Fabulosa Inconsistência escrita por Something Ville Citizen, Hope


Capítulo 10
R: Lavender Sea


Notas iniciais do capítulo

Povos e povas do meu coração: quem é vivo sempre aparece, por isso, apesar da mudança de cidade, das mil tarefas e falta de tempo, aqui estou eu postando o capítulo 10 pra vocês.
Detalhe: escrevi no notebook mas ainda não tenho wifi por aqui, então passei o documento pro celular e estou postando através dele, então é normal que vocês encontrem alguns erros. Perdão, quando eu tiver wifi novamente, vou deixar tudo bonitinho.
Okay? Boa leitura! ♡



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* Daniel’s POV *

Deitei-me, de bruços, sobre o mar de lavanda que era a colcha a cobrir a cama de Malu. Com isso eu não tive a intenção de ser invasivo ou coisa do tipo, mas já tínhamos, digamos assim, intimidade o suficiente para entrar nos quartos um do outro sem que parecesse invasão à domicílio – intimidade essa resultante das várias vezes em que nos reunimos para estudar ou conversar à toa.

A colcha tinha um cheiro adocicado que não correspondia exatamente às flores lilases que a estampa representava, mas, mesmo assim, era muito agradável. Eu pego o livro de Física dela (que ainda não chegara) e começo a folheá-lo, como tentativa de me preparar para a aula do dia seguinte. De um jeito ou de outro, eu iria amanhã. Sofrendo de crises de ansiedade ou não.
Era como se meus olhos estivessem sobrevoando, vagamente, as palavras e figuras; não sei quantas delas meu cérebro conseguiu realmente processar nessa tentativa de ocupar a mente. A tentativa era minha, mas a ela não consentia com a ideia de se manter ocupada com algo útil. Aos poucos, meio sem querer, a própria encarregou-se de me ocupar, levando-me a um novo mar de lavanda.

“Lá estava eu, num campo cor de lilás. O céu era azul-arroxeado, e formava a gradiente de cores mais incrível e brilhante que eu jamais havia visto, sequer numa paleta de tintas a óleo: à minha esquerda, uma luz prateada pairava no horizonte, como um sol se pondo. Do centro para a direita, as cores iam escurecendo, até chegar num roxo profundo com várias estrelas o pontilhando. Posso dizer, era lindo. E, antes que eu entendesse o que eu estava fazendo nesse paraíso – modéstia a parte, se existe um, eu não espero que seja menos que isso –, vi uma figura se aproximando, sua silhueta negra contra a luz prateada estendendo uma sombra comprida sobre as flores.

— Daniel. – e, então, eu percebi que se tratava de Aurélio, tão vivo quanto ele estaria dois dias atrás. Hesitei.

— Pai?

— Não importa o que lhe digam, filho. – ele abriu um sorriso. – Eu sei. Eu sei que você me matou.

E, então, tão rápido quanto o cenário inicial havia se formado, eu me encontrava numa igreja. Havia pessoas andando numa mesma direção, sussurrando coisas incompreensíveis, e todas com uma vela nas mãos. Parecia noite, e apenas essas velas iluminavam o local. Eu literalmente fui parar na igreja do julgamento do Auto da Compadecida, e não sei quem poderia me explicar o porquê.

— PAREM!!! – bradou uma voz grave. Aurélio mostrava agora sua verdadeira face. – Parem, todos vocês. Podem seguir para o portão, vocês merecem a salvação. – A multidão pareceu respirar aliviada, e cada um apagou sua vela quando o tal portão se abriu do lado indicado, e a sua luz invadiu o local. – Sigam a luz.

Novamente, hesitei, mas comecei a seguir o fluxo. Do portão parecia vir uma brisa muito parecida com a que eu senti no campo das flores lilás. As pessoas sem rosto começaram a se apressar, caminhando mais rapidamente, e logo fiquei para trás. Quando a última – além de mim – entrou, o portal se fechou com um som ensurdecedor e a escuridão se abateu sobre a igreja.

— Isso. Você fica aqui. – a conhecida voz disse, se referindo a mim, imagino. Uma vela se acendeu na minha frente e eu fui obrigado a ver o que estava logo por trás dela: Aurélio, novamente, seu rosto pálido e ensanguentado, como na imagem que me mostraram na delegacia. A outra metade de sua face era feminina. Reconheci a feição jovem, porém maltratada de Sheila. – Fique conosco, e vamos arder para sempre.”

E foi aí que eu finalmente me dei conta de que continuava deitado na cama de Malu – e que eu gritava e chorava, num desespero cego. A sensação de que eu estava prestes a ter um colapso definitivo, perder o controle dos meus próprios atos e enlouquecer era intensa e terrível.

Se eu um dia pensei que ainda teria pesadelos como os que povoavam minhas noites de sono quando eu era criança? Sim, com certeza pensei. E eu não era nada mais que um menino ali, esperneando, aterrorizado demais para sequer respirar.

Entre soluços, senti braços familiares me acolhendo, tentando me acalmar.

— Dan, vai ficar tudo bem. – dessa vez, era a voz da dona do quarto, Malu. No momento, eu realmente não entendia o que significava “bem” nem como tudo ficaria assim, mas, creio que, minutos depois, eu já era capaz de balbuciar alguma coisa novamente.

— Malu, me tira daqui. – era só o que eu conseguia pensar como solução. – Eu sou um assassino e eles me querem. Me ajude.

Essas são frases proferidas em momentos de delírio e extremo pânico, cabe dizer. Quando eu pude abrir os olhos, percebi que havia sangue molhando a camisa do irmão de Sofia através dos pontos do meu corpo onde fui ferido pelos cacos de vidro no dia anterior –, e acho que não preciso enfatizar o quanto ardia (e o quão mal eu me senti por ter ensanguentado uma camisa alheia).

Observando a cena, estava também a mãe de Malu parada na porta do quarto, chocada. Isso é mais ou menos o que consigo relatar sobre os momentos de instabilidade depois da alucinação disfarçada de sonho vívido que tive. E ainda era meio-dia.

* * * * *

Fim da febre, da crise psicótica e eu em sã consciência novamente. Foi, enfim, que resolveram me contar que hoje seria o dia do velório e do enterro do nosso já conhecido satã, e que me incentivaram a comparecer.

— Vocês viram o que acabou de acontecer. Se eu for ao velório do próprio, vou ter um treco. Eu cansei de ter trecos por hoje. Acreditem, é bem cansativo – eu me justifiquei. – Além de, nunca se sabe, alguém poder acabar me reconhecendo e me apedrejando em praça pública.

— Não é bem em praça pública, é um cemitério. E eu posso ir com você, também. – encorajou Malu. – Te damos carona.

— Mas é verdade, filha... Ele deve estar exausto. – raciocinou a mãe dela, dona Estela, já recuperada do choque que foi me ver chorando desesperado, coberto de sangue e dizendo “eu sou um assassino e eles me querem”.

Fiquei olhando de uma para outra de maneira idiota. Eu realmente estava exausto, por dentro e por fora, mas agora brotara um impulso de desafiar meus próprios nervos (mais uma vez).

— Você pode acabar se arrependendo se ficar aqui, é a sua única chance de se despedir. Ele era seu pai, no fim de tudo. – Malu declarou, com um tom ingênuo.

Não que eu realmente possa considerar aquela – falecida – criatura como meu pai depois de 17 anos convivendo com ele, mas havia um fundo de verdade ali. Melhor ir agora que esperar mais 20 anos e resolver, um dia, voltar ao cemitério e me lamentar, enquanto coloco flores sobre a lápide.

Certo, essa é uma hipótese surreal e completamente fora de contexto, mas fantasiar não faz mal (e eu não estou tentando parecer um adolescente rebelde enquanto digo isso).

Contra a própria lógica que rege a vida, eu aceitei ir.

— Se é assim, acho que... eu vou. Vou. Vou. Vou. Vou. Vou. Vou. Vou. – já estava demorando, né non?

— Ah, antes que eu me esqueça: dessa semana você não passa, querido. Minha amiga fonoaudióloga vai cuidar disso. – concluiu Estela.

E foi assim que eu pude criar uma nova expectativa.

* * * * *

Lá estava eu, no banco de trás do carro da mãe da Malu, imaginando, a cada curva e cruzamento, que um caminhão ia surgir do nada e colidir com o veículo onde estávamos. Felizmente, o trajeto não era tão longo, e eu pedi para descer, sozinho, duas esquinas antes da entrada do cemitério. Dali já era possível ver diversos outros carros estacionados ao longo da avenida – seus donos certamente estavam presentes no velório.

Antes de partir para os momentos críticos, devo lhes introduzir ao meu #lookdodia: um casaco longo e cinza escuro com capuz, complementado por jeans pretos e sapatos sociais. Ah, e ataduras novas, é claro. Eu mesmo me pergunto onde eu arranjo essas coisas, mas casos como esse pedem medidas drásticas.

Seguindo a lógica básica, quando se trata de situações fúnebres, luto e tudo mais, as pessoas usam cores escuras, estou certo? Não, não estou, porque, assim que entrei no local, percebi que meu plano de camuflagem daria errado desde o início.

Ao contrário de mim, 98% dos presentes trajavam branco ou cores comuns, e não se assemelhavam a postes quanto à altura, digamos assim. Eu, com meu capuz sobre a cabeça e um band-aid na ponte do nariz, fui notado por algumas criaturas imediatamente, mas comecei a circular em direção às outras lápides, tentando ocultar o rosto no processo.

Basicamente, havia no cemitério uma “clareira” entre os túmulos, e lá estavam posicionados o caixão de Aurélio e uma espécie de palanque, onde um membro de alto escalão da Universal discursava, elogiando o falecido. Esse é um dos momentos onde você simplesmente para e reflete ao ouvir “justo”, “admirável” e “exemplar” entre as frases proferidas: será que alguém trocou o defunto dentro do caixão? Porque, caralho, se Aurélio fora tudo isso em vida, eu devo ser a Imaculada Virgem de Calcutá.

— Ei, moço, você é o filho do pastor? – sussurrou uma mulher que usava uma saia tão longa quanto os próprios cabelos. Eu me virei, lentamente, para olhar nos olhos a pessoa que acabara de brotar na minha frente, e não notei nela qualquer sinal de hostilidade ou coisa do tipo. Resolvi ser sincero:

— Errm... eu era, sim. – ao ouvir minha resposta, ela gesticulou em direção a outras três moças, que vieram em passos rápidos, porém contidos.

— Meu jovem, eu sinto muito pela sua perda e pelas acusações que têm lhe feito, mas você não imagina o que nós passamos nas mãos dele. – segredou-me a mulher que, dentre elas, parecia ser a mais velha.

— Na verdade eu imagino, mas me contem, por favor.

Após cerca de trinta segundos de silêncio – entre elas, porque o discurso acerca das supostas benfeitorias do meu projeto de pai continuava – uma das moças tomou coragem e contou algumas de suas experiências, e, assim, encorajou as outras a falarem sobre isso também.

— Depois da primeira vez, ele continuou abusando de mim ao final de todos os cultos, e o meu marido sequer estranhava quando o pastor dizia que ele próprio iria me dar carona mais tarde. – a que primeiro falou comigo relatou. – Não sei se fui uma das primeiras a... ser tratada como um objeto por ele, mas já fazem dois anos que isso parou de acontecer.

— E por que você não denunciou antes? – perguntei, meio desnecessariamente.

— Por medo, e porque ele me ameaçava.

— Ele já ameaçou todas nós – complementou uma das mulheres, e eu podia ver a dor em seus olhos. Ela baixou meu capuz e, ao ver meu curativo no pescoço, conseguiu, apesar de tudo, demonstrar preocupação em relação a mim. Eu não aceitei. Diante dos infortúnios que acabara de ouvir, me senti uma criatura insignificante no rol de reclamações que podem ser feitas em relação a Aurélio.

— Eu juro que vou fazer alguma coisa, eu preciso ajudar vocês. Vocês. Vocês. – e por aí foi. Elas pareciam já saber da minha gagueira bizarra (talvez estivessem lá nos cultos onde sofri tentativas de “exorcismo”), logo, não demonstraram muita surpresa; mas foram, literalmente, tantas coisas ao mesmo tempo, que eu sequer notei o burburinho que estava ganhando força no local.

— É o filho do pastor, não é? – alguém comentou audivelmente, em meio à massa presente em volta do caixão. Mais pessoas começaram a olhar e apontar em minha direção. Que ótimo momento para ser reconhecido.

— Você não engana ninguém! – berrou um dos presentes.

— Mostra essa tua cara.

— ASSASSINO!

E, depois dessas manifestações, vieram muitas outras, até que praticamente todos os fiéis tivessem se transformado de meros seres enlutados a figuras furiosas, esbravejando contra o narrador que vos fala.

Nas periferias do grupo, só agora eu distinguia alguns dos meus parentes. Eles estavam evitando tomar o mesmo rumo que o resto dos presentes, creio eu. No meio dessa confusão, senti pena da minha tia Magnólia, que, com certeza, estava ali apenas por piedade, e acabara presenciando tudo isso.

Talvez fosse ilusão, talvez não, mas vi também alguns homens de terno completamente preto movendo-se rapidamente em direção aos portões, como se uma rebelião estivesse prestes a começar.

Olhei uma última vez para as moças que haviam confessado seus piores momentos para mim há poucos minutos, e, tomado por um sentimento de injustiça crescente que começava a transbordar na forma de suor frio, fui até o palanque onde estavam havendo as homenagens. O “colega de trabalho” do falecido, que fora o último a discursar, não cedeu passagem.

— Com licença, por favor. – eu disse, contendo a minha raiva na fala.

— Eu não vou dar voz a um instrumento de Satanás. Está repreendido!

ducadamente, pus um pé sobre uma parte não ocupada da estrutura, e me mostrei intimidadoramente mais alto que o “porta voz divino”. Ele se encolheu e deu um passo para trás, mas manteve a expressão hostil. Eu obviamente não ia empurrar o indivíduo dali, então, suavemente, respondi:

— Você não sabe se o assassino aqui não tem uma faca escondida no bolso do casaco. Melhor não arriscar, senhor pastor.

Enfim, ele fechou os olhos, lívido e amedrontado ao mesmo tempo, e, lentamente, se retirou como se nada tivesse acontecido. Um profundo silêncio se apoderava dos fiéis, enquanto os mesmos direcionavam sua atenção para a figura que subira no palanque.

— Senhoras e senhores – agora eu avaliava o porquê de ter resolvido contestar todos, e na frente da minha família, mas era tarde demais para ir embora dali e não havia nada a perder. – Eu sei que todos vocês que frequentavam os cultos que o meu pai apresentava não creem na ideia de que ele era capaz de matar alguém, ou cometer suicídio. Eu entendo a posição de vocês, como fiéis que tinham Aurélio como líder. – fiz uma pausa e respirei fundo, olhando para os presentes, e depois para o horizonte. Que eu não falhe nem gagueje agora, por favor. – O problema é que vocês não tiveram contato com a figura paterna dele. Vocês não conviveram com ele como eu convivi, mas não fui o único a ver esse lado do Aurélio. Também houve a minha mãe, e, ouso dizer, pessoas que estão presentes aqui.

Um boato se instalou no local, mas ninguém se atreveu a gritar novamente.

— Eu não entendo como vocês podem defendê-lo com unhas e dentes só porque ele era um pastor. Olhem pra mim. Eu sou um adolescente, e tinha tantos motivos para cometer dois assassinatos na mesma noite quanto meu pai teria para queimar uma Bíblia. – o sol estava se pondo em frente a mim, colorindo o local com faixas luminosas de um laranja intenso.

Não, aquilo não era apenas o pôr do sol. A não ser que o sol estivesse queimando a si mesmo e lançando fumaça preta no céu.

— Acho que é muita coincidência, mas... todos vocês, olhem para trás. - eu repeti o “trás” final sete vezes, mas os sons e gritos de pânico que vieram a seguir abafaram a minha voz enquanto eu gaguejava.

O grupo presente virou-se para encarar a imagem mais inesperada daquela tarde: a própria Igreja Universal em chamas. Antes que eu fosse apontado como culpado novamente, saí pelo portão alternativo e caminhei, sem rumo, anoitecer afora.


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Notas finais do capítulo

Coincidência ou não, eu tive uma crise de pânico antes de terminar de escrever isso aqui, então acho que isso ajudou a descrever as sensações do nosso humilde protagonista.
As tripas pela arte. XD
Ah, e tenho uma novidade bem bad: o T. D. S. Domício, que compartilhava a conta no Nyah! comigo e escrevia os capítulos da Lana, resolveu não participar mais dessa budega.
Ainda não sei como vou me virar sem ele, mas a vida segue - tanto a minha quanto a dele.
Talvez haja um capítulo de despedida, digamos assim, mas não posso anunciar isso com certeza.
É isso, jovens: não sei quando sairá o próximo capítulo, mas a jornada não termina aqui!
Até a próxima.