A Bruxa dos Milagres escrita por Star


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Inspirado na singularidade das borboletas azuis



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/645092/chapter/1

“— Escuta, Max. Meu sistema respiratório está falhando e... E está só piorando. Eu ouvi os médicos falando sobre isso quando acharam que eu estava dopada. Eu sei que eu estou só adiando o inevitável, enquanto os meus pais sofrem... e eu sofro também. Não é assim que eu quero que tudo acabe.

— O que você tá dizendo?

— Estou dizendo que estar com você de novo foi tão especial. Eu só queria me sentir como quando éramos crianças correndo ao redor de Arcadia Bay... E tudo era possível. Você fez eu me sentir assim hoje. Quero que esse momento com você seja a minha última memória... Você entende?

— Sim...

— Tudo o que você tem que fazer é aumentar o IV para onze.

— Chloe...

— Eu vou cair no sono... Sonhando com nós duas aqui... Para sempre...

— Chloe, se é isso mesmo que você quer...

— É, sim.

Ela sorriu quando eu me levantei, apesar das lágrimas molhando o rosto. Não estava nervosa, nem com medo. Se posso arriscar dizer, ela parecia muito grata. Eu apertei o botão até os números no mostrador aumentarem e voltei para ficar do seu lado.

— Muito obrigada — ela disse. — Estou tão orgulhosa de você, Max, seguindo seus sonhos. Não se esqueça de mim.

— Nunca.

— Eu te amo, Max. Até a próxima.”

Chloe fechou os olhos. O seu rosto estava molhado de lágrimas, mas ela parecia feliz. Genuinamente feliz. E, acima de tudo, parecia estar em paz.

Uma onda pesada de tristeza subiu pela minha garganta. Eu posso voltar, posso trazer Chloe de volta e fazer com que esse momento nunca tenha existido. Mas quantas vezes mais... Quantas vezes mais vou ter que vê-la morrer?

Desde que o estranho evento no banheiro da faculdade aconteceu e eu salvei sua vida pela primeira vez Chloe parece estar caminhando na corda bamba sobre um abismo. Todas as vezes que tropeça e vacila eu estou aqui para assistir a sua queda e salvá-la, apenas para colocá-la de volta na corda. Não é como Kate, que trilhou seu próprio caminho para a morte, cega pelo desespero e pela humilhação. O fim persegue Chloe e eu não sei por quanto tempo mais posso ajudá-la a fugir. Ou quanto tempo ainda consigo aguentar.

Quando fica claro que Chloe não vai mais se mexer — ao menos não nessa realidade — eu pego o álbum de fotos. Tento focar apesar das lágrimas que estão me atrapalhando e deixam tudo mais difícil. Preciso ignorar a voz sarcástica e fria da minha cabeça dizendo que eu já deveria estar acostumada com esse final trágico. Esfrego a manga comprida do casaco no rosto e tento focar mais uma vez.

O barulho na porta surge de repente. Joyce já a abre falando, sem me dar tempo de me preparar:

— Desculpe por ser tão rude, Max, você não quer algo pra comer? Não temos nada pronto mas posso pedir para William dar uma passada no...

O álbum de fotos escorrega do meu colo e cai no chão com um baque abafado. Não sei dizer o que seu instinto materno primeiro captou como errado, se foi meu estado em lágrimas, o sono pesado de Chloe, a máquina que eram seus pulmões finalmente parada ou se foi de fato o aparelho IV em uma frequência mais alta do que deveria. Ela estanca na parede do quarto, abandonando a frase pela metade e com um sorriso congelado no rosto que aos poucos vai perdendo a forma. Ao passar da suspeita para o terror ela sequer pergunta o que aconteceu. Joyce só chama o nome da filha se aproximando da cama e passa a gritá-lo quando encosta a cabeça no seu peito e não ouve mais o coração bater.

Tudo acontece rápido demais, uma ironia terrível para mim, a garota que supostamente controla o tempo.

Ver a reação de Joyce ao encontrar Chloe morta me destrói por dentro. Joyce sempre foi como minha segunda mãe, uma mulher protetora e guerreira que eu passei a amar, e dói saber que mesmo que seja em uma realidade alternativa eu a fiz sofrer tanto. Eu não tenho o direito de fazê-la passar por isso.

Quando ela finalmente olha pra mim procurando por respostas tudo o que consigo fazer é balbuciar palavras soltas e sem sentido, imersa em um choro culpado e sufocante.

William não demora a aparecer na porta do quarto, atraído pelos gritos de Joyce, para encontrar a mulher em prantos e eu, uma figura ridícula e impregnada de culpa, encolhida ao lado do corpo imóvel de Chloe.

— O que aconteceu? — ele pergunta.

— Chloe não está respirando! — Joyce berra, entre lágrimas, movendo todos os aparelhos que se conectavam à filha. — Algo está errado com ela, Will... Ela não está respirando... William, nós temos que fazer alguma coisa! Por favor, faça alguma coisa!

William se junta à Joyce e juntos os dois puxam fios e apertam botões em monitores tentando trazer Chloe de volta à vida. A cena é dolorosa demais e forço as palavras a virem à tona, por mais que eu não queira.

— Ela... Ela me pediu... — Droga. Será que existe algum ser humano mais miserável do que eu? — O IV... Eu... Eu sinto muito, Joyce...

— Oh, Deus, não. Não, Max, não. Deus, a minha filha não, Chloe, não — Joyce soluça alto, balançando a cabeça enfaticamente e escondendo o rosto nas mãos.

— Nós vamos ligar para a emergência agora. Vamos dar um jeito — William garante, com as mãos sobre as costas da esposa e já sacando o celular do bolso.

O seu rosto parece duro. Ele sua frio e tenta não chorar porque chorar significa se entregar e aceitar e William não é do tipo que aceitaria a morte de Chloe sem luta. Nunca em toda minha vida eu o vi tão sério ou tão magoado.

— Max, por favor, vá embora — ele diz, com o celular colado ao rosto.

— Eu só preciso... — Eu estou errada. Eu sei que estou errada. Fiz uma escolha terrível ao aceitar o pedido de Chloe — mas como no mundo eu poderia negá-lo?? — mas posso consertar tudo se eu pegar o álbum mais uma vez, só por um instante... — William, eu só preciso...

— Vá embora, Max.

— E-eu posso ajudar, eu juro que posso...

— Você já fez o suficiente.

William aperta meu braço e me carrega até a porta da saída, me distanciando à força de Joyce, do corpo de Chloe e do álbum de fotos. Não, não, não era assim que as coisas deveriam acontecer, não é assim que tudo tem que acabar. Ergo minha mão para a frente enquanto ele me leva embora, tentando parar, tentando voltar, tentando fazer qualquer coisa.

Eu preciso voltar, eu preciso voltar antes que tudo isso aconteça, eu preciso voltar e fazer William morrer, eu preciso voltar pra ver a Chloe outra vez, Chloe de cabelos azuis e camisas de banda de rock, Chloe zangada, feliz, triste, Chloe viva. Esse não pode ser o fim... Não pode ser!

As coisas se tornam confusas e minha cabeça começa a doer como quando Kate estava prestes a se jogar do telhado. Não estou voltando, estou congelando tudo ao meu redor, com uma estranha força que parece sugar a cor de todas as coisas, deixando a cozinha, a casa, Joyce e William em preto-e-branco. A dor é como se minha cabeça estivesse presa em um enorme quebra-nozes. Preciso me concentrar, preciso focar, preciso...

Eu preciso voltar...

Até quando?

Eu preciso voltar...

Pra Chloe sofrer sem ter pai?

Eu preciso voltar...

Pra fazê-la morrer outra vez?

Eu preciso sair daqui!

Sinto algo se romper. Como fios de tecido se partindo. Posso ouvir claramente o som alto e súbito. Crack.

Então, tudo se quebra. Chloe, seus pais, a sua casa. Tudo o que posso ver se parte como vidro rachado, como um porta-retrato que caiu no chão, emitindo luz através das rachaduras. Os pedaços continuam a se despedaçar e por fim voam para todas as partes. Por reflexo, levo as mãos ao rosto para me proteger.

Quando abro os olhos novamente vejo o nada. Um infinito de nada. Nem a casa ou William estão aqui, não há chão nem paredes. Para todos os lados que olho vejo apenas a cor branca e centenas, milhares de pequenos cacos de vidro flutuando na imensidão. Olho para o que deveria ser o chão debaixo dos meus pés e quando percebo que não há mais nada alí eu começo a cair.

Talvez a teoria do caos estivesse certa e por ter abusado do meu poder eu finalmente trouxe o apocalipse. Talvez eu tenha destruído toda a Arcadia Bay. Ou vai ver eu só me destruí.

A queda faz meu estômago embrulhar, como descer de uma montanha russa. Faz tanto frio que sinto meus dedos dormentes. Continuo caindo pelo que podem ser minutos ou horas até que o pensamento me ocorre: o que eu fiz?

E principalmente: eu consegui salvar Chloe?

Com a minha noção de tempo e espaço completamente bagunçadas chega até mim o nítido som de choque entre porcelanas. Algo completamente simples e ainda assim tão distinto que seria impossível confundir. Consigo virar com algum esforço nessa queda infinita — já que, aparentemente, eu estava caindo de cabeça para baixo — e encontro a figura de uma mulher sentada em uma cadeira, não muito distante de mim. Ela não parece cair, mas a saia e as longas mangas de seu vestido tremulam, bem como a franja reta e o comprido cabelo azul escuro se agitam levemente ao seu redor. Nas mãos ela segura uma xícara de chá e um pírex de porcelana, de onde veio o som que escutei.

As suas roupas não se parecem com nada que eu já tenha visto. O vestido preto armado com uma saia de babados branca por baixo e o exorbitante laço azul como seu cabelo amarrado sobre o colo a fazem parecer uma boneca em tamanho humano, mas seus olhos de um roxo profundo não permitem que ela tenha um ar infantil.

Eu tenho plena certeza de que nunca a vi antes, mas ainda assim sinto que já a conheço.

Ela está aqui comigo, caindo nas profundezas da não-existência, e mesmo assim não parece nenhum pouco confusa ou preocupada sobre o que está de fato acontecendo. Na verdade eu arriscaria dizer que ela parece entediada. Seu olhar pesa sobre mim e sinto que espera que eu seja a primeira a falar.

Eu poderia perguntar milhões de coisas: você é real? Onde nós estamos? Eu acabei com tudo? Mas opto pela mais simples delas:

— Quem é você? — a pergunta sai da minha garganta seca, arranhando por dentro.

— É um tanto inusual que eu mesma tenha de me apresentar — ela diz, e seu tom de voz é tão indiferente quanto seu olhar —, mas imagino que as circunstâncias peçam o caso. Eu sou Frederica Bernkastel, a Bruxa dos Milagres.

Bruxa?” a palavra percorre estranha pela minha mente. “Isso é impossível”, sinto uma parte minha pensar, enquanto outra rebate com “E por que? Você controla o tempo”.

— Não têm com o que se preocupar — garante, respondendo ao meu espanto. — Eu sou só uma bruxa viajante e fugitiva, me movendo continuamente entre os fragmentos enquanto fujo do tédio.

— Sou Max — falo. — Sou estudante de fotografia... Ou era. Você sabe onde nós estamos?

— Eu achei que você a essa altura já teria descoberto. Você está mergulhando no mar de fragmentos.

Fragmentos de quê?, eu estou prestes a perguntar quando um deles passa rente ao meu rosto. Naquela coisa minúscula que eu pensei ser um caco de vidro partido vejo claramente o rosto de Warren e segundos depois o punho de Nathan vindo lhe encontrar. A briga dos dois no estacionamento acontece dentro do pequeno caco que flutua para longe de mim. Ainda posso ouvir Nathan xingando, mesmo que o caco tenha ido para longe. Posso ouvir a todos os outros, se me concentrar bem. Ouço as vozes de Kate, Alyssa, Victoria. Vejo os rostos de todos eles refletidos nessas lascas.

São fragmentos do tempo.

— Eu... Eu fiz tudo isso?

— Os fragmentos já existiam antes de você conseguir seu poder. Eles são tão velhos quanto todo o universo. Representam os infinitos mundos paralelos com todas suas diferenças e semelhanças. Você não os criou, apenas os encontrou.

— Você sabe sobre mim — afirmo.

— Eu fiz você — ela diz. O seu sotaque é forte e cada palavra dita reverbera pra dentro de mim. Toda essa situação é muita informação para processar de uma só vez e continuo tendo a incômoda sensação de déjavu. Tenho certeza de que já a vi em algum lugar, mas onde?

Quem é você?

A bruxa dá um breve gole no chá, assoprando a fumaça para longe.

— Eu sou Bernkastel, a Bruxa dos Milagres — ela repete o título, com a boca próxima da borda da xícara. — Uma bruxa eterna que já viveu por centenas de anos. Possuo a habilidade de fazer um milagre acontecer, desde que a probabilidade não seja zero.

Fazer milagres acontecerem.

Como voltar no tempo.

— Foi por sua causa que pude voltar no tempo? Você... Me deus esses poderes? — questiono, confusa como nunca. — Por que eu? Por que eu, de todas as outras pessoas do mundo?

— Eu vim porque você parecia algo interessante — ela diz, sem exibir qualquer traço de emoção. — Não tenha duvidas de que partirei assim que não for mais atraente para mim. A verdade é que a eternidade pode ser tediosa e o tédio é o único veneno que pode matar as bruxas.

— Mas... Por que eu? — pergunto. — Você poderia ter escolhido Chloe ou... Ou até mesmo Nathan... Mas eu...

A ideia de ter sido escolhida por uma bruxa por parecer interessante, como uma criança escolhe um pino colorido pela cor, parece errada demais para que eu consiga aceitar.

— Não me entenda errado. Eu não pretendo te ajudar a consertar sua vida ou a manter seus amigos a salvo. Pretendo aproveitar esse conto infinito que você tece até me cansar. É por isso que lhe emprestei meus poderes. Tudo para que eu não fique entediada. Sinta-se livre para se rebelar ou lutar contra mim, se quiser, mas aviso de antemão que de nada valeria. Eu sou a bruxa mais cruel do mundo. Farei qualquer oponente render-se. Então, faça a sua parte. Não me chateie, ok?

— Isso... Isso é cruel — digo, sentindo a frustração criar um incômodo no meu peito. — Você está só se divertindo com o sofrimento dos outros. Desde que me deu esses poderes tenho perdido amigos e visto coisas terríveis. Não importa o quanto eu volte eles sempre têm o mesmo fim. Tenho feito todos que me cercam sofrerem mais do que nunca...

Lembro de Joyce novamente, o choque e o desespero em seu rosto quando encontrou Chloe morta. Lembro de Nathan com o rosto machucado e de Chloe na cadeira de rodas, com o rosto abatido, forçando um sorriso para não preocupar a ninguém. Lágrimas me escapam, desprendem-se de mim e flutuam como pequenas gotas pela imensidão branca.

— Eu não quero mais esse poder! Eu não quero! Eu não quero continuar perdendo as pessoas ou as fazendo sofrer! Isso é cruel, é desumano!

Pela primeira vez o rosto da bruxa se move. Os cantos da sua boca se inclinam em um sorriso sádico e assustador.

— Você acha que sabe o que sofrimento é? — A sua voz se torna mais grave. — Por mil anos eu assisti aqueles que me cercavam morrerem. Sempre escapando das minhas mãos. Sempre fora do meu alcance. Presa em um corpo frágil, não pude salvá-los e tudo o que me restava era resetar o tempo para assistir sua morte, encontrar seus corpos e ouvir seus gritos desesperados por ajuda de novo e de novo. Vivi a eternidade manchada pelo sangue de todos os que amei. Carreguei o peso de suas mortes e continuei a lutar por nossa causa impossível... E você acha que sofre?

Eu recuo, assustada pelo desprezo.

— Por favor... — Imploro. — Tudo o que faço... Sempre... Tudo o que faço parece tornar as coisas piores. — Como a morte de Kate, que não pude impedir. A morte das baleias. E o devastador ciclone que destruirá Arcadia Bay, atraído por minha causa. — Leve os poderes de volta. Eu não quero mais tentar e tornar tudo um sofrimento infinito. Por favor.

A bruxa se recosta de volta na cadeira e leva a xícara aos lábios mais uma vez, deixando de lado o sorriso assustador e voltando à sua expressão indiferente.

— Eu lhe dei as ferramentas. Pode usá-las como quiser. Há um modo de encurtar o fim para tudo isso. Entretanto, se é ele que você deseja, deve estar pronta para sacrificar o que for preciso — ela diz, então move os olhos de volta para mim. — Você sabe do que estou falando?

— Eu... Acho que sim.

Bernkastel abaixa a xícara de volta ao pírex, produzindo outro ruído como o que ouvi antes. Ela suspira profundamente, de olhos fechados.

— Chá de amoras realmente é a melhor mercadoria que já encontrei — solta. — Um pouco caro, mas vale a pena — seus olhos se abrem novamente. A bruxa mantém-se em postura e mais uma vez penso que se não fosse por seus olhos intimidadores, poderia se passar por uma grande boneca. — Eu a levarei de volta. Ter-se-á sucesso ou falhe miseravelmente, é algo que só depende de você. De todas as formas, será interessante de se assistir.

Uma súbita ventania me envolve, me forçando a fechar os olhos. É como ser envolvida por um furacão ou como ser tragada por um gigantesco aspirador de pó.

Quando a sensação desaparece e abro os olhos novamente a primeira coisa que noto é o chão escuro debaixo de meus pés. Um piso familiar, tão real quanto sólido e pelo qual o breve enjôo no meu estômago causado pela queda agradeceu. Não demoro a perceber onde eu estou. Olhando ao redor encontro baldes conhecidos e o alarme de incêndio com a abertura que eu sei estar emperrada. Na boca de um balde uma borboleta de asas azuis está pousada. Finalmente descobri de onde eu já havia a visto antes. Mesmo agora, sinto seus olhos roxos a me perscrutar. Assistindo ao teatro que eu ponho em cena.

No instante seguinte ouço a porta do banheiro feminino abrir e bater. Escuto pela décima vez a conversa entre Nathan e Chloe.

— Você não sabe quem eu sou ou o que eu sou capaz! — Nathan grita, sacando a arma.

— Onde você conseguiu isso? — A voz trêmula de Chloe chega a mim. — O que você tá fazendo? Qual é, abaixa isso!

Escondida atrás do último banheiro, respiro fundo e me lanço para o meu último grande feito heroico.

— Ninguém iria sentir falta da tua bunda punk, iria? — Nathan ralha.

— Tira essa arma de perto de mi—

— Sai de perto dela, agora!

Eu me jogo contra Nathan, que se virou ao ouvir minha voz. O som do tiro lançado pela arma ecoa dentro do banheiro, junto do grito assustado de Chloe.

Caio no chão sentindo minha barriga ferver. Algo molhado se espalha pela minha roupa. Não preciso olhar para saber que pelo meu estômago tudo estaria manchado de vermelho.

— O que você fez?? — Chloe berra, com o rosto vermelho pela força que gritava. — Seu monstro!

Nathan, alterado e assustado, recua até bater com as costas na porta do banheiro e cair no chão. Deixa a arma cair e engatinha para longe até conseguir se levantar e sair correndo, dando de cara com a pequena multidão que rapidamente se formou do lado de fora do banheiro, atraídos pelo barulho alto do tiro. Ele tentou fugir, esbarrando em um e outro, até que seu braço foi agarrado por David, o responsável pela segurança, que perguntou o motivo da confusão toda.

Dentro do banheiro eu tento me levantar, mas a dor é muito grande, então desisto e prefiro me deitar de vez no chão. Sinto um líquido quente escapar em volta dos meus dedos e me esforço para não olhar quanto sangue está saindo de dentro de mim.

— Droga, garota, eu sinto muito que você tenha se envolvido no meio dessa merda toda — Chloe diz, se ajoelhando ao meu lado. Finalmente nosso olhar se encontra. Os seus olhos se tornam enormes de surpresa. Para ela, é a primeira vez que me vê em anos, desde que me mudei para Seattle. Para mim, é a primeira vez que a vejo desde que a matei.

Acho que eu não seria capaz de calcular o quão feliz fiquei só por ver o seu cabelo azul de volta.

— Max?! Max, você... O que você estava fazendo? — Ela diz. Os seus olhos se enchem de lágrimas e Chloe parece ao mesmo tempo tão triste quanto confusa e irritada. — Max, você deveria ter ficado quieta! Max, sua burra, por que foi fazer isso?! Você não devia...!

— Eu... — A dor no meu estômago gera explosões de dor dentro de mim quando tento falar. Respiro fundo e tento continuar. — Eu salvei você...

— O que você está dizendo?... Ah, Max, o que você fez?...

— Eu consegui... Eu consegui salvar você...

— Max, pare de falar. Você vai ficar bem — Chloe me garante, mas sei que ela está com medo, tanto medo. Ela grita por médicos, por socorro, por ambulâncias. A porta do banheiro está aberta e ouço vozes indistintas trocando cochichos, algumas falando com o número da emergência. Chloe se volta pra mim. — Mantenha os olhos abertos, Max. Fique acordada só um pouco, ok? Eles vão conseguir ajuda. Você vai ficar bem.

— Chloe...

Eu tento falar, mas Chloe não permite. Ela me interrompe, segurando minha mão. Está chorando tanto.

— Não, não, você não vai falar mais nada. Não faça força. Tudo vai ficar bem com você, mas não faça nada.

Eu gostaria de falar que estou feliz de vê-la mais uma vez. Queria falar sobre as aventuras que vivemos juntas, mas que ela não se lembra. Queria pedir perdão por não ter sido capaz de salvar o seu pai. Queria que pudéssemos conversar mais uma vez, juntas no seu quarto, com o som ligado e a fumaça do seu cigarro acima das nossas cabeças. Eu diria que sinto muito pelo que houve com Rachel, por nunca ter telefonado quando me mudei, por tudo, mas sinto que esse dia não vai existir.

— Eu te amo, Chloe — digo.

— Max, não!

— Até a próxima.

OoO

O assassinato de uma estudante cometido por outro estudante dentro da faculdade em plena luz do dia trouxe a atenção da mídia nacional para Arcadia Bay. Em pouco tempo a investigação policial trouxe à tona o envolvimento da família Prescott com o tráfico de drogas local e outros esquemas ilícitos de lavagem de dinheiro e fraude fiscal. Aos poucos, a família Prescott, apesar de lutar com unhas e dentes, foi naufragando como o grandioso Titanic. A descoberta dos cadáveres de três adolescentes e evidências ligando os casos com a família foi a última gota necessária para decretar o fim do reinado Prescott sobre Arcadia Bay. Nathan, condenado por assassinato, foi internado em um instituto especializado para transtornos mentais após descobertos os pesados compostos químicos com os quais seu pai lhe medicava para mascarar suas tendências psicóticas.

Arcadia Bay foi salva dos Prescott e com o passar do tempo não testemunhou nenhum fenômeno metereológico absurdo como a queda de neve durante o verão, a aparição de duas luas no céu noturno ou um ciclone que devastaria mais da metade da cidade.

Dois anos depois do ocorrido, Chloe Price visitou pela última vez o túmulo de Maxine Caulfield. Ela finalmente tinha conseguido uma bolsa de estudos na Flórida e estava pronta para deixar para trás a cidade após juntar dinheiro por dois anos trabalhando como garçonete, ajudando na oficina mecânica e dando aulas de violão.

Agora de cabelos pintados de laranja, Chloe se sentou ao lado do túmulo mais uma vez para ver o pôr-do-sol e perguntou porquê Max se sacrificou em seu lugar, mesmo sabendo que não teria qualquer resposta. Ao olhar para trás quando saia do cemitério viu borboletas azuis circulando o túmulo onde deixou suas últimas flores, como acontecia em todas as outras vezes. A aparição delas era mais uma questão para a qual jamais tinha recebido resposta. Aceitando aquele mistério como o era, Chloe se despediu e entrou no carro para seguir viagem, deixando para trás a cidade onde enterrou seu pai e as duas melhores amigas que tinha amado.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Não sei dizer exatamente como tive a ideia pra criar isso, só sei que ela me veio de súbito, extremamente clara e simples, parecendo tão óbvia que eu quase tinha certeza que alguém já deveria ter escrito algo assim antes. Mas foi principalmente inspirado no capítulo 4 de LIS, depois da Max matar a Chloe por piedade, quando ela tentava focar na foto me veio o pensamento de "E SE ela não conseguisse focar?". E aqui a história está.Tenho noção de que não são muitas as pessoas que conhecem Life is Strange ou Umineko, quem dirá que conheça os dois, e que provavelmente essa oneshot vai ficar esquecida e ignorada nas vielas do Nyah por bastante tempo, mas estou feliz de ter conseguido colocar essa ideia no papel (ou, no caso, no word). Se leu como um fã de Life is Strange, por favor comente dizendo o que achou da Max e das suas ações.Se leu como um fã de Umineko, por favor comente dizendo se a Bernkastel ofereceu um dom ou só a corda pra Max se enforcarSe leu sem conhecer nenhum dos dois, pode dizer se conseguiu entender algo XDInclusive: O ~Milagre~ do título, no caso, não seria da magia, do poder, ou de qualquer que fosse, mas o milagre causado por Max que, ao se sacrificar salvou toda a cidade :)