O Brasil chorou escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 1
Anos de Chumbo




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Noite de 4 de novembro de 1969, meu corpo estendido dentro de um carro, no bolso da calça uma única foto dos meus pais. Meu pai imigrante italiano com seu bigode sério e o cigarro de palha na boca, ao lado a minha mãe baiana, desgraçada pela vida, mãos de escrava e uma pele dilacerada pelos abusos. Não portava nem um canivete, dirigia de olhos abertos cavando fundo e articulando a queda da Ditadura. Sabia que era considerado o inimigo número um dos militares, só não tinha em mente que seria assassinado naquela noite, desarmado e com os malditos olhos abertos. Sem o mínimo de honra.

Meu nome é Carlos Marighella e venho aqui contar a minha versão dos fatos, esperando não ser censurado pelo passado e nem pelas dores que ainda persistem no meu esqueleto. Enviado para o cemitério Quinta dos Lázaros, enterrado como indigente. O recado era o mesmo: não importa quem fosse que tentasse derrubar o regime vigente, o final sempre seria o mesmo, você acabaria num lugar assim. Não acredite neste recado. Parafraseio Karl Marx: “guerrilheiros do mundo, uni-vos!”

Consegui entender que quem venceu as guerras não foram os imperadores e sim os soldados, aqueles que ergueram a grande estátua do tirano... Não foi ele. Quem construiu o palácio esplêndido não vestia trajes finos, as nomeações históricas estão todas indo por ralo a baixo, o reconhecimento é dado aos tiranos, o ônus da guerra aos que ergueram estruturas e lutaram por elas.

A injustiça existe desde os primórdios, porém isso não diz que temos que viver com ela em nossos rodapés.

Brasília foi “inaugurada” em 21 de abril de 1960, incompleta, questiono-te, nobre guerreiro, foi Juscelino Kubitschek e o seu plano de metas que ergueu a capital? Você pode não saber, contudo candangos de todos os locais vieram para levantar estátuas ebúrneas que logo, no mais tardar, serão derrubadas pelo povo.

Tornei-me cedo um militante do Partido Comunista, alguns me chamariam de anárquico-comunista, não sou nenhum Michael Bakunin, Peter Kropotki, entretanto se o Estado for formado por uma tirania, por homens armados calando poesias, prefiro lutar até morrer a deixar uma soberania falha dominar o mundo, o meu mundo, o seu mundo!

Jornais, revistas, lembretes, todos censurados como se fossem um Codex herege, enquanto na Europa a Santa Inquisição tomava forma e suas máscaras, no Brasil, pessoas eram massacradas, não importa se empunhavam rosas ou armas.

Diversos cantores censurados. Músicas e poemas logo após serem escritos já estavam manchados de sangue. Tortura e ausência evidente dos direitos humanos. Corpos nas calçadas, a equipe de limpeza tinha um nome muito bem conhecido: cachorros.

O general e presidente do Brasil Ernesto Geisel recebendo cumprimentos militares, continências, como se fosse o salvador. Do que vale um aumento econômico se a liberdade é uma ficha suja num casebre queimado?

Pessoas estupradas, desaparecidas, engravidadas e mortas. Crianças como joguetes sexuais. Brasil se tornou Sodoma e Gomorra dos dias atuais. Infelizmente, membros do meu próprio partido sucumbiram ao prazer de uma carne malpassada.

“Ordem e progresso” por “Violência e impunidade”.

Cunhou-se o slogan difundido pelos militares através das únicas estações disponíveis: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Se realmente o ama, lute por ele.

Deve estar se perguntando qual o significado do título deste capítulo autoexplicativo; Anos de Chumbo foi o período militar onde esteve no poder o general Emílio Garrastazu Medici, graças ao “redentor” houve o aumento dos métodos repressivos e antidemocráticos. Resumindo: se um grupo ousasse um protesto, a repressão seria violenta assemelhando-se a primeira república jacobina na França, na época da Revolução Francesa.

A abertura política brasileira levaria a queda posterior do regime ditador. Mas esse é o final, vou tomar tenência e trazer os esforços da guerrilha. Éramos semideuses lutando contra parasitas que desenvolvendo o hospedeiro economicamente consideravam-se deuses. Não sei a sua crença, porém para mim, deuses sangram também.

Junto a um grupo que queria ver o Brasil livre novamente, defendemos a bandeira da liberdade com armas nos punhos e estiletes na boca.

“Ninguém precisa pedir autorização para realizar um ato revolucionário”, dizia para os verdadeiros guerreiros ao meu lado. Criando a Ação Libertadora Nacional (ALN), o futuro estava pronto para ser posto em prática. Devíamos combater fogo com fogo e foi o que fizemos.

Nossas primeiras missões se resumiam em assaltos a bancos e outros estabelecimentos, precisávamos dar corpo e forma para a maior guerrilha brasileira já criada. Não éramos monstros como aqueles que governavam, porém cá entre nós, após um tempo displicente de torturas e abandono, cada bala que cruzava o corpo de um oponente, contava.

Quando um homem da ALN foi sequestrado pelos militares, ele cedeu e delatou o grupo que tendia a crescer. Não paramos, continuamos. Admito, fui pego de surpresa quando um golpe foi articulado sem a minha presença e ainda assim, posto em prática.

Em setembro de 1969 (isso mesmo, pouco antes da minha morte), um comando do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) e da própria ALN sequestrou um embaixador norte-americano e o soltou em troca da libertação de vários presos políticos. Foi uma ação ousada... Surpreendeu-me. Sabe como justificaram o plano acobertado? Utilizaram-se das minhas palavras: “Ninguém precisa pedir autorização para realizar um ato revolucionário”. Ironia do destino. Os prisioneiros políticos embarcaram no avião Hércules 56 para o México, no dia 6 de setembro.

Drasticamente houve o contra-ataque, meu nome estava na reta, meus companheiros tinham indiretamente cortado os pulsos. Ainda me pergunto, aqui, morto, se a vida dos militantes da ALN e do MR8 valeu mesmo pela vida de 15 exilados políticos. O tiro que deram antes de serem desbaratados foi certeiro, atiraram com um morteiro e eles responderam nuclearmente.

Tornei-me a figura número um, o alvo primário. Do mesmo modo que na Sibéria havia a caça clandestina pelo Leopardo-de-amur tendo cerca de apenas 50 exemplares existentes, minha cabeça valia um conhaque velho e a espada de Simón Bolivar, importada do tesouro espanhol. Tentei tornar cômico este momento, percebe-se claramente meu nulo gosto por trocadilhos.

A repressão culminou na minha morte. Um homem havia sido morto, mas o futuro já havia começado. Joanna Dark foi queimada numa fogueira, e mesmo assim utilizou-se do fogo que derreteu sua pele como incêndio aos costumes vigentes. Não sei se engrandeci minha morte, meu sentido egóico talvez não tenha sido morto junto ao meu corpo carnal.

Ainda não terminou, devo-te ainda alguns segredos. Pare por aqui se a vida no cubículo se apresenta confortável, ou se a indignação preenche seu corpo, vamos avante. Anos de ditadura não poderiam expurgar apenas 1091 palavras.


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