Máscara escrita por Roderick Gabel


Capítulo 1
Máscara




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Ele estava sempre sorrindo. Mal chegara à escola e já fizera amizade com todos os alunos. Muito simpático e educado, cumprimentava a todos que via pelo caminho. Os olhos eram vívidos e transpareciam uma radiante luz interior. Aonde ele chegava, modificava o ambiente. É como se só a sua presença já fosse o suficiente para transformar choro em riso. Entretanto, eu não acredito que alguém é feliz todo o tempo. Aliás, suspeito que quando alguém sorri demais é porque tenta esconder uma profunda tristeza, mágoa ou dor. Eu não queria me envolver nisso, mas já estava incomodado o suficiente. Precisava cortar o barato daquele garoto.

– Ei, novato! – Gritei por ele.

Olhou em volta para ver quem o chamava. Encontrando o dono da voz, respondeu com a mesma cara de bobo da corte de sempre:

– Olá, veterano! Boa tarde! Posso ajudar em algo?

Francamente, aquele garoto já estava passando dos limites. Como poderia imaginar que alguém como eu, logo eu, precisaria da sua ajuda? Um garoto remelento, imberbe, que mal saíra da infância, isso que ele era! Eu, ao contrário, já era vivido. Não era velho, mas já vivenciara muita coisa e venci sozinho cada uma das dificuldades que enfrentei ao longo da minha curta existência.

Sorri sarcasticamente. Em seguida, fitei-o com uma expressão séria. Estava decidido a fazê-lo tirar a felicidade estampada em seu rosto.

– Para de sorrir. – Fui direto.

O garoto recuou. Os olhos, ávidos e cintilantes, me olharam confusos, como se não compreendesse o que eu havia dito.

– Perdão, o que disse? – Falou.

– Por acaso estou falando em outro idioma? – Disse com uma voz mais ríspida.

Como de costume, sorriu. Tive que me conter. Meus músculos se enrijeceram e senti o rubor encobrir o meu rosto. Ainda entre sorriso, respondeu:

– É que não faz sentido, digo, o que acabas de dizer.

Respirei fundo. Observei-o por alguns instantes. Não era possível que alguém fosse tão ingênuo assim. Lentamente, outros colegas foram se aproximando, atraídos pelo magnetismo que o “garoto alegria” emanava. Por ora, decidi encerrar o assunto, mas deixando-o de sobreaviso:

– Espero que da próxima vez que nos encontrarmos, esse sorriso não esteja nos seus lábios. – Sussurrei em seu ouvido.

Novamente a expressão confusa. Dei as costas e segui para a sala, as aulas seguintes já estavam prestes a se iniciar.

Ao final do turno, à tardinha, me dirigia à saída quando o encontrei novamente. Ele estava de pé bem no portão, com as mesmas feições irritantes no rosto. Todos os estudantes que por ali passavam lhe cumprimentavam, e ele, roteiristicamente, acenava e repetia “Até amanhã! Tenha uma ótima noite!”.

– Mas que droga, isso tem que parar! - Disse a mim mesmo.

Eu poderia ter saído pelo portão dos fundos, contudo, queria confrontá-lo, desta vez a sós. Esperei escondido atrás de uma coluna até que todos fossem embora. Quando o último aluno saiu, caminhei em direção ao portão principal.

– Ei, garoto! O que você ainda faz por aqui?

– Ah, olá veterano! Que surpresa! Achei que todos já tivessem ido embora. – Percebi que sua voz não estava tão firme desta vez.

– Eu digo o mesmo. – Falei, em tom sério.

– Por acaso você já está de saída? – A voz agora um pouco trêmula.

– Isso não é da sua conta, moleque. – Mantive o tom.

Sua expressão agora decaía, percebi que o nervosismo aos poucos tomava conta do seu rosto, embora ele tentasse manter o sorriso nos lábios. Essa era deixa que eu esperava! Pus meus olhos nos seus, encarando-o sem pestanejar. O suor começava a escorrer do seu rosto.

– Você está com algum problema, pirralho? – Provoquei-o sem desviar meu olhar do seu.

– Eu estou bem! – Respondeu automaticamente, nossos olhares em perfeito sincronismo.

Dei um passo a frente, fazendo com que encostasse na parede. O rosto do garoto agora estava completamente inundado de suor, a boca ressecada, as mãos trêmulas, o corpo rijo. Confesso que fiquei como um pouco de remorso por lhe colocar naquela situação. Porém, aquilo estava me divertindo, e quanto mais eu o encarava mais excitado a situação me deixava. Minha diversão foi encerrada por um colega que gritou seu nome do outro lado da rua.

– Ei, vocês aí! Novato, algum problema?

Ele desviou o olhar em direção ao colega, o corpo ainda paralisado.

– Então, não vai responder o seu amiguinho? – Falei baixinho.

Um pouco mais relaxado, falou:

– Eu estou bem!

Não conseguiu convencer.

– Tem certeza? – Retrucou o colega.

– Claro, eu estou bem! – Um sorriso amarelo complementou a exclamação.

Aliviei. Dei um passo pra trás e permiti que o garoto partisse. Eu sabia que nos encontraríamos no outro dia. Eu estava ansioso por isso.

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Uma semana se passou e o novato não pisou na escola. Obviamente todos sentiam a sua falta, e alguns inclusive já especulavam que eu era o culpado pela ausência do garoto: o aluno que nos flagrou naquele dia certamente espalhara boatos sobre mim. Eu permanecia indiferente com os outros e não me importava com os olhares temerosos que me rodeavam. Pelo menos, foi uma semana de paz, sem aquele rosto irritante distribuindo sorrisos por aí. E assim permaneceu o clima até o seu retorno.

Na semana seguinte, tudo voltou ao normal, inclusive minha irritação. Para o meu azar, ele parecia ainda mais feliz. Não demorou muito até que uma quantidade enorme de alunos se juntasse ao redor do garoto, buscando saber o motivo de sua ausência. Eu, de longe, apenas assistia. Entretanto, percebi que também estava curioso, queria saber quais razões justificavam sua falta.

– Que idiotice! – Balancei a cabeça, tentando me livrar desse pensamento imbecil. – De qualquer forma, ao final da aula eu pergunto. – Reconsiderei.

Não sei como, mas quando dei por mim estava de pé, entre os outros estudantes que compunham o círculo em volta do novato.

– Merda! – Exclamei baixinho.

Quando perguntado sobre o seu estado, o garoto no centro apenas respondia:

– Eu estou bem!

Percebi que essa frase era ainda mais incômoda que o seu sorriso constante.

– Que estúpido! Ele claramente não está bem coisa nenhuma! – Resmunguei.

Parei por um momento. Pronunciara isso de forma tão convicta. Mas, como eu poderia ter tamanha certeza disso? Foi então que me dei conta que dentro do meu peito meu coração batia forte, quase que audível a qualquer um. Ergui os olhos e fitei o garoto. Acidentalmente nossos olhares se encontraram. E nessa hora eu puder ver toda a dor escondida por trás daquela máscara, como se tivesse os olhos de Deus e pudesse enxergar o mais profundo da alma de um ser humano. Não havia mais mistérios, não havia mais segredos.

– Eu sabia! – Falei.

Ele percebeu. Ele entendeu.

De repente não havia mais ninguém, éramos só nós dois e nada mais. A multidão sumira, não havia mais ninguém no nosso caminho. Involuntariamente minhas pernas se moveram em sua direção, meu corpo desejava tê-lo em meus braços. Não sabia o porquê, só sabia que queria. A distância entre nós tornava-se cada vez menor, meu coração pulsava ainda mais forte, frenético, quase explodindo. Fechei os olhos e o abracei.

Não disse nada. Envolvi-o em meu corpo a ponto de parecermos apenas um. Com a cabeça enterrada em seus ombros disse abafado:

– Não precisa mais mentir.

Senti suas lágrimas molharem minha camisa. De início apenas alguns pingos, depois uma enxurrada. Ele se agarrou a mim com tamanha intensidade que pude ouvir seu coração palpitar. Aquele som era reconfortante, pôs fim a toda inquietação da minha alma. Eu não queria mais largá-lo. Aproximando seus lábios do meu ouvido, sussurrou baixinho:

– Eu nunca estive bem!

Pude sentir todo o pesar que escondia atrás do falso sorriso. Ouvir sua confissão fez com que eu me sentisse diferente: agora eu me tornara responsável por ele, partilhava do seu mesmo fardo tão pesado.

Afastando-me um pouco, tomei seu rosto em minhas mãos. Nossos lábios se atraiam como imã. Beijei-o. Suas lágrimas salgadas regavam aquele momento sublime. Ao final, olhei dentro de seus olhos, e ele dos meus. Sorri. Percebi o seu rosto corar. E ainda entre sorrisos declarei:

– Não se preocupe. Agora vai ficar tudo bem.

Ele retribuiu o sorriso, desta vez sincero, e completou:

– Já está tudo bem!


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Notas finais do capítulo

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