Paranoia escrita por Yokichan


Capítulo 2
Capítulo 2




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Quando Mark sai para o trabalho, Annie pega o jornal deixado pelo zelador diante da porta e vai para a cozinha. Descalça e vestindo apenas a camiseta velha do namorado, ela liga a máquina de café e apoia o corpo na bancada da pia. Então abre o jornal na parte de classificados.

Annie nunca trabalhou — embora tenha se formado na universidade há quase um ano. As poucas entrevistas de emprego para as quais conseguiu ser chamada não deram qualquer resultado e ela sente, um dia após o outro, que não se encaixa em parte alguma. Gosta de muitas coisas, mas não durante muito tempo. Se hoje se descobrir uma apaixonada por História e comprar pela internet dezenas de livros sobre Gandhi ou sobre o nazismo, em um mês nem mesmo se lembrará do assunto porque estará muito envolvida com as teorias biológicas e evolutivas de Darwin. Annie não tem qualquer pessoa que possa chamar de amigo porque, sem um motivo aparente, corta relações de um modo definitivo e continua a viver como se jamais tivesse conhecido aqueles que ficam para trás. Ela pensa que Mark é sua ligação mais profunda, o único laço com o mundo que não se rompeu. Eles se conheceram durante a faculdade — ele estudava T.I.* — e passaram a morar juntos seis meses depois. No começo, Mark a incentivava a conseguir um bom trabalho, dava sugestões, ajudava com o currículo, mas então percebeu que aquilo a deixava frustrada e não tocou mais no assunto. O fato de Annie não trabalhar parece não incomodá-lo e, além do mais, Mark ganha dinheiro suficiente pelos dois. Ele desenvolve softwares para uma grande empresa.

Ela serve o café na xícara branca com mosaicos que ganhou da mãe — parte de um belo conjunto de xícaras, pires e pratos de louça — e observa a água gotejando lentamente da torneira. A mãe mora em outro bairro e elas se veem com frequência. Annie sabe que ela está bem, que o sonho foi apenas um sonho, apesar de perturbador.

Mas os sonhos têm sido um problema ultimamente. Annie não sabe por que — se há realmente um porquê — e não se lembra de quando aquilo começou, mas agora quase todas as noites são um tormento. Ela sonha com pessoas mortas, com destruição e com coisas selvagens que parecem não ter ligação alguma entre si. Sonha que tem medo e que não sabe o que fazer. Sonha com abismos tão profundos que, ao despertar, Annie sente vontade de chorar como uma criança assustada. No entanto, algumas horas depois, ela já se esqueceu da maior parte do sonho e tudo o que lhe resta são fragmentos que não fazem sentido. Esse vazio pela memória que se vai a atormenta como uma sombra que a persegue, não importa para onde Annie vá.

Foi então que ela passou a escrever os próprios sonhos — ideia de Mark. Uma tentativa de entendê-los e combate-los.

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Para passar o tempo e afastar o sentimento de impotência, Annie organizou para si uma rotina que a mantém ocupada durante todo o dia. Pela manhã, depois que Mark a deixa com um beijo rápido porque geralmente está atrasado, ela lê o jornal — pulando a parte esportiva — enquanto toma o café da manhã. A demorada refeição consiste no suco de laranja que ela mesma prepara, em frutas e em algum pão doce. Annie não come o pão francês de todo mundo. Sentada sobre as pernas, ela faz as palavras-cruzadas da seção de entretenimento e rabisca chifres e bigodes esquisitos nos rostos dos atores de TV. Só então guarda as coisas de volta na geladeira e começa a pôr o apartamento em ordem.

Ao meio dia, Annie pendura a bolsa num ombro e sai para almoçar. Quase sempre vai ao restaurante japonês que fica do outro lado da rua e que serve a melhor yakisoba que ela já experimentou. Quando sente vontade de comer qualquer outra coisa, caminha duas quadras até o shopping. Nessas horas, sentada à mesa, Annie observa as pessoas ao seu redor e fica imaginando de que tipo elas são. Às vezes, diverte-se em silêncio pensando em nomes que combinem com seus rostos.

Durante a tarde, quando não há nada de especial que precise fazer — como sair para comprar alguma coisa para a casa ou para Mark —, ela arrasta uma poltrona da sala para a sacada e lê algum livro. Annie possui uma vasta biblioteca que ocupa toda uma parede do quarto que Mark usa como escritório, e em sua coleção há desde literatura clássica até guias de culinária. Ela gosta de apoiar os calcanhares sobre a grade da sacada e sentir o vento passando por entre os dedos.

Então ela só precisa esperar mais um pouco até que Mark volte, no fim da tarde. Annie ouve o barulho da chave girando na fechadura da porta e vai pendurar-se no pescoço dele. Quando ele está ali, não há espaço para qualquer pensamento ruim e ela pode desarmar-se. Annie sente que as melhores partes de seu dia são quando Mark está por perto.

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Enquanto ele faz a barba com a porta do banheiro aberta, ela o observa da cama. Annie gosta de olhá-lo em silêncio. Mark é um cara bonito com seus ombros largos e aquele cabelo preto como azeviche, cortado rente. Ele é uns dois palmos mais alto do que ela e quatro anos mais velho. Ao observar as tatuagens que cobrem todo o seu braço esquerdo e uma parte do ombro, Annie sempre pensa na Yakuza e lembra das histórias suspeitas que leu num livro. Mark tem um rosto comum, e ela gosta disso.

Annie quer ter um filho com ele.

Mas descobriu que isso não é tão simples como parecia. Mesmo tendo deixado de tomar as pílulas há três meses e de nunca terem usado camisinha, ela não consegue engravidar. Não conversou com Mark a respeito do assunto, mas sabe que ele ficará feliz quando ela lhe disser que está esperando um bebê. Um bebê deles.

Annie sente que então terá seu lugar no mundo.

Annie?

— O quê?

— Você ouviu o que eu disse?

Não, ela não tinha ouvido porque todo o seu ser estava outra vez dominado por aquela ideia de ter um filho. Mas não importa, Mark está acostumado a pegá-la naquelas “viagens”. Ele vai para junto dela na cama e deita-se entre suas pernas, o rosto na altura do peito de Annie.

— Vamos jantar fora amanhã?

— Vamos.

— Eu já fiz as reservas.

— Estou esquecendo alguma data especial? — ela sorri.

— Não preciso de uma data especial pra te levar para jantar.

Annie finge que acredita naquilo ao inclinar-se para beijá-lo. Sabe que, se Mark quisesse apenas comer algo diferente numa noite de sábado, acabariam pedindo uma pizza e ficando tontos com uma boa garrafa de vinho — como sempre fazem. Mas dessa vez ele tem algo em mente e ela não quer estragar tudo, então apenas sorri e morde-lhe um lábio quando Mark abre o fecho de seu sutiã.


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Notas finais do capítulo

* T.I.: refere-se ao curso superior de Tecnologia da informação.



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