos. Mas ainda não caio.

— Só estava pegando qualquer coisa para comer e...

— Nada disso é seu. Já não basta você vir dormir aqui, você ainda quer mendigar comida de graça? Não acha que isso já é demais? Não suo todo dia na padaria para alimentar criaturas como você! E já tem ajuda demais não acha? Você já tem salário e ainda vive às custas do MEU pai! Muito descarada você, não? Você só come nessa casa se for com o seu dinheiro, não quero ninguém roubando as coisas da minha filha!

“EU TAMBÉM SOU SUA FILHA!” penso, mas não grito.

O melhor que faço é sair dessa cozinha. O limite humano é oito semanas sem comer, eu consigo aguentar um pouquinho.

Sinto náuseas e vejo tudo girar, mas consigo superar. No entanto, tudo o que ela disse vai e volta a minha mente. Como marteladas no meu crânio. Quebrando cada pedacinho de mim sem me matar.

Escondo-me atrás da porta do meu quarto. Jurei que não iria chorar mais e aqui estou. Sou ridícula. Pensei que aguentaria, que não faria a menor diferença, mas sou fraca, muito fraca. A prova disso é que assim que Isadora abre a porta, eu caio no chão.

Preparo-me para mais um sermão...

— Babaca.

Ela deixa a palavra ressoar no ar antes de continuar.

— Como você pôde fazer isso com o papai?! Quer saber de uma coisa? Eu não ligo para todos esses seus problemas ou essas tretas que você teve com os nossos pais há uns anos atrás. Eu não odeio você, eu odeio o que você fez. Não importa quantas diferenças vocês tivessem, você não podia ter deixado o papai desse jeito. Ele se arrependeu muito. Todos os dias no hospital ele chamava o seu nome e implorava para que você voltasse. Sabe o quanto doía quando você respondia que ele não era seu pai? Você não liga! Se ligasse, não teria feito essas coisas! Eu já disse, mesmo naquela época, eu nunca odiei você. Sempre achei errado o que o papai e a mamãe estavam fazendo, mas eu não tinha muito poder. No entanto, nenhuma dessas brigas importava quando papai estava chorando por você em seu leito. Nunca quis falar isso, mas odeio você. Não consigo entender um ser humano que despreza tanto pai a ponto de desejar sua morte.

Mesmo que ela tivesse me dado tempo, não conseguiria responder. A porta se fecha com um estrondo. Dói demais ouvir tudo isso, principalmente dela.

“O que você está fazendo, Tellinha”

Por que tudo isso tinha que mudar?! Porque não poderíamos continuar aquelas garotas da praia para sempre?! Eu não quero ouvir essas coisas dela...

Não consigo acreditar no exagero da minha mãe, mas as palavras pensadas e repensadas de Isadora... Elas são todas verdade. Eu fiz isso tudo, eu causei essa mágoa nela. Eu, eu, eu, eu, eu. Tudo minha culpa, minha máxima culpa.

Como posso ser a vilã da minha própria história?

EU NÃO QUERIA FAZER NADA DISSO! NÃO FOI A MINHA INTENÇÃO! EU NÃO QUERO MAIS MACHUCAR OS OUTROS! EU SÓ QUERIA... EU SÓ QUERIA NÃO TER NASCIDO!

Em prantos, instintivamente ligo para Bia:

— Stella! O que houve? – Ouço sua voz preocupada do outro lado da linha.

— POR FAVOR, SÓ ME TIRA DAQUI! EU NÃO AGUENTO MAIS! – Minhas palavras se embolam tanto com o choro que quase não me entendo.

Essa viagem vai ser ótima: nem a primeira noite eu aguentei nessa casa.

Saio às ruas em busca da casa da Bia e logo me encontro debaixo dos cobertores que ela pôs para mim. Sei que amanhã vou ter muito para me desculpar e explicar, mas agora só me concentro no calor aconchegante de sua presença, me embalando no melhor dos sonhos enquanto vivo o pior dos pesadelos.


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Notas finais do capítulo

Oi!
Atendendo a (vários) pedidos os próximos dois capítulos são da Sam! Yay! E com participação especial de alguém do Bangtan!
#SamIsBack



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