Um filho teu não foge à luta escrita por Kizimachi


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Capítulo único.



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Abri os olhos. Na verdade, não sei se tive a ilusão de abrir ou estava num local totalmente escuro. Pisquei algumas vezes para ter certeza que estava com os olhos abertos, e arregalei os olhos, numa falha tentativa de adaptar as retinas à escuridão. Me conformei que, no momento, não poderia contar com a minha visão, então tentei me mexer. Meus braços permaneciam firmes amarrados nas costas do que parecia ser uma cadeira, enquanto minhas pernas estavam também fortemente amarradas nos seus pés. Tentei me jogar para frente, mas meu tronco também estava amarrado à cadeira, e, em seguida, tentei me jogar para o lado, numa frustrada tentativa de quebrar a cadeira, já que a mesma estava fortemente fixada no chão.

– Droga... – sussurrei. E então pareceu que um sol surgiu no recinto.

Algo foi aberto e uma forte luz me cegou temporariamente. Quando consegui recuperar a visão, a luz já não estava presente, porém, eu ouvia o barulho rítmico de passos vindo em minha direção. O barulho cessou, dando lugar ao som de algo sendo arrastado. Em seguida, um barulho abafado de coisas sendo colocadas em uma superfície sólida, até que uma fraca luz foi acesa. Aparentemente, meus olhos se adaptaram depois da forte exposição anterior, então, dessa vez, não tive problemas. À minha frente, estava um senhor de meia idade, vestindo um terno preto desbotado. A sua frente, tinha uma mesa, e, sobre ela, uma pilha de papéis e envelopes, além de uma maleta de mão também preta. Ao fundo da sala, pude ver o contorno de uma porta, aparentemente a origem da forte luz anterior. Tentei novamente me mexer, e, como esperado, novamente sem sucesso. O senhor, que me analisava friamente, limpou sua garganta, puxou um envelope que estava no topo daquela pilha e começou a falar com uma voz arrastada:

– Bem... – Abriu o envelope e tirou de lá um papel - Humberto Souza de Carvalho... 24 anos... Jornalista, mais precisamente colunista... é você? – Voltou seu olhar frio para mim.

– Me deixa sair da... – Mal pude terminar minha fala e o senhor continuou.

– Preso – Um calafrio me percorreu - por: incitar, subliminarmente, movimentos populares e ideologias perigosas ao bom andamento da sociedade em suas crônicas semanais para o jornal Rio News. – Ele deixou a folha de lado na mesa e arrastou a pilha de papéis em minha direção, que caiu no meio do caminho, dando-me uma visão do seu conteúdo: eram recortes das minhas crônicas para o jornal – Repito: é você?

– Apenas me deixe ir, por favor. – O senhor, por uns 5 segundos me analisou, e então respirou pesadamente, se esticou em minha direção e acertou um forte tapa no lado esquerdo do meu rosto. Senti esse lado arder, à medida em que um certo desespero começava a surgir em mim.

– Você não está em uma posição favorável para pedir coisas, jovem. Agora me responda: o que tem contra o governo e suas metodologias em prol do bom andamento da sociedade brasileira?

– Não te responderei nada. – Novamente, o senhor se esticou em minha direção e me acertou outro tapa, dessa vez do outro lado da face.

– Perguntarei novamente, e conto com sua colabora...

– NÃO TE RESPONDEREI NADA! – Gritei o mais alto que podia. O senhor, sem nenhum indício de surpresa, me olhou como se já estivesse acostumado com aquela reação. Respirou fundo como da primeira vez que me bateu e falou:

– Então tá, teremos que usar a metodologia eficaz. – Ele se levantou, e abriu sua maleta. Enquanto isso, pude claramente ver um crachá em seu terno: DOPS. Meu coração falhou por um segundo. Realmente o DOPS estava por trás de todas aquelas atrocidades com os intelectuais, os que desejavam mudança e liberdade. Aparentemente, meu fim estava próximo.

Ele tirou um objeto metálico brilhante o posicionou na mão. Pude ver que era uma soqueira, e, em seguida, ele se colocou em posição de me socar, me restando apenas fechar os olhos e aguardar a dor, mas algo diferente aconteceu. Um forte barulho de explosão tomou conta do lugar, em seguida dando lugar ao som de balas. Abri os olhos e pude ver o senhor correndo em direção a porta. Já acostumado com a luz que de trás dali vinha, pude distinguir outra porta, mas o senhor tomou o caminho da direita, e, em cerca de 10 segundos, os barulhos de bala cessaram, restando apenas o som de passos apressados na direção da sala em que eu estava. Um homem de, aparentemente, 30 anos entrou na sala, e, ao contrário do senhor, este não trajava roupas formais, pelo contrário, usava uma calça desbotada e uma camisa rasgada.

– Quem é você? – Perguntei.

– Não há tempo para perguntas. – Ele cortou as amarras e me ajudou a levantar da cadeira, me conduzindo apressadamente até fora da sala. Pude ver que era um corredor com cerca de 20 portas espalhadas em seu percurso. – Pegue isso e vá até a Rua Amarante Alves, Número 2679, Apartamento D, sem desvios no caminho. Vá, rápido, nessa direção! – Me entregou um chaveiro, empurrou-me levemente e apontou para um dos lados do corredor. No fundo, conseguia ver uma porta escancarada.

– Mas espere, quem é vo... – Não terminei a pergunta, já que o estranho disparava na outra direção. Pensei em segui-lo, mas mudei de ideia quando ele, ao dobrar no fim do corredor, começou a disparar balas. Fui na direção apontada, e descobri que o que restava da porta era uma saída de emergência. Passando-a, me deparei num estacionamento, em que havia 3 carros e uma moto. Olhei novamente o chaveiro. Nele haviam duas chaves, uma para porta e outra, possivelmente, para aquele moto. Subi nela e confirmei minha tese ao ver que a chave se encaixava perfeitamente. Liguei a moto e parti em direção à saída daquele prédio, que, ao observar o ambiente ao redor, descobri ser afastado da cidade. Em cerca de 20 minutos por um caminho de barro, o único caminho que dava acesso aquele edifício, estava na rodovia principal, e, em 10 minutos, estava entrando na Cidade Maravilhosa.

­∞

Às 10 e meia da noite, cheguei no local indicado. O endereço me dado me levada a um conjunto de apartamentos de 3 andares, cada andar com 2 apartamentos. O D ficava no segundo andar, e a chave que foi dada se encaixava e abria perfeitamente a porta. Surpreendi-me ao ver que o apartamento tinha pouquíssima mobília, dando para contar nos dedos de uma mão: uma mesa, uma poltrona, um rack, uma televisão e um leitor de fitas VHS. O único quarto, o banheiro e o espaço que deveria servir para uma pequena cozinha estavam vazios, e todas as janelas estavam cobertas por tábuas. Em uma das paredes (todas brancas), uma curta e objetiva frase em preto me chamou a atenção: “A fita”. Imediatamente, observei que na mesa havia uma fita. Coloquei-a no leitor e liguei a televisão. O vídeo iniciava com uma tela vermelha e um chiado, como um som de um rádio fora de sintonia, porém logo dava lugar a um vídeo de um homem, olhando fixamente para a câmera. Percebi que era o homem que me salvou, e era exatamente nesse local que estou.

– Atenção. Se está vendo esse vídeo, provavelmente você é o meu sétimo a ser salvo, e provavelmente estou morto. Não sei quem você é, mas você sabe a verdade sobre esse governo opressor, e está determinado a muda-lo. A população demorará a juntar suas forças, e, até lá, não conseguiremos muita coisa. Não se agirmos de jeitos convencionais. Preste bastante atenção. Temos que mexer com o governo, para que eles saibam o nosso poder. Para isso, simples palavras ou fotos não bastarão, ações têm que ser tomadas. Para isso, você é necessário – e apontou para a câmera -, você é o meu sétimo. Vá diretamente à Baia de Guanabara, lá, vá até o estaleiro G, e procure Ronald, meu irmão. Você passará um tempo fora do país, e será treinado para mudar sua nação. Caso não esteja acreditando em mim, lembre-se que está em débito por eu ter te salvo, então honre minha memória. Um filho do Brasil não foge à luta. – E a tela vermelha com o chiado voltou. Raciocinei por um tempo, e então percebi a grande responsabilidade que estava em minhas mãos: continuar o legado daquele cara misterioso. Aparentemente, o que ele dizia era verdade, já que eu soube que nos últimos 3 meses seis bases do DOPS “passaram por reforma”, como eles publicaram nos jornais manipulados.

– Verás que um filho teu não foge à luta. – Falei para mim mesmo, desliguei a televisão, tranquei a porta e segui em direção à Baia.

Chegando no estaleiro G, um local praticamente vazio no porto, e encontrei um barco de médio porte ancorado, enquanto um homem estava sentado em um banco, tocando violão e cantando baixinho:

– ... nas escolas, nas ruas, campos, construções... – Perigosamente, ele cantava Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, exilado.

– Se não quer ser exilado, melhor parar de cantar isso, cara. – Falei

– Um filho não foge à luta, meu caro. – Falou com coragem. Por isso, achei que era o irmão do meu salvador.

– Ronald? – Então, ele criou uma expressão de surpresa. Deixou o violão de lado e se levantou.

– Então você é o sétimo. – A expressão de surpresa deu lugar à uma certa tristeza – Descanse em paz, meu irmão.

– Como sabe que ele está morto?

– Ele disse que seu sétimo ato seria o maior. Invadiria uma das maiores bases do DOPS, e escolheria seu sucessor. Você, no caso. Deve ter levado muitos militares corruptos com ele.

– Como assim ato? Por que ele faz isso tudo?

– Não há tempo para perguntas, jovem. – Definitivamente, era irmão dele – A Inglaterra te espera.

– Como assim Inglaterra?

– Se você veio até aqui, é porque topou o “desafio” – gesticulou umas aspas no ar – do meu irmão. Você terá que deixar de lado imagens e palavras como formas de protesto. Estão sendo inúteis.

– Obrigado pela parte que me toca. – Falei ironicamente.

– Como assim? – Perguntou curioso.

– Sou colunista, e fui preso por, subliminarmente, esculhambar essa forma de governo.

– Você quase suicida, jovem. Mas, voltando, ações devem ser tomadas, assim como meu irmão fez. Como você deve ter estudado em história, a Inglaterra é um dos berços do iluminismo, e o Brasil precisa ser iluminado, se é que me entende. Lá, mais precisamente em Londres, você será treinado para usar o iluminismo não só como forma de ideologia, mas como forma de ação. – Encarei-o por um tempo.

– Toda criança teve o sonho de ser um super-herói mesmo. Mas e minha família? Digo, o que restou. Meu pai foi torturado, e está preso. Minha mãe morreu no meu nascimento.

– Acredite em mim, seu pai ficará melhor preso. Se ele estivesse solto, provavelmente o matariam por ter um filho fugitivo. Quando você voltar, terá tempo suficiente para resolver tudo isso.

– Como assim “quando eu voltar”? Quanto tempo ficarei lá?

– Cerca de dois anos.

– Dois anos?!

– Sim. O treinamento é longo. Vai ou não?

– Por que você mesmo não segue esse legado?

– Já estou fazendo a minha parte de outra forma, acredite.

– Mas... na verdade, tenho alguma outra escolha?

– Tem. Ser caçado até a morte por eles. – Dou um longo suspiro e tomo a minha decisão.

– Tudo bem. Eu vou, por amor ao Brasil.

– Muito bem, garoto. Vamos, é um longo caminho.

Rio de Janeiro, 1978, sexta-feira, 16h50.

Há 4 meses, voltei pro Brasil, e, nesse tempo que fiquei fora, a tensão e a crise apenas piorou. Voltei carregando o que poderia ser sua última luz. Do meu árduo e longo treinamento ideológico, psicológico e militar na Inglaterra, mudei minha identidade completamente, aprendi a atirar com qualquer tipo de arma, várias artes marciais, os princípios do iluminismo, a controlar e suprimir meus sentimentos, a importância do sétimo ato, e o mais importante para o momento: O Estado deve temer o seu povo. Passei a agir completamente mascarado e nas sombras, afinal, eu queria representar toda uma nação, e não só o antigo Humberto.

Essa noite, seria meu sétimo e último ato, o início do apogeu da população, e do fim do atual estado. Meus últimos 6 atos aconteceram nos últimos 3 meses. Em que salvei 6 pessoas de interrogatórios ou torturas. Nunca revelei-as minha identidade, mas sabia a de todos eles: José Duarte, Nicholas Eliaquim, Mario Alencar, Robert Souza (meu pai), Lorena Eliza e Dilma Rouseff. Devo admitir que quase sentia uma certa angústia ao não pode abraçar meu pai e revela-lo a real pessoa por trás desse pseudo-herói, mas o treinamento de supressão de emoções não foi em vão. Pelo menos agora ele está à salvo. Sobre a Dilma, senti nela uma forte vontade de representar toda uma nação.

Agora, cá estou eu no topo de um prédio de 16 andares, há 200 metros de um grande edifício, aparentemente abandonado, mas que servia como uma das bases pro DOPS. Mas minha atenção estava voltada para a direção oposta do edifício, numa das praças cívicas da cidade, em que cerca de 4 mil pessoas protestavam, pedindo a volta da democracia. A democracia que eles recebiam era a opressão dos policiais, que recebiam-nos com pauladas. Observava tudo de um binóculos militar.

– Hm. Vocês deveriam estar protegendo-os, e não o contrário. – Falei para mim mesmo – Peculiar... – continuei, enquanto caminhava até a extremidade do topo do prédio que dava para visualizar o edifício abandonado – assim posso definir essa metodologia de “bom andamento da sociedade brasileira”, como dizia meu antigo amiguinho. Que má educação dele! Nem me disse seu nome. – Procurei com o binóculos um artefato que deixei ontem à noite em uma varando no segundo andar do edifício abandonado. Não escolhi aquele local à toa, afinal, tinha calculado a hora em que o sol, naquele período, iluminaria com maior intensidade aquela varanda. – Hm... 4 horas e 56 minutos, assim como calculei.

Coloquei meu rifle de precisão apoiado no parapeito do prédio, regulei o compensador para 200 metros e procurei o pequeno reflexo da luz solar no espelho que coloquei propositalmente no artefato. Segurei minha respiração, mirei no reflexo e puxei o gatilho. Em dois segundos, um grande barulho de explosão tomou conta das redondezas.

– Bum. Agora é só esperar os peões avançarem... – Troquei o cartucho do rifle por um cartucho de “dardos” tranquilizantes e voltei a observar na sua mira. 4 homens vestidos em ternos pretos saíram correndo no térreo do local e olharam para cima, em direção à explosão. Prendi a respiração e acertei um careca, que, imediatamente caiu desacordado. Um que estava mais perto dele percebeu e se ajoelhou ao seu lado, tentando entender o que estava acontecendo. – Não gosto de jogadas fáceis... – Mirei em um que estava mais afastado e acertei-o. Sem soltar a respiração, acertei outro. – Bem, agora você é o último. – Ele olhou para os outros companheiros caídos, se levantou e tentou correr de volta para o edifício – Ótimo! Um pouco de dificuldade. – Já que o movimento era previsível, mirei exatamente no portal de entrada do edifício, e, quando o último homem chegou lá, segurei a respiração e atirei, acertando-o – Fácil. – Juntei minhas coisas e, escondido, fui até o edifício “abandonado”. Como ele estava marcado para demolição, os bombeiros e a população achariam que estava começando, e não se importariam com a explosão.

Chegando lá, conferi os corpos desacordados. Teriam mais umas horas de sono, pelo visto. Entrei no edifício rapidamente, seguindo as poucas luzes acesas, até uma sala com a porta escancarada, como se alguém tivesse saído com pressa. Abri-a totalmente e encontrei uma mulher de cabelos negros e curtos completamente amarrada numa cadeira.

– Dejavu. – Falei. Seus olhos de tonalidade azul elétrico me encaravam atonitamente. Bem, pelo visto, pegariam mais pesado com ela, já que ela estava com uma amarra na boca, e, na mesa à sua frente, só tinha instrumentos de tortura. Ela murmurava algo. – Deixe para falar depois, jovem. – Saquei uma das 11 lâminas que carregava no meu conjunto de roupas e cortei todas as suas amarras – Não entendo “murmurês”.

– QUEM É VOCÊ? – Ela gritou com um certo ar de desespero.

– Não há tempo para perguntas, jovem. – Falei, imitando a tonalidade daquele que tinha me salvo há dois anos, coisa que fiz nos últimos seis salvamentos, tendo em vista que todos faziam a mesma pergunta. Humanos, tão previsíveis...

– Por que está vestido desse jeito? O que vai fazer comigo? – Ela continuava a perguntar.

– Apenas confie em mim, vim te salvar.

– Por que eu confiaria em você?

– Porque, na verdade, eu meio que já te salvei.

– Como posso confiar em você?

– Eu te sal...

– Outra razão! – Que mal educada, atrapalhou minha argumentação.

– Então tá, sente-se na sua cadeira que chamarei os seus amiguinhos para tortura-la, enquanto jogo paciência.

– Não!!! – Ela falou apressadamente. Dei de ombros.

– Então... vai me seguir? – Falei apontando com o polegar para a saída.

– Tenho outra opção? – O que tinha de bonita, tinha de teimosa.

– Tem, ficar e ser tortu...

– Tá, eu vou!

– Ok. Vamos, estou de moto.

Guiei-a até o veículo, subimos, dei partida e fui em direção ao camarote especial: o Cristo Redentor. No caminho, ela falava coisas, mas, pela velocidade em que eu pilotava, não pude entender. Pela pressão que ela fazia na minha cintura, acho que estava reclamando da velocidade. Tomei um caminho alternativo para o topo do morro, e, às 6 e meia da noite, chegamos lá. Como todas as minhas ações são calculadas, eu sabia que, nesse dia e nesse período, o Cristo estaria fechado para visitas, e esse meu caminho já dava no seu estacionamento. Lá, apenas um guarda noturno restava. Ele veio até nossa direção.

– Senhor, não estamos abertos à visi... – Apaguei-o com um soco na têmpora. Ficaria desacordado por alguns minutos. Desci da motocicleta e coloquei-o de volta na sua cabine, mais precisamente na sua cadeira.

– Quando acordar vai pensar que tirou um cochilo. Vamos, me siga. – Guiei-a até um lance de escadas que levava a um restaurante um pouco abaixo da colossal estátua, mais que tinha igual visão para todo o Rio de Janeiro. Destranquei a porta facilmente com um dos truques que aprendi na minha “viagem de estudo” e entrei. Fui até uma das janelas do restaurante, a que tinha a melhor visão para o grande Maracanã. – Bem, agora pode fazer suas perguntas. – Autorizei-a.

– Quem é você?

– Um homem mascarado. – Respondi tranquilamente.

– Bem, isso eu percebi. – Ela falou ironicamente.

– Claro que percebeu, não estou questionando suas capacidades cognitivas. Estou apenas enfatizando o paradoxo que é perguntar a um homem mascarado quem ele é.

– Oh... – Ela foi pega de surpresa por essa resposta – tudo bem, me chamo Thalia.

– Belo nome para uma bela mulher, Thalia. – Tive certeza que ela corou – Por que foi presa? – Perguntei.

– Sou colunista, e, implicitamente, andei falando mal desse lixo de governo. – Nesse momento, levantei a cabeça em surpresa, ainda de costas para ela. – O que foi?

– Nada. Apenas aprendi que, em tempos como esses, você está sendo uma suicida.

– Percebi tarde... espera, como devo te chamar? – Voltei-me para ela.

– Bem, pode me chamar de Nação.

– Por que Nação?

– Thalia, em momentos como esses, palavras não bastam. Temos que agir. Temos que criar a luz da salvação. Por isso te salvei, por isso estou nessa. Não sou o único na história a agir, mas sou o único atualmente falando. Você é a sétima pessoa que salvei, e sete é um número que gosto, então resolvi que seria meu último e mais importante ato.

– O quê? Me salvar? – Ri rapidamente.

– Isso é apenas o epílogo do ato, Thalia. Você será a espectadora dessa peça magistral. Em ... – olhei o relógio: 6 horas, 59 minutos e 5 segundos – alguns segundos o espetáculo começará. Já armei tudo. Venha pro meu lado, a visão é a melhor. Ela se acomodou do meu lado, encostada na janela.

– Tá, o Rio de Janeiro.

– Fixe seu olhar no Maracanã - falei e olhei, de relance, seus belos olhos, que, por alguma razão, me atraíam.

– Mas não está tendo jogo, nem aparentemente nenhum movimento humano lá, pelo dia e hora.

– Exatamente por isso, escolhi-o como cenário da minha peça. Vai começar – logo em seguida, meu relógio apitou, marcando 19 horas.

Meu plano funcionou, e todo o circuito que montei lá um dia antes também. Um grandiosíssimo incêndio começou no gramado do Maracanã.

– O QUE VOCÊ FEZ? – Ela gritou preocupada – ESTÁ COLOCANDO VIDAS EM RISCOS!

– Você mesma admitiu que não está tendo nenhuma atividade lá, Thalia.

– Mas o incêndio pode se espa...

– Não vai. – Me virei e fui em direção à uma televisão que tinha no centro do restaurante – Tudo que faço é friamente calculado. – Liguei a televisão – Veja, daqui a pouco a transmissão do Jornal Nacional será interrompida. – E assim aconteceu. Em cerca de 1 minuto, a transmissão de uma notícia irrelevante deu lugar a um boletim urgente, em que orientava as pessoas a ficarem em casa, pois “uma ação terrorista acabou de acontecer no Maracanã”.

– Então agora você é um terrorista. – Ela falou. Dei de ombros.

– Não gosto de denominações, mas você verá o resultado das minhas ações em breve. Agora, já que todos estão em casa, tenho um assunto a tratar com alguém importante. – Joguei em sua direção a chave de moto – Vá para casa, Thalia. Em pouco tempo você verá as mudanças. – Também entreguei-a a sua ficha de ordem de prisão, que eu tinha pego em cima daquela mesa da sala que ela estava. – Também destrua essa ficha e você estará salva.

– Obrigada. – Ela agradeceu e fez algo que eu não esperava: me abraçou. Senti o seu ótimo cheiro e senti vontade de retribuir o abraço, porém tinha que controlar meus sentimentos para concluir essa missão. Percebendo que eu não retribuía, ela logo me soltou – Te verei de novo?

– Não. – Falei e pulei a janela, começando a longa descida do morro pelas encostas.

Eu sabia que, depois de terminar isso tudo, acharia um jeito de vê-la, não mais como Nação, mas como o antigo Humberto. O Nação seria devolvido a toda a população brasileira após o meu sétimo ato. Agora, eu tinha que falar com alguém que eu sabia que seria determinante para um futuro: João Figueiredo.

Às 8 horas e 20 minutos da mesma noite, eu estava no topo de um prédio próximo ao Hotel próximo à praia de Copacabana que João Figueiredo estava hospedado. Ao longe, eu podia ver uma longa coluna de fumaça e, durante todo o meu trajeto até aqui, eu via carros do corpo de bombeiros indo em direção ao maracanã, policiais e militares fechando algumas ruas, enquanto soava um toque de recolher. No pátio do Hotel, a segurança foi multiplicada.

Eu observava pelo meu fiel binóculos militar as janelas do hotel, até que de relance vejo um homem conversando no telefone do quarto. Aproximo o binóculo e vejo que havia uma certa aura de impaciência no homem. Em seu peito havia inúmeros distintivos militares, e sua descrição física era semelhante a que eu sabia. Aquele é o João. Do topo desse prédio que estou até o topo do Hotel são cerca de 50 metros. Poderia tentar ir caminhando por baixo, mas, mesmo conhecendo várias táticas de furtividade, eram muitos seguranças vigiando todo o perímetro. Também poderia improvisar uma tirolesa, e seria essa a minha escolha. Peguei meu atirador de ganchos e procurei algo fixável no topo do Hotel. Coincidentemente, achei um para-raios no local e atirei o gancho em sua direção.

– Que droga! – Sussurrei para mim mesmo ao ver que não fui feliz no tiro. Porém, enquanto o ganho voltava, ele se fixou no parapeito do Hotel. Puxei a corda várias vezes para conferir e concluí que estava segura. Fixei o atirador numa grade próxima a mim e utilizei minha capa como suporte para descer verticalmente pela corda. Como o gancho estava no parapeito, eu teria que entrar pela janela logo abaixo do mesmo, e, para a minha sorte, ela estava aberta. Me soltei graciosamente antes do impacto, adentrando uns metros no quarto, que estava sem luz e sem presença humana. Pelos utensílios no mesmo, concluí que fosse um quarto de despejo. Fui até a janela, saquei uma lâmina e cortei a corda para não deixar indícios da minha ação. Pelos meus cálculos, eu estava no oitavo andar do Hotel, e João Figueiredo estava no andar logo abaixo do meu. Fui até o interruptor do quarto, desparafusei-o e mexi em alguns fios, provocando um curto-circuito que, pela minha intuição, abriria as chaves do caixa de fusíveis, cortando a energia até alguém reativá-los. Eu teria que agir rápido.

Abri a porta silenciosamente e usei a pouca luz que vinha da rua para me guiar até as escadas. Desci-as rapidamente e, antes de adentrar no corredor principal daquele andar, ouvi passos. Me encostei na parede e olhei de relance pro corredor, vendo alguém saindo de um quarto e fechando a porta. Ouvi o barulho da chave sendo passada e os passos recomeçaram, cada vez mais pertos. Calculei o tempo exato para minha manobra. 1... 2... 3... e agarrei o homem que surgia no meu campo de visão, prontamente cobrindo sua boca e dando uma cotovelada na sua nuca, atordoando-o. Coitado, mal sabe o que aconteceu. Chegando em frente ao meu destino, tentei lentamente rodar a maçaneta, mas a porta estava trancada. Peguei um ganho num dos bolsos da minha roupa e, rapidamente, destranquei a porta, abrindo-a lentamente.

João estava encostado na janela, falando ao telefone. Silenciosamente, fechei a porta, tranquei-a, peguei uma lâmina e atirei-a em movimento giratório no fio do telefone, atravessando o mesmo e fixando-se na parede.

– Alô... Alô? – Em seguida, olhou para o telefone. Ao ver o fio torado e a lâmina na parede, olhou em minha direção. – Quem é você?! – Perguntou apressadamente. Calmamente, sentei-me na cama da suíte.

– Ora, sempre fazem-me essa pergunta, e não é algo tão simples de entender, especialmente para você – Ele riu em desprezo e balançou sua cabeça negativamente.

– Seja lá quem você for, está muito encrencado. – E fez movimento de tirar algo de uma gaveta. Prontamente, joguei lâmina na mesma, antes que ele abrisse-a. Ele olhou para mim e levantou as mãos em sinal de rendição. – O que você quer?

– Bem, João Figueiredo, é um tanto quanto estúpido perguntar a alguém mascarado quem ele é, não acha? Mas pode me chamar de Nação, porque é isso que eu represento, e não sou eu quem quero algo, mas sim, quem eu represento.

– A nação? Ela está muito bem! – Ri cinicamente.

– A sua nação de militares opressores? Claro que está. Oprimindo a real nação, a população.

– Oprimindo? Estamos construindo o futuro de vocês!

– Não. Vocês estão destruindo o nosso futuro. Tiraram todas as nossas liberdades, nos colocaram em um cercado e nos guiam para onde vocês querem. Vocês deveriam nos proteger, e não nos oprimir.

– Não é opressão. Estamos apenas eliminando ameaças ao andamento do Bra...

– Ameaças aos seus pensamentos nocivos e perigosos. Sim, é isso que vocês estão fazendo.

– Você é perigoso, Nação.

– Exatamente, meu caro! – Falei, gesticulando - A Nação pode ser bastante perigosa ao seu Estado quando está descontente. – Ele bufou.

– E o que vocês poderiam fazer perante um governo militar?

– Veja bem o que apenas uma pessoa fez. – Falei apontando para a grande coluna de fumaça.

– Então foi você?

– Parabéns, achou o pote de ouro, meu caro! – Falei ironicamente. Ele baixou a cabeça pensativo, e em seguida se encostou de novo na janela. Olhei para o meu relógio. 8 horas, 39 minutos e 30 segundos. Cheguei mais próximo dele – Bem, está vendo aquele barco na a uns 10 quilômetros da praia?

– Sim. Parece abandonado.

– Então, observe atentamente o que o poder de apenas uma pessoa pode fazer em 5... 4... 3... 2... 1...

E o navio, realmente abandonado, explodiu, conforme os preparativos que eu tinha feito no mesmo há 10 horas.

– Você é um terrorista.

– Sete já me chamaram de herói. – Ele, com uma expressão derrotada, olhou novamente para mim.

– O que quer comigo, afinal?

– Bem, eu soube que você é o candidato do ARENA para as eleições na próxima semana. E, até então, está sendo o mais provável de vencê-las.

– Prossiga.

– Responda-me sinceramente: como você avalia o governo militar até agora?

– Proporcionamos um milagre econômico.

– Mas estamos afundados em uma crise sem precedentes, tanto econômica como política. E aí? O povo clama pela volta da democracia, João.

– Sim, mas e o que eu posso fazer? Sendo bastante sincero, não sou um dos mais contentes com toda essa situação. – Minha esperança na humanidade acabou de aumentar.

– Agora sim estamos conversando como cavalheiros. Você vencerá a eleição, isso é inevitável. E você – coloquei o indicador em seu peito, coberto por distintivos – mudará o cenário.

– Não posso fazer isso de um dia pro outro.

– Pode começar a fazer. Te darei 6 anos para começar a mudar o cenário. Caso contrário, a Nação terá que agir novamente, dessa vez, de modo mais incisivo. – Ele se sentou numa poltrona do quarto, apoiando a cabeça na mão, de modo reflexivo.

– E o que quer que eu faça? – Perguntou.

– A nação precisa de um novo programa de incentivo à agricultura, casas populares, extinção desse terrível sistema bipartidário, anistia aos exilados, torturados e presos e o mais importante: um processo de redemocratização – terminei a contagem desses 5 itens nos dedos -, você será a autoridade máxima no Brasil. É só você querer que conseguirá.

– Posso tentar. Mas a extinção do sistema bipartidário é impossível.

– Não é. Veja bem, você substituirá por um sistema de eleições indiretas. Isso a sua corja aceitará.

– E do que adianta? – Ele falou, encarando-me, esperando uma resposta.

– A população, motivada pelas suas mudanças, clamará por mais, clamará por eleições diretas. A pressão será enorme, e sua corja verá que terá que ceder. – Ele refletiu por uns instantes.

– Tá. Parece-me viável. Você tem razão, Nação. Precisamos da democracia. – Então ele tirou seus distintivos e arremessou-os com força no chão. Em seguida, se levantou e estendeu sua mão em minha direção. – Obrigado por me iluminar. – Prontamente, apertei sua mão.

– Boa sorte, João Figueiredo. Você será lembrado. E nunca se esqueça: o povo não deve temer seu estado. O estado deve temer seu povo. – Ele concordou com a cabeça e soltou a mão.

Retirei minha lâmina da parede e não tive problemas em sair do edifício. Meu sétimo ato estava chegando ao fim.

Brasília, 1979, sexta-feira, 13h00

Meu sétimo ato estava completo. João Figueiredo, como previsto, venceu as eleições e começou a pôr as coisas em prática: lançou o Programa de incentivo à agricultura, com o slogan “Plante que João Garante”, começou a construção de 3 milhões de casas populares, extinguiu o sistema bipartidário, concedeu a anistia e toda a população começou a especular uma redemocratização, além disso, João acabou com o sistema de torturas e exílio, freando a autoridade militar.

Há mais ou menos 3 meses retomei minha identidade como Humberto Souza de Carvalho, colunista do jornal Rio News. Para todos, eu estava exilado; só eu sabia do meu papel como Nação, e isso bastava. Ronald não retornou da Inglaterra, e, pela última carta que me mandou, já está até para se casar. Meu pai me recebeu de braços abertos e agora eu pude transparecer meus sentimentos. E Thalia... ah, Thalia. Ainda espero reencontrar a dona daqueles olhos azuis elétricos.

Nesse exato momento, estava terminando minha entrevista com João Figueiredo.

– ... minha intenção não é negar que os governos passados cometeram atrocidades, pelo contrário. Você é prova viva disso, meu caro Humberto. O que eu quero é visar um novo futuro.

– Sim, entendo, senhor. Mais uma pergunta: Qual é o seu próximo passo para a “Mudança” que o senhor usou como slogan da sua campanha? E o que o motivou a tentar mudar a nossa situação? – Ele parou para pensar um pouco e respondeu:

– Não posso abrir muitos detalhes, mas ocorrerão mudanças no sistema eleitoral. Tudo ao seu tempo. Está muito cedo para respostas definitivas. Quanto ao que me motivou, posso dizer que tive uma certa reflexão sobre o poder e a representação da nação.

– Sim, compreendo. Bem, muito obrigado pela entrevista e, pessoalmente, obrigado pelas mudanças, presidente. A nação agradece. – Ele apertou minha mão com a mesma expressão daquela última vez: um olhar e um sorriso determinado.

Ao sair da sala dele, esbarrei com uma mulher, que deixou cair alguns papéis que carregava consigo. Prontamente, me abaixei para ajudá-la a pegá-los. Quando nos levantamos, olhei-a nos olhos, e, antes mesmo de pensar num pedido de desculpa, fui surpreendido por aqueles olhos inconfundíveis.

– Des... desculpa.

– Ah, não tem problema. Mas espera, você não é o Humberto? Colunista que estava exilado?

– Sim, eu mesmo. Como me conhece?

– Você está na capa de vários jornais, por ter voltado a trabalhar no Rio News.

– Ah, sim. Não sabia dessa “fama” – gesticulei as aspas no ar.

– Pois é. Escuta, posso marcar uma entrevista com você?

– Que paradoxo: entrevistar um entrevistador. – Rimos juntos – Mas podemos sim. – Entreguei-a um cartão com meu nome e telefone.

– Antes de tudo, por onde esteve todo esse tempo? Onde esteve exilado? – Pensei por um tempo e respondi-a.

– Acho que, no fundo, a pergunta certa não é bem onde, mas o que estive fazendo. Estive representando uma Nação. Não fugi à luta, Thalia – respondi. Enquanto ela arregalava seus belos olhos, talvez entendendo a situação, um sorriso se formava na minha face.


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Notas finais do capítulo

Obrigado pela leitura.



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