Paranoia escrita por Yokichan


Capítulo 3
Capítulo 3




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Annie está escalando uma montanha. Ela agarra-se às saliências da rocha e sente o profundo vazio que se estende lá em baixo, um vazio que parece querer puxá-la e jogá-la no nada. Já faz muito tempo que ela tenta alcançar o topo, desvia de pedras que lhe barram o caminho e continua subindo, mas aquilo nunca acaba e é como se Annie estivesse circulando a montanha ao invés de ir para cima. Ela sente que está presa ali sem poder subir ou descer. Então uma ventania a atinge e a lança no ar, para longe da montanha.

Ela cai e o abismo a engole.

~

Annie acorda num sobressalto porque tem a sensação de que está caindo. Trêmula, ela tateia o escuro até encontrar o abajur e então o quarto se ilumina. Ela ainda está na cama e são quatro da manhã de sábado. Enquanto escreve sobre o sonho no bloco de papel, Annie desliza lentamente para fora daquele mundo que fica para trás.

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Mark vai lembra-la pela terceira vez de que estão atrasados e reclamar sobre o tempo absurdo que ela leva para se arrumar, mas então a vê tão bonita diante da penteadeira do quarto que desiste de tentar apressá-la. Annie tem os cabelos soltos sobre os ombros e seus olhos brilham refletidos no espelho. Ela está usando os brincos que ele lhe deu no Natal e um vestido azul escuro, tudo muito delicado — Annie não gosta de extravagâncias. Mark se aproxima no momento em que ela escolhe um anel da caixa de joias e, afastando-lhe o cabelo para o lado, beija-lhe o pescoço.

— Você não precisa de mais nada. — ele diz.

— Você acha?

— Eu tenho certeza.

Annie sorri e avisa, finalmente, que está pronta. Pega a bolsa sobre a cama e se deixa conduzir por Mark. Eles trancam o apartamento e descem pelo elevador até a garagem subterrânea, onde encontram o carro. Enquanto Mark dirige, ela observa-lhe os movimentos tranquilos e seguros ao manobrar — e acha aquilo muito atraente — e se pergunta como nunca tentou aprender a dirigir.

As luzes noturnas da cidade passam através dos vidros do carro.

Mark estaciona em frente ao restaurante italiano onde eles comemoraram o aniversário do pai dele no ano passado. Há um recepcionista de terno e gravata na entrada e um ar requintado de elegância nas luzes baixas e nas toalhas vermelho escuras das mesas. A mesa deles fica diante das janelas de vidro que dão para a rua. Annie pensa que poderiam gravar um filme de gente rica ali — com direito a madames usando pérolas e homens de fraque —, mas ouve quando Mark pede ao maitre* um Rothschild** e o olha incrédula. Ela abre a boca para perguntar por que ele escolheu um dos vinhos mais caros do restaurante, mas então percebe que há algo diferente em seu rosto e permanece em silêncio.

Enquanto esperam pelos pratos e sentem na boca a excelência do Rothschild — Annie precisa concordar que o vinho vale mesmo aquele preço absurdo —, Mark resmunga qualquer coisa que ela não entende e lança um olhar a sua direita. Ao espiar na mesma direção, Annie reconhece uma das tias de Mark e percebe que ela se aproxima para cumprimenta-los. Annie sente um gosto amargo na boca. Não suporta aquela mulher não apenas por ser uma esnobe oportunista que se casou com um médico neurologista para gabar-se por aí, mas porque ela faz questão de olhá-la de cima todas as vezes em que se encontram. Annie não gosta nem mesmo que Mark a olhe desse modo.

— Mark! — a tia abre um sorriso que não convence. — Há quanto tempo...

— É verdade.

— Olá, Anna. Como vai?

Aquele olhar a incomoda. É um olhar que perscruta e ameaça, e Annie sente como se a tia estivesse procurando por alguma falha com a qual pudesse desprezá-la outra vez — ela, a garota que não serve para seu sobrinho, a garota sem potencial que não serve para nada. Annie sabe que aquela mulher a pisaria se a situação permitisse porque, obviamente, não são do mesmo nível. Para a tia, ela é incapaz de ter um filho de Mark. E enquanto sustenta aquele olhar, ela imagina que a tia ri do fato de Annie não ter engravidado nenhuma vez, embora morem juntos há dois anos.

— Bem, obrigada. — é tudo o que ela consegue responder.

— Estou com meu marido numa mesa mais ao fundo. Se quiserem se juntar a nós depois, será um prazer.

Mark agradece com um sorriso e diz qualquer coisa para se livrar da tia que então os deixa em paz. Mas é tarde, aquilo tudo já está girando dentro da cabeça de Annie — a tia que espreita nas sombras como uma ameaça e o filho que ainda não veio. Ela olha ao redor e de repente todas as pessoas parecem censurá-la com aquele mesmo olhar. Por um momento, Annie se esquece de que Mark está ali e afunda na cadeira, sozinha. Sozinha no mundo e em si mesma.

Ela se lembra da sensação de impotência do sonho e depois da queda.

Mas então é puxada de volta.

— Annie?

Ela olha para Mark primeiro como se não o reconhecesse e depois com alívio indisfarçado.

— Você está bem?

— Estou.

— Quer ir pra casa?

— Mas nós ainda nem comemos.

Annie tenta sorrir, mas não consegue nada além de uma expressão de cansaço. Mark segura-lhe uma mão sobre a mesa e parece querer dizer alguma coisa que acaba deixando para depois, pois o garçom chega para servir-lhes o jantar. A comida, como eles já sabiam, é impecável, e após mais um pouco de vinho a perturbação causada pela tia se dissipa completamente. Agora, Annie fala num ritmo delirante sobre um filme de Hitchcock e Mark sente-se confiante ao ponto de pedir uma segunda garrafa de Rothschild. Ele bebe meia taça de uma só vez ao pensar em pedir outra coisa.

— E o modo como ele confronta o espectador me parece tão...

— Annie.

— Tão chocante!

Annie.

— O que foi?

— Eu preciso saber de uma coisa.

Ela o olha e espera que Mark continue, imagina que ele quer saber algo sobre os filmes de Hitchcock ou a opinião dela sobre a estratégia do vilão inocente, mas tudo o que ele faz é abrir diante dela uma caixinha de tecido preto com duas alianças dentro. Annie observa as alianças e depois o rosto sério de Mark e então entende o que está acontecendo.

— Anna Hawkins. — ele diz. — Você quer casar comigo?

Ela não precisa pensar para responder. Mark é o único homem com quem ela já se imaginou fazendo isso. Mark é aquele que está ao seu lado na cama quando ela é cuspida de um sonho ruim. Mark não a culpa por ser assim, tão sem sentido, e até gosta de todas as suas esquisitices. Mark diz que os bicos rosados de seus seios são lindos. Mark é a única luz quando ela despenca no escuro, a porta pela qual ela consegue sair. Mark é real.

— Sim, eu quero.

E quando ela se levanta da cadeira e corre para beijá-lo, sente que tudo ficará bem.


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Notas finais do capítulo

* Maitre: é o responsável pela organização e rotina de um restaurante.
** Rothschild: Domaines Barons de Rothschild (Lafite) é uma marca francesa de renome e respeito no mercado de vinhos conhecida por sua excelência de qualidade e pelos preços exorbitantes.



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