See The Light escrita por Junebug


Capítulo 2
Capítulo 2




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Life, sometimes it ends too soon

Vida, às vezes acaba muito cedo

Sometimes it ends too soon

Às vezes acaba muito cedo

(…)

And maybe if I hold you now

E talvez se eu te segurar agora

Would you hold me now?

Você me seguraria agora?

(The Mortal Boy King – The Paper Kites)

Will fez questão de ir até a frente atirar o dardo. Nico disse para ele ficar à vontade. Boa parte dos alunos demorava algum tempo para realmente conseguir acertar algum país no mapa-múndi com os olhos vendados. Will Solace, com toda a firmeza do mundo, posicionou-se ali com a venda preta nos olhos e seu primeiro tiro cravou-se num ponto à direita no mapa.

– Japão – resmungou o Sr. D., provavelmente chateado pelo novato não ter pagado mico na frente da sala.

Will voltou para o seu assento, onde virou um pouco de lado para comentar com Nico casualmente:

– Meu pai está no Japão. Tudo bem para você, não é?

– Você acertou exatamente onde queria, não é?

Will sacudiu os ombros. Nico se sentia muito intrigado com o garoto de cabelos louros ondulados e calmos olhos azuis. Queria muito entender a capacidade de Will de afastar os fantasmas. O novato não dava sinal de enxergar as coisas, mas era só Nico encostar nele que elas sumiam. Provavelmente Nico nunca entenderia o motivo, assim como nunca tinha sido capaz de entender sua própria condição.

– Você pode ir para minha casa no domingo para prepararmos – Will continuava a falar com ele.

– A casa dos seus tios?

– Apartamento. È.

Ao fim da aula, Nico descobriu que o apartamento dos tios de Will ficava num dos prédios novos ali da redondeza. Half-Blood Hills era uma cidade razoavelmente grande que vinha crescendo mais a cada dia. As construções mais altas e modernas eram recentes... Muita gente a considerava uma cidade “charmosa”, era verdade, e isso, no fundo, irritava Nico.

Will entrou no seu prédio e Nico seguiu por mais alguns quarteirões até a casa de seu pai. Era uma casa grande com elementos de arquitetura clássica. Seu pai tinha mania de grandeza e dinheiro suficiente para investir nisso. Ele trabalhava com fabricação de jóias e o negócio envolvia transações obscuras com comerciantes de pedras preciosas do mundo todo, por isso passava longas temporadas longe de casa.

Só que naquele dia, o pai estava ali. Sentado na sala com um jornal cobrindo a cara. Nico tentou subir as escadas sem ter que falar com ele, mas não deu.

– Cadê sua irmã? – o pai perguntou, do seu jeito seco habitual.

– Ela deve estar a caminho. Sempre volta com Frank...

– Frank?

– O namorado dela.

– Namorado? Quando foi que eu dei permissão para ela namorar?

Nico revirou os olhos. Típico. Seu pai, que mal sabia os nomes dos próprios filhos adorava se fazer de zeloso só para atormentar a vida deles. Sem dizer mais nada, Nico começou a subir as escadas.

– Se apronte para sairmos em meia hora.

– Sair?

– Vamos pegar sua avó no aeroporto e depois vamos jantar.

Nico já ia perguntar que história era aquela, quando se lembrou a que ele se referia.

– Ela não é minha avó! Por que eu tenho que ir?

– Porque eu estou dizendo que você vai.

Nico entrou no quarto lá em cima e fechou a porta com um baque forte. Largou a mochila em cima da cama e foi para a frente do computador.

Na página de notícias, ele procurou por “garota afogada” nas últimas 24 horas. A notícia mais relevante era a de uma menina de 1 ano que quase morrera afogada na banheira de casa por causa de um descuido do pai. Tentou ser mais direto. “Half-Blood Hills”“garota afogada”. Nada ainda, mas talvez a garota não fosse da cidade. Não seria a primeira.

Uma batida na porta. Nico tratou de fechar a página e girou na cadeira para encarar Hazel, que entrava.

– Ainda não está pronto para ir buscar a vovó? – sua irmã perguntou com uma mão na cintura, em tom brincalhão.

– Eu não vou – Nico respondeu, emburrado.

– Ah, por favor, Nico, não me deixe sozinha com... comeles!

Hazel era boazinha demais para xingar alguém, especialmente gente mais velha. Não era do seu estilo agir como rebelde. Ele pensou que ela ia precisar de alguém para fazer isso por ela nas próximas horas. Suspirou, olhando sua expressão suplicante e disse a contragosto.

– Tudo bem. Por você.

Hazel sorriu e foi até ele.

– Obrigado – ela deu um beijo estalado em sua bochecha, deixando-o vermelho.

******************

Nico sabia que o pai ficava dizendo que a mãe de Perséfone, sua madrasta, era avó deles só para deixa-la irritada. Na verdade, apesar da mulher ter um ar de velha controladora, mal parecia ser mais velha que a filha, que tinha seus vinte e poucos anos. Deméter sabia disso e se vangloriava dizendo que era tudo por causa do seu estilo de vida saudável e do trabalho agrícola. Era dona de várias fazendas no sul, propriedades que pertenciam à sua família desde antes da guerra da secessão, ela dizia orgulhosa, e com isso deixava Hazel enjoada.

Assim que Nico viu a jovem que veio atendê-los no restaurante vegetariano onde a mulher insistiu em ir, sentiu pena dela. A coitada sorriu simpática sem fazer ideia de em que estava se metendo.

– Bem-vindos. Querem começar pedindo algo para beber?

– Chá gelado – respondeu o pai de Nico, prontamente, sem nem ter olhado o cardápio.

– Eu quero um suco de laranja – disse Hazel, simpática.

A garçonete assentiu.

– Suco de pêssego cremoso– acrescentou Nico.

– Certo. E as senhoras?

Perséfone e a mãe continuavam olhando o cardápio atentamente como se escolher um item da lista de bebidas naturebas de um restaurante vegetariano fosse uma coisa muito difícil e importante.

– Tenho uma pergunta. Vocês usam o pó do chá verde já pronto, não é? – perguntou Deméter.

– Hum... sim – a jovem respondeu com um tom de desculpa.

– Típico. Eles pensam que a gente não percebe a diferença gritante... – e lançou um olhar irritado para o pai de Nico, como se a culpa fosse dele.

– Ahn, eu acho... acho que vou querer o suco de romã mesmo – disse Perséfone, como se não estivesse ouvindo as reclamações da mãe. Nico revirou os olhos. Ela sempre fazia isso. Em todas as drogas de restaurantes vegetarianos em que eles já tinham ido por causa das visitas da mãe dela.

A garçonete anotou.

– Me diga uma coisa, vocês preparam o suco adicionando água? – perguntou Deméter.

– Há a opção de não adicionar.

– Mas se eu quiser adicionar, a água é 100% mineral?

– S-sim, senhora.

– Hum, então me traga um suco de tomate, sem água adicionada.

A moça já nem sorria quando se afastou para buscar os pedidos e depois de voltar com as bebidas, estava bem cautelosa ao perguntar:

– Já sabem o que vão querer comer?

– Seus produtos têm atestado de procedência orgânica? – perguntou Deméter, mexendo seu suco como se algo no líquido vermelho nojento do tomate espremido pudesse indicar a presença de agrotóxicos.

Nico decidiu acabar com aquilo:

– Faz o seguinte – ele disse para a garçonete. – Traz hambúrgueres para nós – ele indicou a si mesmo e Hazel ao seu lado – almondegas para ele – apontou o pai, na ponta da mesa retangular – salada de flores bem frescas para ela – Perséfone, ao lado do pai – e para minha avó aqui, tofu grelhado com crosta de cereal e uma salada grega.

A garçonete anotou tudo mais que depressa e se afastou.

Deméter, sentada à frente de Nico, torceu a boca para ele.

– Quando é que vocês vão me deixar levar essas crianças para o sul para ensinar a trabalhar com a terra?... – ela olhava desaprovadora de Hazel para Nico e como se só então tivesse se dado conta, perguntou: - E quando é que a outra vai voltar?

– Ela ainda não voltou nem para as férias de verão – comentou Perséfone, sacudindo de leve os ombros.

Nico baixou o rosto sem querer ouvir falar sobre Bianca. Ele lembrava que a madrasta tinha se mostrado muito satisfeita quando sua irmã tinha decidido, dois anos atrás, que queria estudar no colégio interno para garotas que a mãe tinha frequentado na sua idade, na Itália.

As duas mulheres continuavam com aquela conversa. Seu pai se manifestou. A única coisa em que ele concordava com a sogra era que seus filhos eram mesmo muito ingratos. Nico percebeu Hazel olhando disfarçadamente em sua direção. Ela sabia o que ele sentia quando pensava em Bianca.

Ele queria levantar a voz para defender Bianca, mas ao mesmo tempo sabia que no fundo concordava que ela não devia ter ficado dois anos sem visita-los. Ele estava com os punhos apertados em cima da mesa pensando nisso quando a garçonete voltou com os hambúrgueres e ainda um sorrisinho agradecido para ele.

O hambúrguer de soja não o fez se sentir melhor. Quem em sã consciência escolheria comer uma coisa daquelas quando havia um McDonalds bem ali na outra rua? Só não era pior que comer flor.

No caminho de volta para casa, havia algo errado na velha ponte de ferro. Fitas de isolamento impediam a passagem e um policial estava lá para garantir que ninguém avançasse. Na ponte, Nico viu uma aglomeração de outros policiais e uma mulher que chorava alto.

– O que será que aconteceu? – perguntou-se sua madrasta.

Nico sinceramente não queria saber, mas sua vontade não impediu mais uma visita da menina morta no meio da noite. Ela finalmente conseguira encurralá-lo em seu quarto. Não havia para onde Nico correr, não havia aluno novato para fazê-la sumir, não podia gritar sem acordar as outras pessoas da casa e conseguir uma internação num hospício.

Tudo que ele podia fazer era deitar de bruços com o travesseiro por cima da cabeça e suplicar em murmúrios para ser deixado em paz. A temperatura em seu quarto tinha caído uns dez graus. A cabeça de Nico era preenchida com os pensamentos do fantasma. Sentiu seu corpo caindo do alto da ponte, o impacto com a água não muito limpa, a correnteza carregando-o para longe. A água sufocando-o. Na lembrança que não era sua, Nico não sabia nadar. Agitava os braços inutilmente com o desespero. Estava morrendo. Mesmo estando na verdade ali, sequinho em sua cama, ele podia sentir os pulmões enchendo d’água.

Essa lembrança começava agora a misturar-se com outras mais antigas. Garotas lindas e cruéis debochando de sua aparência. O verão terminando. Sua mãe avisando que não tinha conseguido coloca-la em outra escola. O caminho até a ponte de ferro. Nico sentia toda a raiva que continuava a consumir o espírito da menina. Naquele momento a raiva era dele também.

– Me deixe em paz! – ele procurou dizer mais alto, o rosto enterrado no colchão.

Isso não aconteceu nem quando ele finalmente caiu no sono em algum momento. Pesadelos horríveis o acompanharam até a hora de acordar. Nico se sentia tão exausto que teve vontade de conseguir alguns remédios para apagar o dia todo. Só que ele já tinha tentado isso antes e o resultado tinha sido desastroso.

Ele se obrigou a levantar. Todos na casa ainda dormiam. O espelho do banheiro mostrou o quanto sua cara estava péssima. Ele lavou o rosto com água quente para ver se melhorava um pouco. Trocou de roupa. Desceu até a cozinha e tomou uma xícara de café puro em completo silêncio.

Ainda era muito cedo. A cidade toda ainda estava dormindo. Nico foi até o parquinho a um quarteirão da escola. Um lugar estratégico. Ficou ali sentado num balanço embaixo de um grande salgueiro com suas folhas amareladas pela chegada do outono e esperou, observando a calçada do outro lado.

Aos poucos, começou o movimento. Crianças e adolescentes iam em direção à escola. Muitos atravessavam a praça. Como a rua ficava cada vez mais agitada, Nico temeu que acabasse não percebendo a chegada de quem esperava. Claro que aquele não era o único caminho que Will poderia tomar para chegar à Argo II, mas era o mais curto e óbvio, o mesmo pelo qual tinham seguido no dia anterior.

Nico detestava essa situação. De verdade. Ele não era uma pessoa nada sociável e o novato era meio irritante. Mas não havia outra maneira. Enquanto o espírito vingativo não se afastasse, ele precisava fazer aquilo. Talvez, se ele ficasse bastante tempo perto de Will Solace, o efeito do que quer que o garoto loiro provocava se tornasse mais duradouro... Talvez... era uma esperança desesperada, mas Nico podia tentar.

Quando vislumbrou o que pareciam ser os cabelos louros que ele esperava ao longe. Levantou e atravessou a rua. Will seguia sozinho. Um grupo ia à frente dele. Eles falavam como se tratassem de um assunto secreto e misterioso, mas dava para ouvir perfeitamente o que diziam.

– ...a coitada era torturada por aquelas meninas do grupo da Drew – Nico pôde ouvir uma garota falando. – Dizem que ela mencionou isso num bilhete preso pelos sapatos em cima da ponte.

– Ela era meio estranha mesmo, né? Mas... coitada – disse outro.

Nico ia pouco atrás de Will, pensando numa maneira de abordá-lo e ao ouvir esse fragmento de conversa acabou inspirando com muita força e, ele, que era sempre muito bom em passar despercebido, acabou chamando atenção do garoto louro.

Will olhou para trás e sorriu de leve, parando um pouco para que Nico ficasse ao seu lado.

– Oi.

Nico só assentiu.

– Coisa horrível isso que aconteceu, hein – Will continuou, parecia realmente horrorizado.

– É – respondeu Nico.

Os dois dobraram a esquina e depararam com a viatura da polícia parada em frente à escola. Não havia nenhum policial à vista, com certeza estavam lá dentro, na sala do diretor.

No caminho através do gramado bem cuidado da frente da escola, Nico viu a garota asiática de cabelos frisados e maquiagem de Barbie rodeada pelo seu habitual grupinho de garotas populares. Ela parecia estar tentando disfarçar a tensão da conversa com as amigas.

Nico também se sentiu tenso ao passar por ela. Ele a olhou de lado e, antes que desviasse o olhar, ela o encarou de volta por um segundo. Apesar de não parecer estar em sua melhor forma por causa das últimas notícias, ela ainda conseguiu lhe lançar um dos seus olhares de desprezo.

Quando isso aconteceu, Nico sentiu toda a raiva que não era bem sua voltar a dominá-lo. Ele perdeu a consciência. Não como num desmaio, era mais como se de repente seu corpo tivesse se tornado um robô com defeito, tipo como se Tony Stark de repente estivesse preso em seu traje de homem de ferro, mas outra pessoa controlasse os movimentos.

Sem poder se conter, Nico abriu a boca para gritar:

– Desgraçada!

Ele tinha vontade de cobrir a boca com a mão para se obrigar a parar, mas o que sua mão fez foi avançar para cima da Barbie asiática, com seu corpo e maquiagem perfeitos. A coisa que tomara conta de Nico sentiu uma satisfação enorme ao ver o sorrisinho de Drew Tanaka sumir de seu rosto quando ele a agarrou pelo pescoço e começou a sacudi-la, sem parar de falar:

Você fez isso comigo! Vocês! Vocês é quem deviam ter se atirado! Vocês é que deveriam ter vergonha!

Tudo isso aconteceu bem rápido. A pouca consciência de Nico que ainda restava estava sumindo. Parecia que estava sendo expulso do próprio corpo. Antes que isso acontecesse de fato. Ele sentiu alguém puxa-lo, afastá-lo de Drew, tirar sua mão do cabelo da garota.

Não foi preciso muito esforço da pessoa. Assim que foi tocado, Nico voltou ao controle de súbito. Percebeu que uma aglomeração estava se formando em torno deles. As amigas de Drew gritavam por socorro, mas tinham de afastado. Algumas pessoas que assistiam já tinham celulares focalizando a cena, outras poucas até bateram palmas e assobiaram.

Nico se deixou ser guiado de cabeça baixa pela pessoa que apartara a briga, para longe da confusão. Enquanto se afastavam, ainda pôde ouvir Drew Tanaka se recompor o suficiente para esbravejar:

– Olha aqui, isso não vai ficar assim! Seu maluco! Vai pagar por isso! Esquisitão maluco!

Will levou Nico até o banco de concreto mais afastado do prédio da escola. Ficava numa elevação de onde dava para ver um campo de futebol lá embaixo.

Nico apertava as mãos. Precisava ter certeza de que estava no controle. Estava tremendo e meio que beliscava a costa da mão esquerda com a mão direita. Ouviu Will soltar o ar teatralmente ao seu lado.

– Certo. Explique o que foi isso, Nico Di Angelo.

Nico arriscou levantar um pouco os olhos para ele. O brilho dos olhos azuis de Will Solace o fizeram ter certeza de que o garoto não aceitaria nada que ele inventasse.


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Notas finais do capítulo

Aceito opiniões, sugestões, críticas construtivas e tudo mais ;*