Doce Outono escrita por Kaline Bogard


Capítulo 5
Capítulo 05


Notas iniciais do capítulo

Quem é vivo sempre a parece

8D



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Doce Outono

Kaline Bogard

 

Capítulo 05

Taiga abriu os olhos alguns segundos antes de o celular despertar. Estava tão acostumado com a rotina que podia fazê-lo a tempo de evitar a música de soar. Habito que adquirira recentemente, porque tinha que ter cuidado na rua. Não queria que suas coisas acabassem roubadas.

Perdeu algum tempo admirando o teto baixo de seu novo quarto. A sensação de despertar em um lugar seguro, depois de uma noite de sono em que podia, realmente, adormecer sem medo... Não pensou que teria tal sensação tão cedo.

Sua situação era complicada. Sempre agira com orgulho, e tomara decisões que permitissem viver de cabeça erguida. E sua personalidade tão bravia se tornara o estopim da briga com o pai. O homem queria que se tornasse algo que não era.

Taiga jamais trairia seus princípios. E a postura firme lhe custara a casa em que vivia e o apoio dos pais. Sabia que sua mãe sofria muito com as dificuldades que passava, mas não ousava se intrometer em prol do filho, sendo mulher de rígida criação tradicional e extremamente submissa ao marido.

Apesar de tudo não a julgava. Nem nunca recuara diante de nenhum desafio. Se passar um tempo sem abrigo certo era o preço para manter a dignidade, então o pagaria sem remorso.

Tal curta divagação se passou em poucos segundos, tempo suficiente para espantar o resto da letargia e levantar-se. Era silencioso como um gato, por isso Daiki sequer se moveu; todo embolado nos lençóis.

Como era a segunda noite que pernoitava na quitinete, Taiga já tinha uma noção de horários, distância, rotas. Sabia que podia passar pelo banheiro, requentar o que sobrara da janta para um improvisado café da manhã e sair da casa com tranqüilidade.

E foi o que fez.

Nem ele acreditou que conseguiu fazer tudo sem acordar Daiki! Aquele cara dormia mais pesado do que uma pedra! Mesmo Taiga, em seu sono mais exausto, sentia quando havia movimentação na casa. Os dias que Alex passara no apartamento, por exemplo, não que a mulher fosse um poço de discrição, mas mesmo assim: se ela andava pelo apartamento com o surippa, Taiga acabava despertando, movido por um sexto sentido. Já Aomine... Pelo jeito o rapaz não dormia! Entrava em coma noturno. Hibernava. Desmaiava!

Não pôde deixar de achar graça naquilo. Sabia que ele deixara de treinar no Colegial. Mas sempre pensara que movido apenas pela grande arrogância em se achar invencível. Descobria agora, pouco a pouco, que Aomine era realmente um grande folgado.

Usou a própria chave para abrir a porta e, quase sem poder evitar, se viu sussurrando:

— Itekimasu... — a sensação de conforto voltou a assolá-lo, ainda que não recebesse uma resposta.

D&T

A quitinete ficava próxima à faculdade em que estudava, mas longe do restaurante. Fato compensado pela proximidade à linha Tozai do metrô. Taiga usaria essa rota para chegar à aula facilmente. Depois usaria essa mesma linha, com baldeação na Marunouchi e estaria no serviço em questão de meia hora. Para voltar pra casa, faria o trajeto com troca de trens em pouco mais de uma hora.

Um ganho impressionante de tempo.

Quando chegou ao prédio da faculdade, foi direto para a área do genkan comunitário. O armário individual dos alunos era simbólico, apenas para guardar o surippa. Mas espremera algumas roupas ali também. A maior parte delas estava no armário do clube de basquete.  Passaria por lá depois, para pegar mais algumas peças.

Não estava muito convencido de que o arranjo daria certo. Se fosse bem sincero consigo mesmo, admitiria que não sabia bem porque aceitara a oferta do outro. Nunca foram amigos ou próximos. Na verdade era bem o oposto: rivais, competitivos, infantis! Não tinha uma imagem de Aomine em que ele ofereceria a mão para alguém.

Em contrapartida, também não se imaginava aceitando ajuda de ninguém. Odiava olhares complacentes e palavras recheadas de pena. Por isso guardava sua condição apenas para si.  Não que tivesse vergonha ou algo assim, mesmo que morasse na rua, ainda era digno e se via no direito de andar de cabeça erguida.

O que incomodava era que agissem como se fosse um coitado, apenas por estar provisoriamente sem residência fixa. Talvez por isso não contara para ninguém dos velhos tempos. Além de ter perdido contato com a maioria, claro.

O amigo mais próximo que tinha era Kuroko, e ainda assim, a última vez que tinham saído para uma confraternização fôra antes da briga com o pai. A vida adulta demandava muito tempo, e olha que na época ainda nem trabalhava!

Os dias iam mais corridos do que nunca. E Taiga sabia que a tendência era piorar. Quando entrasse para a academia dos bombeiros as responsabilidades triplicariam.

Felizmente, a semana oficial de provas já passara, por isso foi tranquilo assistir as aulas e fazer algumas anotações. Pela primeira vez em muito tempo... tudo estava mais... relaxado. Ou o termo não fosse o certo. Não sabia explicar.

Sentia-se com a guarda mais baixa. E sequer se dera conta, até então, do quanto estivera na defensiva. Notava essa diferença hoje, pois até a noite anterior não acreditara que o arranjo com Aomine era a sério.

Aomine. Que bela surpresa lhe saia! O rapaz mostrava um lado que sequer imaginaria que ele tivesse. Havia certa maturidade em seus atos. Mais do que uma oferta de paz. E o melhor: em momento algum o olhara ou tratara como se fosse um pobre coitado.

Ao saber da condição de Taiga, seu choque fôra perceptível. De um jeito até pueril, como o choque de uma criança que descobre que Papai Noel não existe. Ali Aomine se dera conta de que a vida real pode ser bem cruel com as pessoas, não importa o quão legais, esforçadas ou honestas elas são. Algumas questões independem de caráter ou força de vontade. A vida acerta golpes que nem sempre estamos prontos para receber.

Ele viu alguém que conhecia passando por maus bocados. E Taiga esperou receber pilheria ou alguma piadinha. A imagem que construíra de Aomine permitia isso: julgara o rapaz como alguém relapso, imaturo e arrogante. A fórmula do perfeito filhinho de papai.

Contudo, a insistência em ajudar revelou mais do que Taiga podia esperar. O ex-rival se importava mesmo. Queria ajudar de verdade. Sem nenhum impulso oculto de ser sacana ou maldoso. Foi o gesto mais maduro que Taiga recebeu de alguém, e veio da pessoa que menos esperava.

Se Aomine podia agir de forma tão adulta, Taiga sentiu-se tocado. Ali começava a se derreter a barreira invisível que o protegia e que sequer se dera conta. Deu-se ao luxo de ceder e acatar a ajuda, aceitar a mão que lhe era estendida e não vinha envolta em nenhum resquício de simples misericórdia.

Tantos pensamentos tornaram sua manhã uma das mais melancólicas dos últimos tempos. Quando deu por si, já era hora do almoço, momento que partilhava na lanchonete do campus com alguns amigos do clube de basquete, pois em seguida rumavam para a sala de atividades.  Os Jogos Universitários se aproximavam e o capitão do time adorava discutir estratégias antes de efetivamente começar algum treino. Fato que Taiga aprovava, pois era uma folga para poder respirar. Quem diria, alguém sempre tão viciado em basquete ficava feliz em apenas falar sobre isso ao invés de pôr em pratica.

Também aproveitou o momento para baldear mais algumas peças de roupa e o par de tênis sobressalente. Mais uma viagem e estaria tudo devidamente guardado na quitinete.

E, após finalizar o treino produtivo com uma rápida chuveirada, subiu no metrô da linha Marunouchi e rumou para o arubaito.

Então começava uma rotina totalmente diferente. Árdua e corrida, mas que, de alguma forma, sempre o deixava de ânimo elevado. Trabalhava no restaurante Koban, que atendia principalmente a classe assalariada com pratos rápidos e quentes. Como parte do arubaito, podia se considerar um faz-tudo, a priori ajudando com a louça suja na cozinha. Embora, eventualmente, prestasse auxilio em outras áreas.

Chegava no local quase ao mesmo tempo que Meiko san, outra trabalhadora arubaito, responsável pela faxina. A mulher, uma senhora de meia idade, dificilmente faltava ao trabalho. Taiga sabia que ela tinha dois desses empregos. Sua história era como tantas outras: desistira no meio do Colegial para cuidar dos dois irmãos menores, porque a mãe falecera em um acidente de carro e não havia outro familiar que pudesse cuidar deles.

Enquanto Taiga ia ajeitar suas coisas, trocou um cumprimento com Meiko, que já varria o chão.  Entrou na cozinha e Kumo san veio de encontro a ele, todo apressado.

— Kagami kun, você precisa ficar no lugar de Ryuu hoje. Ele não veio outra vez! — o velho senhor foi dizendo, ou melhor, quase berrando. Ele tinha um problema auditivo, que nada tinha a ver com seus mais de sessenta anos. Na verdade, era um problema de infância que prejudicara seus estudos no colegial e o impedira de cursar a faculdade, despreparada para receber deficientes há quarenta anos atrás. Mesmo assim, o homem se aprimorara autodidata e tornara-se gerente e contador do pequeno restaurante, cuidando de toda a parte administrativa e financeira. O velho homem alardeava essa vitória a quem quisesse ouvir (e a quem não quisesse também...). Sabia da condição de Taiga, como todos no restaurante, mas fôra um dos que não ofereceram ajuda. Kumo acreditava que cada um deveria encontrar um jeito de superar as adversidades. Esse era o orgulho de um homem.

— Deixa comigo! — respondeu quase irradiando de tanta felicidade. Ryuu era o cozinheiro do restaurante. Era um homem inconstante, que faltava ao serviço pelo menos uma vez na semana. Desde que a dona do estabelecimento descobrira que era um ótimo cozinheiro, passara a quebrar o galho nessas ocasiões, pois antes era um sufoco.

Parando pra pensar, o caseiro restaurante Koban parecia um abrigo de pessoas problemáticas, que mal davam conta das dificuldades do dia a dia. Enquanto a tendência era escolher funcionários qualificados e comprometidos, Ayame san se mostrava disposta a acolher todo o tipo, desde um cozinheiro faltoso até o garçom com problema de bebidas, a uma faxineira que mal se agüentava para dar conta dos arubaito, um faz-tudo até então sem teto...

Havia uma lenda entre os poucos empregados do Koban, sussurrada a meia-boca e ainda não confirmada. Seus colegas diziam que a dona, uma mulher respeitosa de mais de setenta anos, enfrentara em sua infância terríveis momentos na Segunda Guerra Mundial. Horrores que, mesmo sendo uma criança de cinco ou seis anos, ficaram marcados em sua vida de tal forma que ela jurara ajudar quem precisasse de ajuda do jeito que lhe fosse possível.

Verdade ou não, Taiga aprendera um bocado com aquelas pessoas. A cada dia via a luta deles, diferentes da sua; mas nem por isso menor ou mais fácil. Compreendia aos poucos que aquele era o mundo adulto, onde nem todos os sonhos infantis se realizam. Onde os planos traçados nem sempre se concretizam como esperamos, mas isso não é barreira ou desculpa para desistir de tentar. De lutar.

Seus colegas de trabalho lhe davam forças para não tripudiar e ceder às exigências do pai.  Porque o homem exigia que se tornasse algo que não era, que agisse contra a própria natureza. E ele escolhera ser autentico consigo mesmo e com o mundo a mudar em troca de um pouco de conforto. Taiga era intenso em tudo o que fazia, era autentico. E, justo por ser assim, jamais se tornaria um mau caráter.

Enquanto amarrava um lenço nos cabelos e ouvia o garçom berrar mais um dos pedidos, ele sentiu-se bem consigo mesmo. Finalmente sua decisão estava começando a valer a pena...

D&T

E o resto da tarde voou, assim como a noite. Havia picos com horários mais lotados do que outros, mas o serviço nunca parava. Quando o Ryuu faltava, Taiga se desdobrava cozinhando e dando conta das panelas. Acabava tendo que ficar até o horário de fechar, diferente dos outros dias, quando escapava um pouco mais cedo.

Mas valia a pena, pois acabava ganhando um pouco a mais por aquele dia no fim do mês e isso ajudava muito no orçamento.

Assim que tomou o metrô, deu-se conta de algo que há tempo não experimentava: a sensação agradável de ter uma casa para onde voltar.  Deu-se conta do quanto lhe fizera falta, ainda que um lugar pequeno e longe. Teve a impressão de avançar um pouco e sair de um ponto em que estivera empacado.

Devia isso à oferta inusitada que recebera de Aomine. Ainda que o rapaz deixasse claro que não queria gratidão, teria aquela divida para o resto da vida.

O prédio estava silencioso, assim como a rua em derredor. O lugar não era um dos bairros mais movimentados, mas tinha lá seu charme. Imaginou que o companheiro de quitinete estaria dormindo, todavia foi impossível evitar a palavrinha de lhe escapar em um tom baixo.

— Tadaima.

Para surpresa de Taiga, a cabeça de Aomine despontou no corredor. Ele parecia esperar a sua volta com certa... ansiedade.

— Okaeri, Bakagami! Okaeri, rango gostoso do caralho! — finalizou a exclamação olhando fixo para a grande sacola que Taiga trazia nas mãos. Uma vez que experimentara outra vez a delícia de ter um jantar decente, dificilmente voltaria a sobreviver de melão pão e chá Oolong.  Tinha seu próprio cozinheiro particular!

Taiga apenas girou os olhos, tava explicada a animação.

— Aho — respondeu apenas por impertinência. Chegar em casa e ser recebido com uma gracinha sem noção era muito melhor do que não ter pra onde voltar...


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Notas finais do capítulo

Até um... dia... mês... ano... desses '-'

Mentira, né? Até século que vem!!

HA!



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