Mente Gélida escrita por MahriaRP


Capítulo 1
Apenas nós




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O cheiro começou a tornar o ambiente mais desagradável do que normalmente está. Eu podia sentir cada célula da pessoa ao meu lado sendo consumida por larvas e bactérias, iniciando um processo de transformação em sua aparência e odor. Até conseguia lidar com seu aspecto pútrido, mas não estava fácil suportar o aroma envolvido na etapa de um corpo se decompondo. Preferia estar do lado de fora, congelando no lago, mas não poderia sair porque estava atada na cama em frente ao cadáver.

Já havia perdido a noção de quanto tempo fora prendida, mas a julgar pelo estágio de decomposição do corpo daquele homem poderiam ter se passado alguns meses, algo próximo de três. Desde que cheguei nessa cabana construída com desproporcionais toras de madeira não tive contato com pessoas no exterior. Que tipo de mente doente prende uma pessoa desmaiada e, a cada três dias em média, leva um copo de água e um prato de comida fria e os deixa em cima de mim? O pior de tudo era ver que sempre que encontrava tais coisas, uma parte do cadáver sumia. Um dedo, um pedaço da orelha, fios de cabelo e seus olhos. Cada vez mais seu corpo era reduzido, não apenas pelo sagrado ritual da natureza em que sua vida é consumida para o nada. Mas eu não me preocupava com isso.

Mesmo que meu único companheiro estivesse indo embora aos poucos, eu recebi alguém pra conversar. Sempre que o oferecia comida, se calava, talvez por não gostar de comer com aquele cheiro desagradável. Então eu me encurvava e bebia a água, derrubando boa parte em meus lençóis, dando um aspecto de xixi. Em seguida comia o que quer estivesse no prato, como um cachorro come sua ração. Ele não se importava com isso, não me julgava, não zombava de minha incapacidade e sempre o agradecia por isso.

- Como está hoje? – Fiquei preocupada ao notar que uma parte de sua bochecha esquerda estava descolando – Parece estar mais concentrado nas últimas horas.

- Sabe como é, estou pensando em uma estratégia para nos tirar daqui. Mas já não tenho mais ideias.

Estranhei seu pessimismo repentino.

- MAS NÓS NÃO PRECISAMOS SAIR DAQUI – ri enquanto chacoalhava as pernas – NÓS FAZEMOS COMPANHIA UM AO OUTRO.

Olhei rapidamente ao meu redor para ver se algo havia mudado e realmente algo estava estranho. Meu amigo encarava, de certa forma, um corpo jogado no chão. Esse ainda estava novo e era extremamente belo, com cabelos negros bagunçados na altura do ombro e de alta estatura. Não dava pra ver claramente suas expressões por causa do sangue que cobria seu rosto, grudando sua longa franja. Ele estava com ciúmes, obviamente. Como poderia aceitar que eu fizesse um novo amigo nessas condições, além de ser bem mais jovem?

- Não se preocupe, jamais te trocarei por ele.

Ele me ignorou mais uma vez e eu não poderia aceitar isso. Queria dar um tapa em sua cara para ver se acordava e percebesse que ele era único pra mim. Mesmo com seus defeitos, foi ele quem ficou ao meu lado por todo esse tempo, sem se importar com o que realmente acontecia.

- Já que você não quer falar comigo, irei dormir. Deixe o novato no canto dele e amanhã poderemos bolar uma estratégia juntos. - Ainda sem resposta, fechei os olhos para rapidamente entrar em um sono profundo.

Mais uma vez tive o estranho sonho no qual me libertava, tirava um pedaço de Clark e levava o corpo desconhecido para o lago.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigada por terem lido este conto. Críticas sempre são bem-vindas.