O Jardim Cinzento escrita por Eclair


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Bem, eu pessoalmente adorei escrever essa one, espero que também gostem!



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Cidade de São Paulo, Setembro de 1978.

Novamente, eles estavam lá, para manter os estudantes na linha. Apesar de ainda estarem na universidade, viviam em uma época não muito favorável para universitários. A Ditadura Militar. Mas de alguma forma, a turma não estava inquieta, pelo contrário, pareciam estar acostumadas com aqueles militares dentro da sala de aula, vigiando-os de forma que assustaria qualquer um.

Altas patentes estavam dentro daquela singela turma de Jornalismo, até mesmo o General de Exército, Tiago Morais, se encontrava na turma. “É tudo para um bem maior, pela segurança de nosso país.”, eles diziam, mas Josué sabia que era mentira, sabia que seu pai estava inventando motivos de mantê-lo na linha, de forma que ele não se envolvesse nunca com os colegas de turma, era como se estivesse ali como espião contra a sua vontade. Mas foi o preço a se pagar para conseguir a aprovação dos pais para fazer o curso de Jornalismo. A mãe Carmen só autorizaria se o pai fizesse o mesmo.

E assim ocorreu. Com muito aferro, o pai aceitou que o filho estudasse “nesse curso de quinta categoria”. Josué fingia que não se incomodava com aquilo, mas o irritava até o ultimo fio de cabelo castanho em sua cabeça. E o pior, era semana de provas, e tinha de ter aqueles homens os observando como pedaços de carne vivos que poderiam fazer qualquer movimento em falso e serem mortos a tiros sem nenhum dó. E ele ainda estava proibido de sair quando terminasse a prova.

—E eu já estou é terminando a maldita. E ainda tem mais três pessoas na sala. Marcela, Carlos e Henrique. Bem que eles... Poderiam sair. —balbuciava o jovem Josué enquanto ele encarava uma prova de três paginas cheias de teorias escritas em respostas compridas.

Dois dos colegas mencionados se levantaram, entregaram a prova e se retiraram da sala. Agora só bastava Carlos, o maldito crânio. Sentiu-o olhar com o canto do rosto e rir em zombaria, estaria ele enrolando e tornando isso uma maldita competição? Se o fosse, acertaria um cruzado de esquerda no rosto dele assim que saíssem da sala. O professor Damião finalmente falou que o horário estava encerrado e que os alunos restantes deveriam entregar as provas e se retirar, com exceção de Josué, claro.

Quando tudo se passou de forma monótona, o jovem não aguentava mais ouvir o pai resmungar a quatro paredes sobre o quanto ele tinha nojo do filho, tanto que já sabia tudo que o pai falaria de cor e salteado.

—Chega pai. Já entendi que você odeia o curso que eu escolhi, que eu deveria investir na carreira militar e toda essa baboseira maldita. Contanto que eu fique longe das manifestações, está tudo bem para mim não é? Não foi isso que o senhor me disse quando resolvi entrar no curso?

Notou o pai se retesar um pouco, e não pôde deixar de sorrir enviesado, como se tivesse quebrado um recorde ou cumprido uma promessa com si mesmo. Pôde ouvir um pigarreio do mesmo lugar de onde o pai estava. O major Maurício Almeida de Carvalho, com a mesma idade de Josué, porém com uma carreira bastante diferente, era o filho que Tiago nunca poderia ter. No mesmo instante, Tiago se recompôs e segurou o forte impulso de estapear o filho. Josué pareceu entender a mensagem e se levantou em direção à porta da sala e deu uma ultima olhada no grupo de militares que estava na sala, inerte.

No entanto, os olhos negros de Maurício ainda olhavam para a porta de onde Josué havia saído e se inebriava com o perfume afrodisíaco de pimenta do reino que o outro havia espalhado sem intenção pela sala de aula e da voz zombeteira e cheia de diversão do garoto, e se flagrou pensando como seria aquela voz debaixo dele, gemendo, pedindo por mais, enquanto seus corpos soados se abraçariam em uma paixão com fogo eterno. Foi forçado a sair de seus devaneios ao ouvir o General berrar a plenos pulmões como o filho era impertinente e teimoso. Nisso ele tinha de concordar, afinal Josué da Silva Morais não era nenhum santo. Ele era mais como o pecado em terra, a própria tentação, com lábios cheios e carnudos, a pele clara e uma voz que podia carrega-lo até o caminho da perdição. Desde quando prestava tanta atenção assim no filho do general? Não sabia dizer. Talvez isso derivasse do fato de que os dois estudaram juntos no ensino médio, longos três anos, onde ele teve de se segurar para não seguir o caminho do pecado.

Não tinham muito que fazer, senão seguir ordens do presidente Geisel ou do Marechal. Estava de certa forma, entediado, então se pôs a sair da sala, até ouvir o General Morais o convidar para o jantar em sua casa, dali a algumas horas, e aceitando o convite, voltou ao quartel. Enquanto isso, Josué estava em casa com a mãe ouvindo as noticias na televisão e ajudando-a na cozinha de vez em quando.

—Como foi sua prova hoje filho?

—Foi ótima mãe. Se não fosse pelo fato de que eu tive que enrolar até o ultimo minuto porque seu querido marido não queria me deixar sair pra me dar sermão. —o tom de sarcasmo em sua voz era perceptível, tanto que a mãe quase torceu o rosto de desaprovação.

—Ah. O Tiago nunca aprende. O quanto eu falei pra ele que você não gosta disso, mas ele não me ouve.

—Isso pode te machucar um pouco mãe, mas a senhora não é submissa demais em relação a ele?

Poderia se dizer que Josué tinha um dom de deixar as pessoas sem jeito com suas perguntas e nem mesmo a progenitora escapava dessa.

—Eu queria ser, mas...

—Não tem essa história de “mas”, mamãe. Quando a senhora quer, não tem marido militar nenhum que te impeça disso. Falando no diabo, olha quem chegou. Vou indo ficar no meu quarto mãe, até mais, qualquer coisa sabe onde vou estar.

A casa dos Morais não era de longe feia. Tinham quatro cômodos no primeiro andar, incluindo o quarto dos pais, de Josué, um de hóspedes e o outro era de um irmão que Josué nunca teve por muito tempo, morreu ainda quando bebê, pois adquirira uma doença fatal e o matou, se chamava Gabriel e o quarto ficara interditado desde então. Achava que tinha sido aquilo que afastou os pais, que apesar de tudo, ficaram juntos, mas Tiago começara a descontar tudo no único filho. Eram abastados a custa do sofrimento e repressão da sociedade. Talvez houvesse grupos favoráveis à ditadura, no entanto, não mudava o fato de que os militares assumiram por meio de um golpe em 64, tinha apenas seis anos na época. Ainda lembrava-se com clareza de quando os militares assumiram e o pai parecia outra pessoa, parecia brilhar de tanta alegria que irradiava. Por um tempo curto, Josué o viu como herói. No entanto, ao entrar em contato com a realidade nua e crua, quando entrou no ensino médio, passou a desprezar o pai e tudo que ele representava. E pela mãe, não conseguia deixar aquela casa que lhe deixava tão enojado.

E no meio da escuridão que foi a sua adolescência, ele conhecera Mauricio, sua luz no fim do túnel, seu salvador, seu amigo, confidente e herói, o irmão que ele nunca teve. Foram dois anos de uma amizade duradoura, mas no 3º ano do Ensino Médio, os vestibulares se aproximavam e pôde notar que Mauricio se alistaria no exército e houve certo afastamento entre os dois. Não poderia confidenciar sua vida a ele, pois ele seria seu inimigo, e chorou horas a fio por isso e foi justamente em um momento de tristeza em que ele revelou a mãe a sua sexualidade. Dezoito anos, estudante e homossexual e futuro jornalista. Tinha coisa pior? Ah claro, ser torturado, estuprado, ser chamado de doente, aceitar a manipulação de noticias por parte dos militares. Nada disso ocorreu a ele, já que Carmen nunca falou abertamente sobre a sexualidade do filho. Descobriu em seu primeiro ano de universitário, que Mauricio já estava alcançando altas patentes. E pela mãe do mesmo, Antônia, soube que ele também era homossexual, mas teve de esconder isso para se alistar.

—Pobre criança. —ironizou. —Quando me lembro dessa época, não consigo sentir nada além de raiva. Mas o Mauricio sempre foi um pedaço de mau caminho, tenho de admitir. Mas nunca pude ver como ele é, céus.

Só poderia imaginar o que aconteceria, pois a realidade não passava de um jardim cinzento e cheio de flores mortas. Nada era vivo.

Pôs-se a estudar para a prova do dia seguinte, até o chamarem para jantar. Lembrou-se de calçar novamente os sapatos e endireitar a roupa, senão levaria um sermão dos pais. Para a sua surpresa, o convidado era o Major, que endireitado em um canto da mesa, olhou rapidamente para Josué quando este se sentou. Josué manteve um sorriso sardônico em seu rosto e se pôs a comer.

—Filho, o major passará a noite em nossa casa hoje. Por favor, seja tão educado quanto é normalmente.

—Claro pai. Espero que passe a noite bem, Major. —tentou não ser irônico quando falava, mas algumas farpas simplesmente escapavam.

—Obrigado Josué.

A voz dele estava levemente desconcertada, mas nada que ele não pudesse disfarçar por cinco, dez minutos a fio. Os lábios de Josué não eram nada mais do que venenosos. Venenosos e extremamente tentadores. No entanto, o jovem Morais também pensava algo sobre Mauricio, sobre como a pele cor de caramelo poderia ser linda quando estivesse soada. E como a voz aveludada poderia causar arrepios em sua nuca.

—Filho, sabe que o quarto de hospede está em reforma, não? —a voz calma da mãe ressoou no silencio do local. Com a resposta positiva do filho, ela continuou. —Então sabe muito bem o que fazer. Terá de dividir seu quarto com o major. Tiago tire essa cara feia, por favor, não lhe faz bem e nem condiz com a sua idade.

Naquele instante, tanto Josué quanto o major engoliram em seco, este ultimo apenas por nervosismo e Josué foi pela súbita atitude da mãe, porque ela nunca demonstrara tanta autoridade antes. Entretanto, o major enrubesceu. Talvez fosse da vergonha de dividir um quarto, mas isso causou algumas risadas na mesa.

—Ora Mauricio, você foi colega de classe do nosso filho por três anos. Acha que esqueci quando você vinha aqui e dividia o quarto com ele normalmente? Por que isso agora?

—Por nada, dona Carmen. —ele passava o guardanapo nos lábios, tentando esconder a vergonha que tinha, provavelmente.

No mesmo momento, o garoto com sorriso maldoso teve de se levantar da mesa para escovar os dentes e dormir. Por um instante, os olhos azuis marinho de Josué se encontraram com a tempestade negra dos olhos de Mauricio e nesses instantes, palavras foram trocadas sem eles precisarem mexer os lábios.

Minutos depois, o próprio Mauricio levantou-se da mesa, desejando uma boa noite a todos. Subiu as escadas e deu batidas leves na porta do quarto de Josué, que atendeu a porta com um livro na mão.

—Ah, entre. Pode usar o banheiro, se quiser. Se bem que me parece mais exausto. —balbuciava concentrado em demasia em seu livro, que provavelmente era a prova do dia seguinte. Deixou de olhar o livro por alguns minutos e encarou o homem em sua frente. —Algo errado?

Mauricio, que ainda estava perto demais da porta, pôde tranca-la com facilidade e logo após falar, se aproximando lentamente do outro em sua frente.

—A única coisa errada aqui é que seus lábios não estão nos meus.

Isso desconcertou o “todo poderoso” Josué, que deixou o livro cair no chão com um baque surdo. Mauricio aproveitou a deixa para puxar o braço direito do garoto e o beijar com fervor, paixão e um desejo súbito de possessão. Ele tinha de ser seu e de mais ninguém. Pela súbita falta de ar, Josué ficou trôpego e caiu no chão, procurando o próprio folego perdido, lançando um olhar confuso em direção ao homem acima de si.

—Achava que minha mãe havia lhe falado sobre mim Josué.

—E-ela falou, mas... Sabe como isso é errado? Tanto eu quanto você seremos mortos!

—Não comece com essa desculpa. —se sentou no chão, já que o outro não se levantaria tão facilmente. — Desde quando você se importa com isso?

—Ah que droga!—esbravejou Josué. —Não posso atribuir minha confusão a isso! Eu te quero tanto que nem faço ideia da dimensão disso!

O militar sorriu, mas limitou-se somente a isso, já que não poderia rir alto às onze e meia da noite. E Josué o encarou apenas mais uma vez e se levantou, indo em direção à cama. Só pode estar brincando, ele não vai dormir agora, de jeito nenhum, pensou Mauricio. E logo após tirar parte das vestimentas militares, se jogou em cima de Josué, que levou um belo susto.

—Eu odeio surpresas! —a primeira coisa que Josué falou pela manhã, enquanto se vestia. —Calado Mauricio, shiiiu! Meu corpo está todo doído e nem sei como vou explicar esses machucados no meu pescoço!

—Não se faça de difícil, Josué. Seja menos “reclamão” sim?

—Ai que droga, estou quase atrasado! Preciso mesmo ir! Mauricio avise a mamãe que não poderei tomar café, por favor?

—Só porque foi educado. Boa sorte!

—Idiota, você vai ser chutado pra me vigiar, esqueceu-se disso? Mas de qualquer maneira, obrigado. — e mais uma vez, o sorriso sardônico brotou em seus lábios.

—Francamente. —olhou de soslaio pela janela do quarto, sorrindo enquanto abotoava a roupa e viu um Josué afobado rezando para chegar a tempo à universidade.

E chegou. Não demorou muito para alguns soldados ficarem na porta de entrada da classe, mas nada de Mauricio. Talvez ele não venha, tem mais o que fazer do que vigiar alunos ativistas de jornalismo. E se viu obrigado a esquecer de assuntos triviais e se concentrar na prova enorme que tinha em sua mesa, e olhou rapidamente para o relógio na parede, observando que detinha três horas e meia, e não tinha ninguém para obriga-lo a ficar.

Mauricio não veio por um simples e plausível motivo: Estavam previstos alguns protestos pela tarde na Avenida Paulista e tinha de estar presente para eventuais conflitos, tais como o dos metalúrgicos da Scania, que havia se encerrado há três meses. Céus, tantos metalúrgicos em greve que ficaria louco.

Enquanto isso, a turma de Josué já havia encerrado as provas e estavam em uma reunião secreta na biblioteca. Ele não deveria estar lá, mas estava porque era ali que costumava ficar quando não queria ir cedo para casa, não tinha culpa nem queria ser morto e/ou torturado por causa de uma turma que o enxergava como coitadinho. Ele não era nenhum coitadinho, mas o que poderia fazer se prezava pela própria vida?

—Ei Josué, porque não se junta com a gente?

—Você tá louco Lucas? Ele é filho de militar, é bem capaz de entregar a gente!

Ignorando o colega irritante que o chamava de “filho de militar”, falou:

—Poder até posso. Mas com certeza vão me chamar de filho da mãe depois que eu falar.

—Ora Josué, o que de ruim pode acontecer? Se morrermos, a culpa vai cair toda em cima de seus ombros, isso se você não morrer também. E se vier com a estratégia de ter um líder conhecido e o outro sendo o verdadeiro, esquece, ninguém quer morrer. Eu já me ofereci pra isso, mas... Vê o rosto deles de desaprovação?

—Ora, foda-se eles. Quer lutar pela causa dos estudantes? Vá, nem que seja sozinho Lucas. Se eles são corajosos o suficiente para se rebelarem e covardes demais para se impor, eles não são mais do que um bando de adolescentes mimados, revoltados e sufocados. Não são melhores do que eu. Não concordam?

A maioria se enfureceu, mas não puderam deixar de concordar. Ele estava certo, afinal. E os preparativos foram rápidos, já que alguns carregavam faixas e cartazes escondidos nas mochilas e era óbvio que o líder verdadeiro não iria, só apareceria Lucas, o líder conhecido pelos militares.

Talvez tenha sido azar, ou talvez tivesse sido o destino daquela singela turma de Jornalismo. Logo na Av. Paulista, logo no local onde o major de mãos ferrenhas se encontrava, pronto para comandar os seus soldados para matar aqueles estudantes, mesmo que os tivesse reconhecido como a turma de Josué, que não estava lá. Não demorou nem meia hora para todos os alunos estarem mortos no chão, tanto que os soldados seguiram a ordem de seu major. Aquela turma seria fechada, não se fazia turma com apenas um aluno. Era algo de fato desestimulante, ver o sonho de uma pessoa destruído, transformado em pó. Mas era o trabalho dele afinal. Onde estaria o jovem de língua ferrenha agora? Ele não saberia, porque no instante em que Josué pôs os pés na Avenida, Mauricio já havia ido embora.

—Todos... Mortos. Culpa... Minha. Eu não deveria ter feito isso, deveria? —soluçava o jovem, debruçado nos cadáveres no chão, que tinham os rostos estampados com o desespero, no entanto, o de Lucas era tão sereno quanto uma criança que dormia, como se soubesse que aquilo o acometeria. —Claro que ele sabia. Não tinha como ele não saber, era algo obvio. E o pior de tudo é que quando eu chegar em casa e ouvir meu pai comentar disso, vou ter que ficar de cabeça baixa, porque o maior sonho dele se realizou, ele finalmente estará me vendo em ruínas, destruído e pronto pra fazer o que ele quer. Que ódio, que merda, porra, como sou... Idiota. —e naquela altura do campeonato, ele chorava. Um choro surdo, daqueles que não fazem nenhum barulho, gritos surdos e quase minguados, aqueles que demonstram mais dor. Demorou quinze minutos pra se levantar e sair, com o rosto seco sem lagrimas capazes de rolar, apenas um sentimento enorme de melancolia.

Quando pôs o primeiro pé em casa, não encontrou a mãe na sala e tampouco na cozinha. Se bem que não queria ver ninguém naquele momento, mas qual não foi a surpresa de ver a senhora de cabelos castanhos e olhos azuis cálidos sentada na cama de seu quarto, como se soubesse que ele pisaria ali. Porque ela sabia.

E por saber abraçou o filho que se fazia de orgulhoso, e o filho que se ajoelhava no chão, deixava a mãe acariciar o cabelo até ele se acalmar. E enquanto ele se acalmava, ela lhe falava de que tinha visto na televisão o massacre de trinta estudantes de Jornalismo, estudantes que nunca chegariam a se graduar, coitados. Ninguém ligaria para aquilo, com exceção dos pais das vitimas. Ninguém iria saber daquela historia.

No jantar, algumas horas mais tarde, podia ouvir a risada cheia de jubilo do pai, que olhava de forma arrogante ao filho, como se dissesse “eu venci garoto.”, como ele diria alguns minutos mais tarde. No entanto, Josué não tinha resposta a aquilo. Bom pra mim, que não tem mais o que fazer da vida, ele pensou. De ouvir o pai falar sabia quem tinha ordenado, sabia no momento em que pisara na Paulista, de que Mauricio dera as ordens para os soldados. Não sabia se ele tinha reconhecido a turma dele. Mas o que ele teria feito? Não poderia desobedecer as ordens do general e nem do presidente. Só lhe bastava seguir ordens. E era por isso que precisava vê-lo imediatamente. Levantou-se da mesa de súbito e saiu pelas ruas e avenidas até trombar no dito cujo.

—Josué? O que está fazendo... Aqui? Ah não, não. Desculpa Josué. Desculpa Deus, a culpa é minha, não faça essa cara. —murmurava em desespero ao ver a cara de Josué prestes a cair em prantos. Mas não podia consola-lo ali, precisavam ao menos ir a casa dele. E o fizeram, e fizeram questão de manterem uma distancia segura um do outro, pois ambos sabiam o quanto era perigoso ser homossexual em plena ditadura.

Quando adentraram a casa de Mauricio, o jovem melancólico se deixou jogar no sofá e observar o céu pela janela semicerrada, com a lua redonda e branca no alto. Não notou o major sentar-se ao seu lado, e o puxar para perto, deixando que a cabeça pousasse em seu ombro, e a voz aveludada dizer-lhe para chorar o quanto quisesse.

—O estranho é que não vieram atrás de você.

—E nem o farão Mauricio. Quem se importa com um bando de estudantes de Jornalismo? Olhe-me nos olhos e admita que estou falando a verdade. Não tenha duvida disso. Tampouco vou escrever sobre isso, não quero me tornar famoso por uma tragédia que me traz culpa e arrependimento. Por que, você me pergunta? Eu os incitei, Mauricio. Eu os incentivei a ir.

—Talvez esteja certo, mas acho que mesmo sem sua intervenção eles teriam ido, mas iriam despreparados e seriam puro impulso e não sobreviveriam o tanto que sobreviveram. Você os incentivou, deu uma razão para eles lutarem. Então isso te dá 40% de culpa. Entendeu bem?

—Sim entendi. Posso falar algo que apareceu em minha cabeça quando eu os vi mortos? Eles me pareciam um jardim de flores mortas, um lugar cinza e sem vida, com flores demasiado jovens para morrer, mas suficientemente maduras para lidarem com o mundo ao redor delas. E senti tanta pena, eles estavam com o desespero estampado no rosto, exceto pelo idiota do Lucas. Não deveria chama-lo de idiota, ele esta morto agora, quanta insolência minha. Ele estava com o rosto sereno, como se já fosse intimo da morte e sabia que não tinha nada a perder. Dão-me pena. Até mesmo o crânio do Carlos.

E naquele mesmo ano, em 13 de outubro de 1978, foi promulgada a emenda constitucional nº 11, cujo artigo 3º revogava todos os atos institucionais e complementares que fossem contrários à Constituição Federal. Diz a emenda: "ressalvados os efeitos dos atos praticados com bases neles, os quais estão excluídos de apreciação judicial.", restaurando o habeas corpus. A emenda constitucional entrou em vigor no dia primeiro de janeiro de 1979.

Cidade de São Paulo, Fevereiro de 1985.

—Ah que droga Mauricio! Por que você faz isso? Não me assuste assim, entendeu?

Sete anos depois do ocorrido, Josué fizera um pequeno memorial para a turma com o único retrato que eles haviam tirado enquanto treinavam fotografia. Na foto, o professor não estava presente, porque obviamente, havia sido ele a tirar a foto. Carmen havia ficado viúva dois anos depois, em Março de 80, pois Tiago havia sofrido de um severo infarto, quando ouviu o filho se assumir e quando Mauricio assumiu o romance com ele, fazendo Josué rir abafado. O filho apareceu no velório e no funeral, só para ter certeza de que o infeliz tinha morrido mesmo.

Era o fim da Ditadura Militar. Fim da opressão. O maldito pesadelo havia acabado, e Josué estava vivo para ver aquilo, com vinte e nove anos apenas. Como não podia recomeçar Jornalismo e nem queria ser escritor, resolveu fazer o curso de Direito, para defender aqueles que não eram capazes de se defender. As famílias dos mortos lidaram de uma forma com a morte dos entes queridos, que foi capaz de deixar alguns soldados boquiabertos. Bem, Mauricio não podia sair assim tão facilmente, nem poderia, já tinha uma carreira bem consolidada no Exército para sair de repente precisaria de um motivo bastante forte, e obteve o cargo do pai de Josué, General de Exercito. Foi uma surpresa para a família Silva Morais e a família Almeida de Carvalho. Ambos eram filhos únicos das famílias, no entanto, Antônia obrigou o marido, Pedro a aceitar o fato de que não teria netos. E Carmen, bem, ela já havia aceitado há muito tempo. Ela veio a falecer na virada do milênio, dia 2 de Janeiro de 2000, com 93 anos.

O quanto eles dois viveram? Bem, se querem saber, eles estão vivos atualmente, mas você não saberia quem eles são nem depois de uma conversa de uma hora, porque atualmente Mauricio é aposentado por invalidez porque teve problemas ósseos e Josué, com 60 anos, estava prestes a se aposentar. Mas se quiser encontra-los e conversar, eles serão uma ótima companhia, pode ter certeza. Até hoje, eles visitam o memorial, onde Josué havia colocado uma frase: “As vozes da juventude ecoaram nas trevas, no jardim cinzento que era o mundo”.


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Notas finais do capítulo

Obrigada pela leitura e até mais! Espero que tenham gostado!



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