Saint Seiya: Apólogos de um deus caído. escrita por Deimos


Capítulo 1
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O corpanzil subia as escadas com a elegância de um elefante rolando sobre troncos roliços, variando sua envergadura a cada passo. Sua cabeça fervilhava de ideias e pensamentos nada sadios, tentando por hora esquecer da cara horripilante da cafetina de Rodório. Pelos seus cálculos já deveriam haver o jantar na casa de Leão quando ele chegou, silencioso e analítico além do normal. Finalmente havia começado a recordar da face repugnante de Leandros. Era um rosto marcado de um homem de mais de 40 anos e um queixo quadrado que lhe dava um ar de virilidade soberba. E seus cabelos eram...

“Verdes... e os olhos também. ”

Algo se manifestou dentro de sua cabeça, embora ele ainda não conseguisse ligar os pontos. Entrou na quinta casa de cabeça baixa após passar pelas casas vazias de Gêmeos e Câncer, ouvindo a voz de Hess e Helena na cozinha. Falavam sobre o canceriano estar fedendo e precisar de um banho, nada de muito relevante. A conversa silenciou assim que ele entrou no cômodo, embora tenha recomeçado logo em seguida. Euthalia estava escutando tudo em silêncio, mastigando um pequeno pão de batata ainda morno, atenta à conversa dos adultos.

— Hess, você não está num barco, pode tomar um banho de vez em quando, sabia? – Ironizou Helena.

— Nah, eu preciso estar acostumado para quando tiver que passar uma temporada navegando. – Devolveu o fedorento.

— Nós é que nunca vamos nos acostumar com esse cheiro de carne podre. Eu tomo banho todos os dias, me faz sentir melhor, ainda mais nesse calor.

— Mestre... – Chamou Euthalia com a voz encabulada.

— Lá vem... – Suspirou o cavaleiro de Leão enquanto os demais silenciavam-se ao notar sua presença na porta - O que foi, criança?

— Porque o senhor não dá banho na Helena?

A ideia foi tão absurda que ele esboçou um sorriso ameno, rindo pelas narinas. Mas havia sido uma pergunta muito estranha, de fato. O som de um copo metálico indo ao chão cruzou o silêncio mórbido de Hess e Helena quando a amazona deixou o utensílio ir ao chão.

— Eu deveria dar banho em uma mulher, Euthalia? – Questionou Deimos.

— O mestre Leandros dava, todos os dias.  – Respondeu Euthalia, fazendo o sorriso de Deimos desaparecer e pondo uma expressão de total espanto no lugar – Mas sabe...

— Euthalia... – Chamou Helena com a voz trêmula, erguendo a mão para tentar segurar a criança.

— ... Eu acho que o senhor Leandros passava a esponja com muita força nela. Ela saia do banho cheia de marcas vermelhas no pescoço e nas costas, e chorava bastante né Helena? – Concluiu a criança.

Nenhum som, nenhum gemido, nem mesmo uma respiração mais arfante. A face de seu antecessor voltou a tomar conta da mente do deus, que por sua vez observava a menina sem esboçar nenhuma reação. Aqueles olhos e cabelos do homem eram idênticos ao dá criança, mas a sua face era muito diferente... O nariz era fino e as maçãs do rosto estavam cobertas por sardas.

Como a face de Helena.

Talvez tivesse ocorrido que algum som estivesse escapado de sua garganta, pois a criança olhou-o de forma ressabiada, notando que tinha falado o que não devia. Levou alguns instantes para que ele pudesse olhar Helena nos olhos. Ela era incapaz de fazer o mesmo, encarrando as lagrimas que saltavam de seu queixo para a mesa de madeira, enquanto o canceriano limitava-se a lhe olhar como quem pedia clemência.

— Você é a mãe de Euthalia...

Não havia sido uma pergunta. Tinha concluído, e a mulher sequer tentou negar, apenas deixou-se esconder pelos cabelos ruivos em uma tentativa inútil de obter um mínimo de privacidade para chorar. Mas que de fato pareceu ter sido atingida por soco no estômago foi a criança. A expressão dela foi se contorcendo aos poucos, enquanto colocava os olhos em Helena.

— Helena? – Ela chamou já com a voz quase inaudível pelo choro que se engrolava em sua garganta – HELENA?

Ele não ficou para continuar a ver aquela cena deplorável. Saiu pisando duro, tão irritado que sequer era capaz de falar ou pensar onde estava indo. Eleanor passou correndo por ele atraída pela choradeira, dando a Hess a chance de seguir o amigo. A armadura de Leão pareceu entender o que estava acontecendo, visto que o brilho do altar onde ficava em seu modo objeto desapareceu por completo. Um soco foi suficiente para destruir uma pilastra próxima, espalhando os detritos pela fachada da casa e em seguida ele foi descendo as casas.

— DEIMOS!!! – Berrou Hess enquanto corria – ESPERA, NÃO TIRE CONCLUSÕES PRECIPITADAS!

Não surtiu efeito, fazendo ele apertar o passo na descida, correndo pelo salão da casa de câncer e se atirar escadaria abaixo, diminuindo o passo assim que chegou em Gêmeos. Dessa vez Gêmeos se fazia defendida pelos seus dois guardiões que haviam acabado de chegar, ainda suados pelo treinamento árduo.

— Ei, o que fazes aqui, Leão? – Perguntou Pollux com sua arrogância natural – Acha que é bem vindo aqui depois do que fez?

Um estampido seco e lá estava o semideus, ao chão como se fosse uma boneca de pano velha. O espartano havia sido estuporado por um feixe de cosmo que o atingiu diretamente no nariz, causando uma ferida que manchava de vermelho o piso da terceira casa. Castor se acovardou, dando passagem para aquele que sabia que não poderia vencer. Hess berrou mais alguns protestos, que não foram nem escutados e muito menos atendidos por ele. Quando por fim o marinheiro foi capaz de alcança-lo, já estavam na saída de Rodório.

— CALMA! – Gritou Hess ao segurar o Leonino pelos ombros – ME ESCUTA!

— AGORA VOCÊ QUER QUE EU TE ESCUTE? – Revidou Deimos ao agarrar o pescoço de Hess com tanta força que foi lhe asfixiando. – QUANTAS VEZES EU TINHA TE PEDIDO PARA ME CONTAR O QUE TODOS JÁ SABIAM, HUM? VOCÊS ME TRATARAM COMO UM IMBECIL, TRAÍRAM A MINHA CONFIANÇA, PASSARAM POR CIMA DA MINHA AUTORIDADE! – Urrou a figura enfurecida.

— U... Ugh... Me... Me solta, eu estou sufocando... – Gemeu o marinheiro.

Deimos sentiu-se tentado a enfiar o pé nas costelas de Hess quando este caiu de joelhos assim que foi solto. Ele tossia e cuspia, tentando recuperar o fôlego. Embora ainda estivesse com a visão embaçada, tornou a falar de forma a acalmar o filho de Ares.

— Você quer a verdade? – Questionou Hess.

— Tem mais além disso? – Rosnou Deimos de forma rude.

— Leandros ganhou a posse de Helena quando ela tinha seis anos! – Respondeu Hess lançando a isca.

— A “posse”? Que posse?

— Certo, seu arrogante de merda! Helena foi sequestrada por um traficante de mulheres quando tinha cinco anos, Deimos. Esse homem vendeu ela para a Zona, aquela mulher horrorosa que você conheceu pela manhã. Helena começou fazendo pequenos serviços, como ajudar a limpar o bordel. Em uma noite, Leandros fez uma aposta com Zona, valendo a posse de uma prostituta para o resto da vida ou ele pagaria 100 moedas de ouro. Ele ganhou nos dados, mas a cafetina desgraçada passou a perna nele e entregou Helena, que na época tinha seis anos!

Nesse ponto, o estômago de Deimos já havia dado um nó, enquanto o sangue borbulhava em uma raiva que ele nem sabia a quem dirigir. Hess estava alheio a isso, perdido em sua explicação.

— Segundo Leandros não havia problema algum nisso. Era só questão de tempo. Para disfarçar a presença de uma criança na casa de Leão ele contou a todos que ela era aprendiz dele, quando na verdade ele só esperava que ela menstruasse a primeira vez para... – A voz de Hess se perdeu, mergulhada em asco pelo que dizia – Para tirar a virgindade dela. E assim ele fez. O desgraçado quase matou Helena, deixou ela com uma hemorragia sem tratamento durante quase sete dias. Se Eleanor não tivesse pedido ao meu mestre para que ele ajudasse Helena ela... – O punho do cavaleiro de ouro cerrou-se com força – Ela teria morrido. Leandros defendeu-se, disse que não tinha conhecimento sobre o que havia ocorrido e sugeriu matar Helena por ela ter tido uma relação sexual antes do casamento. Meu mestre, Patrikios de Câncer, não permitiu. Eleanor já tinha contado a verdade para ele, mas todos ficaram em silêncio absoluto sobre o ocorrido. Helena, que supostamente era aprendiz do canalha, teve que voltar para a casa de Leão e os abusos prosseguiram até ela completar 16 anos. Foi então que ela engravidou de Leandros e sumiu das vistas do santuário, aparecendo nove meses depois com uma criança no colo. Todos os cavaleiros souberam de toda a história depois que teu antecessor espalhou isso aos quatro ventos depois de uma noite de bebedeira. Meu mestre morreu alguns meses antes de Euthalia nascer, quando eu tinha 22 anos. Ele tentou matar Helena durante a gravidez ou surra-la até que ela perdesse a criança, mas não conseguiu, já que a história chegou aos ouvidos do Patriarca, que ordenou que Helena ficasse aos cuidados de alguém de Rodório. Kalliope foi quem cuidou de Helena, pagando-lhe um quarto na hospedaria com a mixaria que recebia como prostituta. – O brilho das lagrimas de raiva cruzaram o rosto imundo do dourado, confirmando a veracidade da história – Foi nessa época que eu e Kalliope nos conhecemos melhor. E foi um inferno pior depois do nascimento da criança, uma vez que Helena foi obrigada a voltar para a casa de Leão. Acredite você ou não, ele voltou a fazer apostas no bordel. Mas sabe o que ele apostou dessa vez? – Questionou Hess enquanto fuzilava Deimos com o olhar.

— O... O que? – Balbuciou Deimos, totalmente atordoado.

— Euthalia. O filho de uma puta apostou a própria filha num jogo de dados em um prostíbulo.  E dessa vez ele perdeu. Lembra que Arktos mencionou o fato de eu quase ter matado Leandros? Foi nesse dia, quanto eu interrompi o jogo e arranquei a pobre daquele antro de vagabundos. Ele nunca deixou de violentar Helena, ele nunca parou de maltratar a sua filha! – Hess agarrou o pescoço de Deimos e o chacoalhou com violência -  É POR ISSO QUE EU O ODEIO, DEIMOS! É POR ISSO QUE HELENA NÃO USA A DROGA DA MÁSCARA, ENTENDEU? PORQUE ELA ACHA QUE É UMA VAGABUNDA, UMA MÃE SOLTEIRA E UMA COVARDE!

O deus do pânico nada disse. Estava pálido, sentindo as pernas bambas. Hess soltou-o, encarando o rosto enojado do cavaleiro de leão com um olhar frio, de quem ainda não tinha terminado a saraivada.

— Tá satisfeito agora? – Questionou o Cânceriano.

— Não... Não é possível... – Disse Deimos sem firmeza alguma na voz – Se ela foi violentada, porque iria abusar de mim quando meu capturou? – Questionou Deimos, agarrando-se a sua última tábua de salvação.

— POR QUE ELA SABE O QUANTO ISSO É CAPAZ DE ABALAR ALGUÉM! É POR ISSO! E QUER SABER DE UMA COISA? VÁ PRO INFERNO VOCÊ TAMBÉM, VOCÊ CAUSOU UM PROBLEMA ENORME AGORA COM A EUTHALIA. Mas... – Hess limpou as lágrimas com o antebraço, cuspindo nos pés de Deimos com todo o asco que pode reunir e deu-lhe as costas com a intenção de voltar para as doze casas – você não se preocupa com ela, não é? Só se importa com o próprio rabo.

Sem a presença do outro, Deimos desabou, caindo sentado enquanto puxava os cabelos ruivos com força, berrando até sentir a garganta doer. A frustação tomava conta de seu ser, sentiu-se incapacitado. Nesse momento, de nada lhe valia sua classe, seu poder ou seu tão valioso Ikhor. Nada disso podia ajudar, tanto a mulher quanto a criança. Ele próprio sentiu-se sujo, impuro. Ele, um caçador, um farejador que não soube perceber algo tão simples, incapaz de ligar os pontos. Quando por fim sentiu-se capaz, levantou e caminhou a esmo por um bom tempo, tentando digerir tudo aquilo, até chegar no portal que levava ao cemitério dos cavaleiros. Ao ver as lápides surgirem na escuridão que começava a tampar-lhe a visão, soube por onde começar sua limpeza espiritual.



A grama molhada pelo sereno secou instantaneamente ao ser devastada por uma onda de cosmo inigualável. Um pilar vermelho sangue ascendeu aos céus, iluminando tanto Rodório quanto as doze casas. Pratos e taças saltavam sobre as mesas, juntamente com os habitantes do Santuário. Olhos se cruzaram, bocas se emudeceram e lábios secaram. Todos sabiam quem estava por trás daquele bombardeio infernal, mas até que os alarmes soassem para convoca-los para a guerra, nada fariam além de assistirem temerosamente ao espetáculo. Em leão não foi diferente.

— Pelos deuses, ele vai acabar ferindo alguém, ou pior! – Disse Eleanor, ainda passando a mão envelhecida na cabeça de Euthalia.

Helena foi levada por Hess para a casa de Câncer, onde deveria passar a noite. Deimos desapareceu após a descoberta, mas não demorou muito tempo até demonstrar que estava na região do cemitério. Um novo clarão e mais um estrondo fez Euthalia aumentar seu choro, de alguns fungadas e lagrimas para um chorar sôfrego e interminável.



— GAAAAAAAAAAHHHHH!!!

A explosão ergueu uma nuvem de terra e pedras, que ao caírem muito lembravam uma chuva mais sólida. O Leão surgiu por entre a poeira alucinadamente enraivecido, sem ter a quem odiar. Tudo que fazia era espumar pelos cantos da boca como um cão furioso, passando os olhos pelas pedras que ostentavam os nomes dos cavaleiros de Athena que já haviam morrido. E eram vários. De todas as patentes e idades, homens e mulheres, aquele era o local onde todos os que já haviam finalizado suas missões eram postos. Inclusive...

O leão desgraçado.   

A lápide de Leandros era tão simples quanto as demais, mas havia um desapego especial por ela. Estava morto há um tempo relativamente curto, mas sua tumba era uma das menos cuidadas do cemitério.

— SEU FILHO DA PUTA!

A voz grogue pela raiva foi apenas um complemento ao punho atravessando o chão, até chegar no cadáver enrolado em um tipo de tecido que já estava bem apodrecido, igual ao corpo. Outra rajada de cosmo e toda a terra depositada sobre Leandros sumiu, como se tivesse sido obliterada. O lençol também se desfez por inteiro, restando somente um punhado de ossos e pele seca. A caveira ainda estava perfeitamente intacta, mas obviamente ressecada. Os lábios já haviam desaparecido, faltavam grandes tufos dos cabelos verdes e os globos oculares já haviam sido devorados pelos vermes que agora estavam a mover-se de forma nojenta, saindo da boca e do nariz do morto. Deimos o tirou para fora da cova segurando-o pela face, e surpreendentemente o pescoço ressequido não se rompeu totalmente, embora fosse visível a parte fraturada por Deimos em combate. Contemplar novamente a face desse humano desprezível fez o estômago de um deus que já havia visto as piores mutilações na guerra se revirar. Um sinal de que era hora de iniciar a limpeza.

— UM HOMEM É COMO VIVE, E VOCÊ VIVEU COMO UM RATO IMUNDO!!!- Deimos girou sobre os calcanhares e arremessou os restos mortais de seu antecessor para o alto – DESAPAREÇA!!!

 Fazia tempo que aquele cosmo não se emanava dele, seu verdadeiro cosmo. Um cosmo que nada mais era do que ódio transformado em energia, sua essência. A esfera avermelhada cortou o ar com uma velocidade absurda, atingindo o cadáver na altura do peito, deformando aquela estrutura ressecada por alguns instantes. A explosão desfragmentou o corpo, queimou a pele, moeu os ossos. Mas não havia como desfazer aquela existência, e mesmo que pudesse, não iria faze-lo, visto que seu preço seria a vida de Euthalia. Alguns pequenos pedaços espalharam-se por entre os jazigos. A cabeça quicou pela relva, até ser freada pelo pé de Deimos. O cavaleiro apanhou o crânio pelos cabelos. Haviam estacas que delimitavam os limites cemitério. Uma das pontas serviu como estandarte para empoleirar a cabeça do antigo leonino. Esse era o seu recado aos crápulas que ainda se mantinham firmes no santuário. Iria mata-los um por um.



O dia amanhecia para a casa de Câncer, a luminosidade foi adentrando pouco a pouco, com a preguiça de quem acabara de despertar. Duas figuras silenciosamente mastigavam seus cafés da manhã, trocando olhares que se entendiam. Os olhos verdes de Kalliope fervilhavam contra a amenidade cinzenta dos de Hess. Era uma guerra silenciosa que se travava desde a hora em que ela havia sido notificada. O som do mastigar chegou ao ponto de ser insuportável para ambos, forçando-os a iniciar um diálogo.

— Eu disse. Eu disse que esse filho da puta...! – Kalliope fez uma pausa para saborear a última palavra – Esse desgraçado ia foder com tudo!

— Te acalma, mulher. – Suspirou Hess, desarmado de argumentos.

— Acalmar? ACALMAR? – Rosnou a prostituta – Como eu vou me acalmar sabendo que Helena está fingindo dormir no teu quarto nesse momento, mas não consegue fechar os olhos sem ter medo de que a sua própria filha tenha repúdio dela?

— Se nós tivéssemos contado para ele...

— Nem comece, seu canceriano maltrapilho! – A loira bateu ambas as mãos na mesa e se ergueu, colocando o corpo para frente, de maneira ameaçadora.

— Mesmo você não sendo uma amazona, sentiu o cosmo dele ontem à noite, não é? – A mulher emudeceu, dando assim a sua afirmativa – Sabe do que mais? Ele destruiu a carcaça podre do Leandros. ELE foi retirar aquela mancha do cemitério dos heróis. Ele é o estúpido arrogante e soberbo que você constatou, mas também é quem se dispôs a ver o quão podre o santuário pode ser, enquanto todos nós apenas assistimos.

— “Assistimos?” Que eu me lembre, quem acudia Helena quando Leandros atacava era eu e você, não ele!

— Deimos matou Leandros, Kalliope!

— Não fez isso por bondade, FEZ POR SER UM ASSASSINO! ISSO QUE ELE É! UM BICHO SELVAGEM! – Pontuou ela com um soco na mesa -  NÃO, É MUITO PIOR DO QUE ISSO! ELE É UM AMONTOADO DE TUDO QUE É PODRE NO MUNDO!

— Não. – Discordou friamente Hess – Ele não é.

— Sim. – Soou uma voz fraca – Eu sou.

Ambos emudeceram ao perceber que Deimos passava do outro lado da parede, pelo salão principal da casa de câncer. Hess Engasgou-se com um pedaço de pão seco, tentando seguir o outro dourado. Assim que cruzou o arco que levava ao saguão, porém, ninguém estava lá. Tinha sumido como se fosse fumaça.

— Você ouviu. – Declarou Kalliope sem titubear – Ele é.



— POR ATHENA, ELE VAI NOS MATAR! – Prantou uma das servas, coberta de lagrimas, observando o olhar vago de Eleanor.

O despertar na casa de leão se deu por berros. Euthalia tinha sumido, mesmo com uma cuidadora dormindo junto dela no quarto. Ninguém viu, ninguém ouviu. E agora podiam sentir que o teto desabaria sobre suas cabeças assim que o dono da morada retornasse. E não demorou até que ele cruzasse a entrada com uma expressão calma, mas não menos assustadora. O choro das servas aumentou. Em seu interior, já podiam sentir as mãos grandes esmagando suas traqueias, as pancadas agoniantes desferidas contra seus rostos, como fazia Leandros. Mas Eleanor tinha que contar.

— Se-Senhor, aconteceu um problema durante a noite... – Gaguejou a idosa.

— Eu vou atrás dela. – Murmurou Deimos de forma quase inaudível – A culpa é minha.

— ?!

As mulheres espantadas testemunharam a figura passar por toda a extensão da casa de leão, parando na porta de trás da casa como se aguardasse alguém. Um brilho dourado tomou conta do altar onde estava a armadura de leão. O brilho foi crescendo mais e mais, até ofuscar a vista das servas. Um estalo metálico se fez ouvir e o brilho desapareceu de supetão, deixando para trás as duas servas e um altar vazio.



O vento frio açoitava os bracinhos pequenos que abraçavam o corpo frágil em um sinal claro de autodefesa. As lágrimas da criança já tinham secado a muito tempo, mas as têmporas ainda estavam doendo, assim como tudo parecia doer naquele turbilhão de sofrimento. Euthalia havia descido pela garganta do leão, sem nem mesmo perceber que havia voltado para o local onde Deimos havia a forçado a matar um cervo, uma experiência que ainda lhe causava certo desagrado. Algo se moveu na folhagem, tirando-a do fluxo de pensamentos.

— Huh!? – Gemeu a criança com uma ponta de desespero.

Algo do tamanho de um gato saiu pulando do arbusto. Era marrom e de olhos totalmente cor de terra. Uma mancha preta corria pelas costas, da testa até o quadril. Era um filhote de cervo, curioso demais para se manter junto da mãe. No mesmo instante a criança esqueceu-se de todos os problemas, tentada a passar a mão no animal. Igualmente interessado, o filhote se aproximou para cheirar as pernas de Euthalia. O pequeno, no entanto, paralisou-se por alguns instantes, até disparar mata adentro. Algo muito maior passou pelas folhagens, fazendo a filha de Helena prender a respiração. Era Deimos.

— Mes... Mestre? – Choramingou a pequena.

Deimos limitou-se a suspirar, sentando-se ao lado de sua aprendiz sem olha-la. O deus tinha a perfeita noção da besteira que tinha feito, e sabia que aquela conversa iria resolver tudo ou destruir o pouco que restou.

— Não consigo entender tuas lágrimas, criança. – Disse Deimos com toda serenidade que pode reunir.

— Helena mentiu pra mim... – Fungou Euthalia.

— Mentiu. – Concordou Deimos.

— Mentir é errado, todo mundo me diz isso, por que ela pode?

— Sabe Euthalia... – Deimos não fazia ideia do que dizer, só sabia que deveria falar algo – Nem todos são leões. O mundo está cheio de ovelhas. E ovelhas sentem medo quando não são protegidas por leões. Sua mãe... – Ele fez uma parada para frisar a palavra – Tinha medo do que poderia acontecer com você, entende?

— Eu não entendo... – insistiu a infantil.

— Helena te fazia sentir protegida? – Questionou Deimos.

— Fazia...

— Helena te ajudava quando você tinha problemas?

— Ajudava...

— Ela em algum momento deixou de demonstrar o amor materno que tinha por você?

— Ela gostava de mim...

— Não gostava, pequena. Gosta. – Deimos fez uma pausa quase imperceptível para pensar no que dizia - Aliás, ama. Mesmo que ela não tenha dito com todas as letras que era sua mãe, ela nunca te tratou como algo diferente de uma filha.

— Mesmo? – Indagou Euthalia.

— Mesmo. – Assentiu Deimos – Você sabe quem é minha mãe, Euthalia?

— É uma deusa bonita...

— Não. Essa é quem me pôs no mundo. Se chama Afrodite.

— E não é a mesma coisa?

— Não. Minha mãe se chamava Altheia, era uma ninfa. Ela me deu comida e abrigo quando fui abandonado nas florestas de Esparta. Isso é uma relação entre mãe e filho, entende?

O silêncio da pequena deu-lhe espaço para prosseguir.

— O que você vai fazer agora, criança? – Indagou Deimos.

— Se ela gostava de mim, porque mentiu? – Insistiu a criança.

— Por que tinha medo. Medo de te deixar triste, medo de não conseguir ser uma boa mãe. Apenas medo. É por isso que você tem que se desprender dos Seus medos, deve se tornar uma leoa audaz! Precisa entender que nem tudo acontece como queremos, mas precisamos tentar melhor tudo o que chega até nós. – Devolveu Deimos, ainda imerso em sua paciência.

— Mestre... Se Helena é minha mãe, quem é meu pai?

Não era capaz de mentir para si mesmo, e sentiu-se envergonhado por temer uma pergunta simples.

“Um estuprador desgraçado, Euthalia.”

— Eu. Quando perguntarem quem é seu pai, diga que sou eu.

 

As palavras rolaram de sua boca antes de ser capaz de conte-las. Euthalia o abraçou num impulso, tendo o gesto correspondido de imediato. Era constrangedor fazer o que estava fazendo, mas não dava a mínima. Estavam ali somente os dois. Ou ao menos era o que achava. Por um vão entre as folhas, viu os olhos lacrimejados de Helena espiando a dupla com a mão esquerda aberta sobre o coração. Deimos afastou Euthalia a apontou com a cabeça em direção da mulher ruiva, deixando a criança inerte. Deimos retirou o seu elmo e pôs nas mãos da criança, fechando os dedos pequenos ao redor da peça de metal.

— A decisão é tua, Euthalia. Diga-me de uma vez por todas: Euthalia, filha de Deimos e Helena, você é uma leoa ou uma ovelha? – Sussurrou Deimos.

Ela sequer respondeu. Ambas as garotas se abraçaram após a criança correr o curto espaço que a separava da mãe, chorosas ao ponto de mal entender-se o que diziam, mas palavras não eram necessárias. Não agora. Silenciosamente, Deimos se afastou para retornar para a casa de Leão. Mas antes, contemplou aquela cena acalentadora mais uma vez.

“Uma pequena leoa, Euthalia. Uma pequena leoa.”

Gritos e palavras de alivio explodiram na quinta casa assim que Helena surgiu da garganta do leão carregando sua filha. Mãe e filha, tão firmemente abraçadas que parecia impossível separá-las. Era um abraço que já vinha sendo dado a muito tempo, mas nunca daquela forma, nunca um contato familiar. Hess e Kalliope aguardavam junto dos servos da morada, e a dupla foi quem mais pareceu aliviada com a cena. De fato, era algo que há muito eles aguardavam.

— Graças a Athena! – Disse Kalliope baixinho.

— Graças a Deimos. – Corrigiu Hess amargamente.

— Vai realmente me incomodar com essa ladainha? – Bufou a prostituta antes de correr para abraçar mãe e filha.

Muitos abraços e beijos para fazer a criança se sentir à vontade, mesmo aquele sendo seu lugar de origem. Era vital fazer com que Euthalia entendesse que agora ela era ainda mais amada e que se iniciava uma verdadeira vida em família.

— Euthalia, pequena, não faça mais isso, tá bom? – Disse a loira quando finalmente conseguiu fazer Helena soltar sua prole por alguns instantes.

— Tia Kalliope!!! – Festejou a criança com um sorriso – A Helena é minha mãe, sabia? Ela só tinha medo de me falar, mas agora eu sei!

— É, claro que é! – Kalliope confirmou fazendo um cafuné na pequena.

— Onde ela estava? – Perguntou Hess de algum canto fora da vista de Helena.

— Com Deimos, na mata. – Murmurou a ruiva.



A brisa suave e o serpentear do riacho eram suficientes para acalmar o coração mais violento, mas Deimos estava alheio a beleza daquele local, tendo olhos apenas para a raiva que lhe fervia o sangue e queimava os músculos. Mas do nada, tudo sumiu. A raiva, o ódio, a gana, nada mais existia. Apenas um silêncio acalentador. O silêncio que vinha de cima. Um tufão negro de penas metálicas se materializou ao seu lado, transformando-se na figura de Lacedemon de Éton, o Carniceiro Comandante. Nenhum dos dois se moveu, nem mesmo pareciam respirar. Olhavam o mesmo ponto afastado do horizonte, sem nem mesmo saber o que estavam vendo. O Berserker cruzou os braços pacificamente, sorrindo pelos cantos da boca.

— Tocante, realmente tocante. – Disse ele com um muxoxo – Já foste mais importante, Deimos de Pânico. 

— Importante a quem? A você, Éton? – Devolveu Deimos.

— Ah, não... não, não, não! – Negou o outro – De forma alguma minhas importâncias ou relevâncias são formas avaliativas de destaque... Mas não é de achismos que estou a falar. Sua importância de deus ficou em segundo plano, relegada a não ser mais do que um mero status. Agora é um pai, e isso vai consumi-lo até sobrar apenas os ossos. – Disse o nobre espartano de olhos fechados com toda a altivez que seu cargo lhe conferia.

— Mesmo? – Lançou Deimos por entre os dentes.

— Não há como negar. Se sente preenchido pelo amor, Deimos?

— ... – Um silêncio com o peso de uma afirmativa.

— Bem, é óbvio que sim. Mas você não estava vazio antes. O ódio como essência lhe servia em todos momentos. O ódio ainda habita esse corpo, então...

— Então...?

— O amor não o preencheu, apenas fez com que seu interior se expandisse. Mas o amor não é duradouro, general. Duradouro é o espaço sobressalente quando o amor se esvai, e disso surge o vazio do homem! – Os braços do Carniceiro se separaram e as mãos se apoiaram serenamente na cintura – O vazio cresce, suga e drena, até restar uma casca vazia repleta um pouco de medo e nada de si mesmo...

— O medo não me aflige do mesmo modo que a ti. – Afirmou Deimos com impaciência -  Por que me seguiu?

— Ora, já esquece te todo o sangue que derramamos juntos? Eu e você, quando mergulhados em sangue e entranhas, forjamos cada guerreiro que habita esse mundo. Todos querem seguir nossos passos. E eu iriei seguir teus passos até ser capaz de interrompe-los.

— Um caminho trilhado ao nada... – Bufou o ruivo.

— Será mesmo? Não há... – Lacedemon circulava Deimos como um lobo faminto – glória em nossas conquistas? Não há nenhuma fonte de inspiração no que fizemos? Nós somos a representação viva do poder, NÓS SOMOS O PODER, DEIMOS!

— E? – Perguntou Deimos debochadamente.

— E só aqueles que são capazes de se perfilarem orgulhosos pelo que fizeram podem ser o poder. O resto deve ser... - Os olhos azuis de Lacedemon tornaram-se momentaneamente escuros como a noite sem estrelas - obliterado. Pense nisso, Deimos. Seja o poder, não o vazio.

A mão esquerda do berserker se ergueu aos céus e ele desapareceu em meio à um clarão esbranquiçado. A paz então voltou. Não estava preocupado, nem decepcionado. Sabia que seria assim que funcionaria com o abutre devorador, mas não esperava que ele tivesse culhões para desafia-lo cara a cara. Mas agora não tinha nervos para se preocupar com um amigo convertido em rival. Tinha antes que arrumar seu próprio bando para atacar o inimigo.


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Notas finais do capítulo

Peço encarecidamente que vocês leitores não deixem de me dar retorno sobre o que gostam e o que não gostam na fic, seja pelo Nyah ou por Email.

Email para contato: Mateusklein11@gmail.com

Até mais!



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