O Brasil chorou escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 4
A Floresta


Notas iniciais do capítulo

Até onde?



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É, estou aqui novamente. Você pensou que era o fim, eu também pensei. Porém, estou preso, em todo o depoimento não tive brecha para falar sobre esse lugar. Um local lúgubre e inóspito. Nem as mais obscuras almas apresentam verossimilhança com esses cantos de deturpado breu.

Floresta da Tijuca, na zona norte do Rio de Janeiro. Não me pergunte como sei, uma recôndita lembrança surde no lado negro da minha face, rebobino que os corpos, indigentes e pessoas que deviam desaparecer eram enterradas aqui, ou simplesmente jogadas do lado de árvores, o tempo e os agentes decompositores faziam o resto.

Fui enterrado. Ainda assim, algo me trouxe para cá.

Andei pelo campo, topei com algumas cobras e rãs venenosas.

Perscrutaram meu corpo, pareciam estar numa ilha conhecida e sem empecilhos.

Num ponto indeterminado da minha visão periférica, captei um casebre queimado, apertei o passo até o monumento.

As raspas de cinzas tingiam o gramado, tornando-o negro e morto. No reflexo de uma gosma enegrecida e volumosa que escorria do casebre vi pessoas se contorcendo, risos e um pandemônio de emoções. Vi aqueles que acreditam na Ditadura, vi os que a veneram, outros que a odeiam, repudiam e cospem... Pareciam todos no desfecho, contorciam-se para sair do líquido viscoso. Todos presos numa alienação simbólica.

Procurei não pisar na sujeira (contudo eu já estava nela), adentrei o recinto, um local cubículo, a madeira ruindo, por um tris em pé. Minhas unhas ensanguentadas gelaram quando percebi os corpos encolhidos, dominados pela chama noutrora, bocas abertas tornando-se um farelo mórbido. Desumano ou, extremamente humano.

Havia uma trilha de corpos dali para frente, após sair do logradouro fui seguindo os destroços de vidas interrompidas. Abismado, atônito. Afinal, eu sabia como foi o realista malogro e infortúnio, todavia não rasurava a gravidade do assunto.

Gradualmente o que eu via eviscerava-me, juntava numa cesta para comemorações pós-morte.

Havia um borbotão de almas voando desgovernadamente, confrontavam-se num litígio triste.

Ahh, Ditadura... Uma colossal curra.

Minha visão esbranquiçou e logo voltou ao normal quando cheguei numa fossa diacrônica. Cavada provavelmente por uma dúzia de homens de forte punho. Larga e extensa, o conteúdo? Corpos humanos em estado de putrefação, olhos abertos e brancos como a Lua. O que faziam crianças ali? Tão pueris jogadas como porcos.

Agachei à cratera, toquei o antebraço duma, em razão da condolência. Meus olhos indiretamente arregalaram, arrepiei dos pés ao pescoço e subitamente ouvi soluços e choro. Uma voz feminina vinda de todos os lugares assimétricos. Minha expiração esbranquiçou o ar.

Mães chorando por todos os cantos, silhuetas se desvanecendo na minha frente.

Começou a chover. Levantei e olhei para o céu, os pingos caiam entre meus olhos, tingiam minha roupa, rasgavam minha consciência.

Ao retomar o olhar para a floresta, avistei minha mãe ajoelhada, a pele negra reluzente, cobrindo a face com as duas mãos, encharcada de lágrimas e pingos de chuva. Procurei alcançá-la, e quanto mais eu andava em direção à imagem da minha salvação ela se distanciava numa velocidade assustadora... Paradoxalmente, o efeito foi inverso e com a mesma velocidade que se distanciou, retornou defronte mim.

Com tamanha espontaneidade, o espectro ali se tornou poeira, meus músculos ficaram rígidos e após a fumaça dispersar avistei um militar apontando um fuzil para o meu peito, não tardou e eu estava no chão, com balas alojadas entre meus órgãos.

O sangue se misturando a grama, meu sonho descendo a ladeira, misturando-se com as pedras. Minha vida se passou pelos meus olhos, num filme lento com enfoque nas cenas mais péssimas, a Ditadura havia caído, mas sequelas haviam ficado. Os filhos perdidos, os lobos extraviados, nunca voltarão para casa.

Lembrei-me das prisões. Das torturas que sofri. 1932, preso por criticar um intervencionista. 1936, 1939... Anos que perdi unhas e um pouco mais. Meu filho veio à cabeça, meu relacionamento com a Elza.

E o dia que fui baleado por agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e preso num cinema? Como esquecer?

Eu tinha contato com alguns Freis Dominicanos. Certa vez foram intimados, Frei Fernando foi obrigado pelos militares a marcar um encontro comigo. Na noite deste hipotético encontro... Morri.

Podem falar tudo sobre o Brasil, no entanto as florestas, os rostos, as belezas naturais são inigualáveis e se eu tivesse que morrer novamente, sentir a mesma dor da vida se esvaindo pelas mãos, dos risos após avistarem meu corpo estendido no carro, eu morreria, toda revolução sofre perdas. Perdas que estranhamente adicionam algo, que são refletidas anos depois. Num futuro promissor.

A Ditadura foi o clássico exemplo da máscara decadentista. Afinal, inicialmente, a visão de progresso e contenção positiva ainda arrancava alguns sorrisos, não tardou muito e a máscara caiu mostrando o desespero das próprias ações. O fogo queimando tudo. O Nero e sua arpa.

Fui perdendo consciência, uma letargia se apoderou dos meus estímulos vitais. Minhas pálpebras pesadas foram resguardando meus olhos. Eu só conseguia ouvir. Alguém se aproximou do meu corpo, passos pesados e carregados. Ouvi o destravar de uma arma, era o soldado novamente. Clack. O borrão da minha visão possibilitou apenas ver o longo cano quase tocando minha cabeça. Foi um último suspiro, só restavam os batimentos acelerados perdendo voracidade. A sensação de desprendimento e a vontade imbatível de tomar um uísque pelos velhos tempos. O torpor, a incredulidade mesmo diante os fatos.

Acredito fielmente que o amontoado de corpos entrou em combustão e uma efígie se formou, e nas labaredas que se confrontavam, uma face machucada se mostrou, com tantas cicatrizes e ferimentos cutâneos, com um nome estampado na testa, uma nação: Brasil. No queixo, ramificações disformes semelhante a uma barba ganhando proeminência e no topo da cabeça, na residência dos cabelos: árvores, fauna e... Vida.

Até onde nossos amores nos levariam? Até onde cavaríamos por ouro? Quantas árvores cortaríamos até nos bastarmos? Quantas cordas entrelaçaríamos em pescoços? Qual o tamanho do prato que tragaríamos no profundo poço da pobreza? Qual o preço que estipularíamos para termos a liberdade que nos é referente? Qual?

Até onde iríamos pelo o que é nosso?

Até onde você iria pelo o que é seu por direito? Responda e não morra longe de casa.

Devo ir. A resposta é sua.


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