Night Visions escrita por Isaque Arêas


Capítulo 4
It's Time


Notas iniciais do capítulo

Oi gente! Desculpem o atraso na história. Tive uma semana agitada de provas, mas to de volta! Boa leitura!
—-------------------------------
Esse capítulo foi baseado em "It's Time - Imagine Dragons": https://www.youtube.com/watch?v=sENM2wA_FTg



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/646833/chapter/4

A luz.

Tão intensa.

Que luz é essa?

Cubro os olhos com o antebraço e percebo que há um cabo preso a ele. Estou numa sala branca deitado numa cama. Ao meu lado direito uma poltrona e a armação que segurava o soro conectado ao meu braço. Hospital. Acredito que era esse o nome do lugar... Não! Não podem me prender aqui. A perturbação volta à minha mente. Aqueles cabos presos ao meu braço, a luz forte, o cheiro de químicos, tudo me lembra o laboratório e minha mente se fecha. O espaço outrora branco se enegrece. Não consegui me lembrar de mais nada existente naquela sala, apenas precisava sair.

Me levantei num pulo temendo que fosse explodir e visualizei uma janela. Toda a minha visão se focou naquela janela. A sala agora era turva. Sem pensar demais corri em sua direção arrancando o soro dos meus braços. Atravessei a janela quebrando o vidro. Quando estava prestes a bater contra o chão, decolei. Lá estava eu no ar novamente, tudo iria bem, até eu sentir a dor no meu peito. Uma dor tão intensa que me fez pousar. Aterrissei no que parecia ser um beco atrás do prédio.

Andei em direção a uma rua. O sol da manhã não me deixava enxergar com perfeição. Prossegui sem notar os carros que passavam e freavam bruscamente na via ao perceber minha presença. Quando meus olhos finalmente se adaptaram à luz havia cerca de vinte a trinta pessoas me olhando e mais um número indefinido dentro de carros. Todos me olhando. Todos aqueles olhos. Eu podia sentir seus corações palpitando. O barulho estava ficando ensurdecedor. Minha respiração ficou ofegante e só consegui voltar a mim quando escutei uma voz:

— Ei amigo, fica calmo aí...

Olhei à minha direita e havia um homem com roupas azuis e um chapéu engraçado. Usava botas pretas e parecia confiável. Ele se aproximava devagar com as mãos à frente me induzindo a manter a calma. Os olhos continuavam me encarando e o número de pessoas triplicava. Eu olhava em todas as direções assustado. Tudo aquilo, todas as pessoas, os prédios à minha volta, o chão cinzento, os carros, até mesmo a luz do sol era diferente, mas tudo estava na minha mente, apenas não fazia sentido. Era como se fossem sonhos.

— Onde... Eu... Estou? — Disse com alguma dificuldade.

— Seattle... Pode confiar em mim, eu sou policial, se você vier comigo, logo vamos achar a sua família. Você estava no hospital? Você... — Disse ele se aproximando mais e olhando para o beco de onde vim — Você pulou pela janela?

— Eu... Estava...

Então, o policial tocou meu braço. Eu rapidamente o afastei. Aquele gesto me irritara mais do que qualquer outra coisa, mais do que a tempestade na floresta, mais do que a ursa que me atacou. O ruído à minha volta se intensificou. Já não ouvia mais o que o policial dizia, mas o vi se afastar. Meu rosto tomou uma expressão sombria. Olhei para os rostos da plateia à minha volta e continuavam espantados. Me controlei para não lançar um jato de energia no policial que me tocou, eu tive medo... Eu temia cada uma daquelas pessoas, mesmo que elas não soubessem. Temia tanto que não podia cogitar um deles sendo bondoso comigo e meu único jeito de lidar com o medo sempre fora o confronto, mas naquele momento também não podia mostrar meu poder. Tinha medo de que ao descobrissem me atacassem, me devolvessem ao líder do laboratório para que eu fosse preso novamente. Eu estava de mãos atadas.

— Não... Não me toque... Nunca mais... — Disse ofegante ao policial.

— Tudo bem, tudo bem... Vem para cá. Vamos te levar para a delegacia e logo você vai estar tranquilo. Pode vir.

Era agora. Confiar ou não? Eles podiam me levar de volta para o laboratório ou poderiam realmente achar alguém que soubesse quem eu era. Se fosse com eles poderia perder tudo que conquistei, mas saberia o segredo por trás de quem eu era, algo que eu passei tanto tempo negando; tanto tempo me iludindo dizendo que não queria saber. E ali, naquele momento o desejo de descobrir parecia tão vivo. A pressão me corroia por dentro. Precisava decidir. Agora ou nunca? “Não seja tão confiante em si mesmo” me ensinou o rio e também “às vezes é necessário ceder aos humanos” me lembrei de mais essa última lição e em um momento súbito de loucura – ou lucidez – eu decidi entrar no carro da polícia.

Me sentei no banco de couro traseiro. O veículo cheirava a pinheiros, mas de uma forma mais artificial. Eu sentira bem o cheiro de pinheiros para saber. O policial entrou no carro e o ligou. O automóvel fez um som e chacoalhou. Eu tomei um susto e olhei em volta achando ter acontecido algo.

— Ele está velho, mas isso já é coisa para reclamar com o governo. — disse o policial rindo — Qual o seu nome?

Nome. Nome... Não, não fazia a menor ideia do que ele queria dizer. Na verdade sabia que era algo que me identificaria, mas não me lembrava qual era. Fiquei em silêncio diante da falta de resposta. O policial percebera que eu não sabia e continuou a conversa enquanto virava a esquina.

— Pode me chamar de Wilson. Me mandaram para o hospital agora justamente por causa de você. Acredita em coincidências?

— Sim... — respondi receoso.

— Mas então, você tem algum parente pra quem a gente possa ligar?

Aquela pergunta não fez o menor sentido na minha mente, então respondi mecanicamente.

— Não.

— Certo... De onde você veio?

—Por que você quer saber? — respondi sem me conter. Era muita informação.

— Me desculpa, é que eu posso ajudar a achar alguém que te conhece... Se você me disser de onde veio eu posso tentar entrar em contato com alguém de lá.

— Eu... Eu vim da floresta.

O policial permaneceu em silêncio. Havíamos chegado à delegacia também e quando desci do carro ele já não parecia mais tão amigável assim. Seu semblante não estava completamente fechado, mas parecia fúnebre, como se dizer que eu vim da floresta o houvesse afetado muito. Entramos pela porta da frente e ali nos separamos. Ele foi para dentro de uma sala e eu fiquei sentado na sala de espera onde todos me olhavam novamente.

***

A delegacia era mais escura que o hospital e cheirava a mofo. As pessoas me olhavam mal encaradas, parecia que eu havia feito algo de errado. As paredes eram úmidas e haviam muitos papéis colados nelas com rostos de várias pessoas. Eu olhava para todos os lados tentando entender o que acontecia. De dentro de uma das salas, saiu uma mulher alta, tinha a pele escura e os cabelos cacheados bem soltos. Era belíssima e me chamou para a sala.

Eu tentava de toda forma seguir as regras humanas, pois tinha medo que me aprisionassem ou matassem. Decidi entrar. Ela bateu a porta da sala. Me sentei numa poltrona que estava de frente para a poltrona que viria a ser a dela. A mulher então passou por trás da minha poltrona e se sentou. Ela tinha os olhos caídos e penetrantes e a voz era grave, mas muito atenciosa.

— Você sabe qual é o seu nome?

— Não — Aquela pergunta já havia sido respondida antes, por que me faziam de novo a mesma pergunta?

— Bem... E de onde você veio?

— Da floresta — Será que as pessoas não se comunicam mais entre si?

— Entendi... Senhor — Disse ela pegando uma pasta na mesa de canto — Dresch...

Dresch... Era um nome familiar, mas antes que eu pensasse mais sobre isso a mulher continuou.

— Senhor Dresch, acredito que não sabe por que está aqui. Meu nome é Barbara Williams, sou psicóloga da polícia e eles me chamam quando uma pessoa passa por um trauma muito grande. — Como ela sabia disso? — O senhor esteve desaparecido por cerca de três anos. O senhor sabe me dizer onde o senhor esteve?

Perdi o momento de responder. Estava pensando no que ela falara.

— Três.

— Sim senhor Dresch. Três anos. O senhor gostaria de falar sobre isso?

— Na floresta.

— O senhor esteve na floresta por três anos?

— Não sei.

— Pode confiar em mim senhor Dresch, eu...

— O que é Dresch?

— Seu sobrenome. Segundo o exame de sangue do hospital e sua aparência física, as informações batem com o boletim de ocorrência feito à época do desaparecido David Dresch. — A mulher então me mostrou o papel que estava na pasta. Havia um texto longo escrito e a foto de um jovem.

Fomos interrompidos por um policial que bateu à porta. Ele chamou Barbara e os dois cochicharam algo. Eles não sabiam que eu podia ouvi-los. Falavam sobre alguém que havia chegado. A mulher pediu que eu fosse para a recepção e de repente ouço uma voz que entrava pela porta.

— Não pode... Ah meu Deus...

Olhei para a figura que lançara a voz. Era uma jovem, mais baixa que eu. Tinha os cabelos alaranjados presos com um nó e o rosto coberto por sardas. Estava vestindo uma blusa abotoada xadrez vermelha e preta. Usava calças jeans e botas de couro. O rosto estava vermelho com o choro.

— Meu Deus... David... É você mesmo?! — Disse ela chorando e olhando na minha direção.

Olhei para os lados tentando identificar com quem ela estava falando, mas apenas eu me encontrava na direção em que ela olhava. Todos os policiais estavam com os olhos avermelhados e lacrimejando. Voltei a visão para a garota que agora se aproximava velozmente, no que de súbito me afastei por instinto pronto para contra atacar.

— David, sou eu... Você... Você lembra de mim?

Deveria? Não fazia ideia de quem ela era, mas seu sorriso me parecia sincero. Ela parecia dizer a verdade.

— É a Samantha, David. Sam... Lembra?

Sam... O nome... Era familiar. Assim como a cidade inteira, o nome e o rosto da garota pareciam um déjà vu.

— Não... Não lembro... — Disse entristecido, pois ela parecia bastante esperançosa e eu sentia que minha resposta a deixaria destruída.

—Ah... Tudo bem... Tudo bem — Disse Sam secando o rosto e se recompondo. Abanou os olhos com as mãos — Bem, eu estive te procurando — Disse ela calmamente — Você quer dar uma volta comigo? Eu vou te levar pra casa... Vai ficar tudo bem...

O sorriso dela era arrebatador. A familiaridade do rosto também me fez dizer sim. Em algum ponto distante da minha mente eu sabia que a conhecia. Quando concordei o rosto dela se iluminou ainda mais.

— Toma, eu trouxe pra você. Enquanto você veste isso eu vou assinar umas coisas e a gente já vai. — Ela disse me entregando uma sacola.

Ela se virou, foi até o balcão de informações e assinou alguns papéis. Um dos policiais me levou até o banheiro para que eu pudesse me trocar. Ela trouxera uma blusa abotoada azul. Demorei algum tempo para entender como passava os botões pelas casas, mas consegui. A cueca e a calça foram mais fáceis de vestir, até chegar a parte das botas. Haviam duas botas na sacola e eu não queria de jeito algum privar meus pés de sentir o chão. Um relance passou pela minha mente e nele todos à minha volta trajavam calçados. Decidi que usaria. Talvez fosse melhor seguir as ordens. Vesti as meias e calcei a bota.

Saí do banheiro devidamente vestido, mas com as botas desamarradas — confesso que tentei, mas não lembrava de jeito algum — um policial decidiu me ajudar com isso. Quando estávamos saindo da delegacia, o policial que me trouxe veio a mim com os olhos cheios de lágrimas.

— Eu te desejo muita felicidade daqui pra frente — disse ele começando uma ovação. Todos na delegacia bateram palmas juntamente. Lágrimas escorriam por todos os lados. Eu não fazia ideia do que estava acontecendo, mas achava maravilhoso o fato de meu pensamento estar errado e nenhum deles tentar me matar.

***

Sam e eu paramos numa lanchonete para comer. O lugar tinha cheiro de café, mas era levemente adocicado. O piso era xadrez preto e branco. Os bancos de couro vermelho e balcões e mesas platinados. As garçonetes usavam vestidos rosados e aventais brancos e havia bastante gente no lugar, o que deixava o ambiente com aquele burburinho de conversas. Nas paredes haviam quadros com pessoas que eu não conhecia e janelas, nas janelas persianas. Nos sentamos numa mesa mais ao fundo e ficamos nos olhando por alguns minutos que pareciam uma eternidade. Eu tentava desviar o olhar dos olhos dela, mas ela parecia me admirar. Ela me olhava como eu olhava para as amoras em um dia de fome intensa. Ela estava prestes a me devorar. Acredito que Sam percebeu meu incômodo e acordou de seu transe.

— Me desculpa... É que... Uau! Eu não consigo acreditar! — Ela levou as mãos ao rosto — É você mesmo... — seu rosto adquiriu uma feição doce.

— Quem... Quem é você? — Após a minha pergunta o rosto da menina mudou a expressão. Não ficou triste, mas percebi que ela se decepcionou um pouco, mas se esforçava para passar a pose.

— Bem, talvez você se lembre — ela disse enquanto abria a bolsa — se eu te mostrar fotos...

A garota pegou três fotografias de dentro da bolsa. A primeira mostrava um adolescente de cabelos castanhos claros e olhos azulados com uma camisa azul parecida com a minha. Ele estava com uma cara engraçada na imagem.

— Esse... Esse era você antes de tudo... Antes de você desaparecer... Na verdade foi uma semana antes... — pude sentir seu tom de voz suave tentando me acalmar. Eu não respondi nada.

A segunda foto mostrava o mesmo adolescente e uma garota ruiva pescando. Ambos com feições engraçadas.

— Esses somos nós dois... Nós adorávamos pescar no acampamento do Tio Ed e também adorávamos fazer caretas. — A menina disse rindo.

A última foto mostrava o mesmo menino e a mesma menina abraçados e sorrindo no meio de um campo. Os dois pareciam contentes.

— Bem... É bom ver que você está bem... Depois de tanto tempo — completou Sam — Pode confiar em mim, eu sempre fui sua amiga e eu não parei de te procurar desde... — Ela parou por um momento e levantou o rosto, parecia que iria chorar de novo — Sempre... Desde o dia em que você sumiu. Eu, meu Deus, você está aqui na minha frente! Um pouco mais... Peludo — ela disse apontando para o meu cabelo e barba e sorrindo — mas é você!

— Eu não reconheço você... Me desculpe...

— Tudo bem David, a psicóloga disse que no início seria assim, mas quem sabe com o tempo isso não melhore?

— Barbara.

— Sim, Barbara. Ela vai te acompanhar duas vezes na semana pelo menos no início de tudo.

Muita informação.

— Acompanhar? Como acompanhar? Ela vai me perseguir? — gritei enquanto me levantava.

— Não! Não! Calma, não... — Ao vê-la nervosa e perceber que as pessoas à nossa volta nos olhavam, voltei para o meu lugar — Acompanhar significa que ela vai cuidar de você... Junto comigo, pra saber se você está bem.

Tudo o que Samantha dizia eu aceitava. Todas as suas palavras tinham um efeito avassalador sobre mim. Tudo que ela falava soava como verdade, pelo menos dentre todas as pessoas que eu conhecera naquele dia, ela era a que mais parecia confiável. Continuamos a conversa enquanto comíamos. Ela pediu torta de frango e para mim pediu um muffin de blueberry com um Milk-shake de chocolate. Estava delicioso! Não havia provado aquele sabor há muito tempo. Na floresta não havia nada parecido com chocolate. Enquanto eu bebia Sam me fitava. Me olhava como a mãe ursa olhava seu filhote na floresta naquele outro dia. Como se seu objeto mais valioso houvesse voltado para seus braços.

— David. Você diz que não se reconhece não é? Nas fotos? Que tal se formos à outro lugar agora?

Sam se levantou e antes que eu pudesse responder já estava atrás dela. Ela deixou dinheiro na mesa e saímos porta afora. Pude apenas ouvir o sino do estabelecimento tocando ao fechar da porta.

***

A cidade era grande. Era cinzenta. Era magnífica e eu estava no meio dela. Andava pela rua admirando os prédios e as roupas das pessoas. Era tudo tão bonito. As luzes e placas. Os carros e aviões. Tudo era belíssimo. As pessoas que passavam por nós me encaravam como se eu não fosse humano e para algumas cheguei a rosnar para ver qual seria a reação. Eram pessoas que andavam depressa nas ruas e sempre com um aparelho nos ouvidos ou nas mãos. As mulheres carregavam sacos de papel e cheiravam à frutas. No demais era tudo novo à minha volta. Era tudo fascinante.

Chegamos a um lugar pequeno. Acima da vitrine havia um toldo listrado de vermelho e branco. Ao lado da porta uma pilastra listrada de azul, vermelho e branco. Ela girava. Suas listras desciam e subiam e se Sam não tivesse me feito entrar eu não teria parado de olhá-la. Do lado de dentro haviam alguns homens sentados com folhas de papel nas mãos. Haviam também três cadeiras acolchoadas pretas e mesinhas com espelhos à frente delas. Eu não sabia muito bem o que fazer, então permaneci parado.

— Earl! — gritou Sam para um homem negro ao fundo.

— Sam! Mas que surpresa menina! Quem é... Meu Deus...

— Earl... Aqui não...

— Mas é...

— Calma. Agora não...

O homem veio na minha direção e estendeu sua mão. Eu não soube bem o que fazer e continuei olhando para ele. Ele tinha olhos arregalados e as olheiras bem fortes. Usava uma boina e carregava uma barba branca cerrada. Era bem magro e parecia ser frágil.

— Bem... Vamos ter trabalho aqui não é? — Disse Earl olhando meus cabelos.

— O Earl corta cabelos... Talvez você se lembre mais do seu rosto ao olhar no espelho.

A minha aparência não me importava muito. Eu cheguei a ver meu reflexo no rio algumas vezes, mas para mim era indiferente. Quando Sam disse que iria tirar meu cabelo e barba eu prontamente atendi. Acredito que minha curiosidade por me ver sem os cabelos compridos e sem a barba enorme era maior do que meu apreço por ambos. O homem fez com que me sentasse em uma das cadeiras. As pessoas em volta me olhavam como se eu fosse um louco. Não que fosse alguma mentira. O velho pegou uma mecha e cortou. Outra mecha e cortou. Eu via todo o processo acontecendo no espelho e meu coração acelerava a cada corte. Era uma cena incrível.

Levaram apenas alguns minutos e Earl aparou o último fio de barba. A pessoa que estava no espelho parecia muito mais com o garoto da foto. Ele tinha os cabelos castanhos claros, olhos azuis, o rosto suave e queixo bem definido, maxilar um pouco quadrado, nariz comprido e um pouco grande admito. Aquele era eu. Eu fiquei um bom tempo me olhando e não parava de me admirar. Ouvi Samantha e Earl rindo atrás de mim. Era tudo tão fantástico... Mas aquele era eu? Ou esse era quem eu fui? Minha mente se perturbou. Eles estavam tentando me mudar. Me transformar em algo que eu não sou... Ou era esse quem eu sempre fora? Será? Dilema cruel. Me levantei da cadeira conturbado e saí batendo a porta com força.

Parei pra respirar do lado de fora. O ar não era como o da floresta, mas era suficiente. Samantha saiu logo depois.

— David o que...

— Não me chame assim.

— O que houve?

— Por que vocês não me deixam em paz?!

— David...

— Esse não sou eu! — Eu já gritava na rua — Eu não sou esse David!

— Esse é você... O verdadeiro você...

— Não! Eu sou da floresta, eu sou... Eu sou... Argh! — Urrei de dor. Meu peito ainda doía por causa do corte da ursa.

— Me desculpa, me desculpa... Eu não vou te chamar de David, prometo... Ai... Desculpa!

— Quem eu sou?! — Eu disse gritando para Samantha e algumas lágrimas escorreram do meu rosto.

— Dav... Calma...

Samantha correu para perto de mim e me abraçou. Aquilo foi tão repentino que eu não soube reagir. Eu não gostava que me tocassem. Me enchi de medo. Havia uma humana me tocando e eu não sabia o que fazer, mesmo que ela parecesse amigável e mostrasse ser gentil eu ainda não confiava totalmente nela.

— Você pode me dizer quem você é? — disse Sam ainda me abraçando.

— Eu não sei o que dizer... Quem eu sou hoje talvez não seja quem você espera. Eu estou cansado de tudo... — Agarrei as mãos dela e a afastei.

Sam era mais forte do que parecia. Quando a afastei pensei que fosse chorar novamente e na verdade era o que eu queria. Talvez se ela sofresse com aquilo se afastaria e assim eu não teria que lidar com tudo aquilo. A ideia de tê-la por perto estava me sufocando...

— Tudo bem.

E mais uma vez ela foi calma e paciente. Eu me sentei no meio fio e só conseguia olhar para baixo. Sam se sentou ao meu lado e parecia pensar no que dizer.

— Você não sabe quem é você. Eu não sei quem é você. Nenhum de nós sabe. Então foi isso que você quis me dizer... Quando disse que você estava cansado e tudo mais. Acho que agora é a hora de reconstruir do fundo do poço até o topo.

Eu a olhei como quem dizia “por favor, não faça isso”. Eu não queria decepcioná-la.

— E a sua vida? O que você faz? — perguntei para mudar o assunto.

— Eu estava terminando o mestrado agora. Antes de tudo acontecer... Mas acho que a academia fica pra outra hora. O que importa pra mim está bem na minha frente.

— Vai abandonar tudo isso?

— Eu acho que vai valer a pena. Na verdade ainda não estou trabalhando pra valer. E o paraíso que eu espero encontrar te ajudando não se compara ao inferno que eu passei sem você. — Ela disse olhando fundo nos meus olhos.

— Eu me sinto só.

— Eu estou aqui... Não faço ideia de como seja pra você, mas eu estou aqui e no que eu puder te ajudar eu vou.

— É que nada parece fazer sentido. Eu me lembro dessa cidade. Eu sei falar. Eu me lembro das letras ainda que demore a ler. Eu só não sei como... Como eu era antes, quem eu era, o que gostava de fazer... Eu queria me lembrar.

— É hora de começar não é?

— Começar o que?

— A se lembrar.

— E se eu nunca voltar a ser quem eu fui?

— Você não precisa ser quem você era — Essas palavras tiveram um impacto reconfortante sobre mim — Não é isso que eu quero. A minha pergunta foi: quem você é?

Eu pensei em deixá-la e voltar para a floresta naquele momento, mas aquela cidade avivava as minhas memórias. Eu não queria entristecer Samantha. Não queria deixar a cidade. Não queria sair e naquele momento vi que não haviam motivos para ir embora. Sam havia quebrado qualquer argumento que eu houvesse usado. A única razão que me faria voltar para a floresta seria o medo de enfrentar quem eu fui, o medo do passado, o medo de chocar a minha personalidade do passado com o homem que sou hoje, o medo das pessoas e de como elas reagiriam ao saber do meu poder. O medo era a única coisa que me faria voltar à minha liberdade que agora se parecia muito mais com uma prisão.

— Eu posso começar a mudar, eu posso me tornar maior e melhor do que hoje, mas quero que você entenda: Ainda que eu não saiba definir... — Eu disse enquanto Sam me olhava atentamente — Eu nunca vou mudar quem eu sou hoje.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigado por ter lido :)
Se quiser deixe um comentário!