Sons of Theolen escrita por Live Gabriela


Capítulo 38
Nipples - As Catacumbas de Thorrun




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 “Deixa sua luz para trás, pois apenas a escuridão aqui habita. 

Os mortos hão de se levantar, pela maldição que os reanima. 

Rezem por suas almas e por seus corpos,

pois aqui apenas o Lorde das Profundezas domina.”

 

Estas foram as palavras proferidas por Nipples ao traduzir as runas cravadas no círculo de pedra onde há pouco estava o Necromante. Há muito tempo Nipples não usava seu conhecimento na língua anã, da última vez que o fizera, havia sido para ler um livro sobre polimento de pedras preciosas que o proveu do conhecimento necessário para limpar as joias reais do castelo de Theolen da maneira mais adequada possível. Agora, o serviçal usava sua expertise no idioma para traduzir profecias malditas de portas que guiavam à lugares sinistros no reino de Thorrun.

— É isso? Não tem mais nada? – perguntou Arlindo com a voz abafada por um pano ensanguentado que segurava contra o rosto ferido.

— É isto, meu senhor – confirmou o serviçal abalado pelo que acabara de ler.

— Isso não parece nada bom… – comentou Charly sentado na grama, ainda recuperando o fôlego da luta contra o minotauro.

— Não importa, se ele fugiu lá pra baixo, vamos pegá-lo – disse Solomon referindo-se ao Necromante.

— Eu não acho que ele tenha ido pra lá… – falou Dorothy pensativa.

— Ele não deve ter descido mesmo – concordou Arlindo tirando o pano do rosto para falar de forma mais clara, revelando a maçã do rosto e o olho direito inchados – Parece ter usado uma magia de teletransporte, deve estar bem longe daqui agora.

— Covarde – resmungou Solomon, irritado por não ter conseguido encerrar com a vida do conjurador.

— Dorothy, nós vamos continuar aqui na Planície? Ainda temos algumas horas antes de escurecer e os esqueletos aparecerem… Talvez possamos achar um lugar mais seguro pra passar a noite – Charly olhou para a paladina em pé ao seu lado.

— Não há lugar seguro em Thorrun – respondeu Solomon.

— Tem razão. Não importa para onde vamos, sempre há um perigo – concordou a garota - É por isso que acho que deveríamos ir lá pra baixo – respondeu fitando o círculo de pedra.

Os cinco theolinos encararam perplexos o buraco feito pelo martelo do guerreiro na porta circular de pedra no chão. Consideravam ser a entrada ou saída de algum lugar, pois conseguiam enxergar uma escada em forma de caracol descendo para a escuridão, ainda sem saber sobre as gigantescas catacumbas de Thorrun que se estendiam pelo subterrâneo de boa parte do reino anão.

— Por quê quer descer? – perguntou Arlindo com o cenho franzido.

— Por Steve – justificou a jovem erguendo o olhar para o clérigo ferido.

— Acha que ele está lá embaixo? – questionou o mais jovem do grupo.

— Duas vezes – Dorothy mostrou os dedos – Duas vezes o Necromante me disse que Steve estava “embaixo do meu nariz”. Isso poderia ser facilmente uma provocação, mas e se for verdade? E se ele realmente estiver "embaixo do meu nariz"? Isso significaria que ele estaria debaixo dos nossos pés – ela apontou para baixo.

— Mas você ouviu o que o serviçal disse, não ouviu? – falou Arlindo – Lá embaixo é provavelmente o lugar de onde vem todos os esqueletos que enfrentamos durantes essas noites aqui em Thorrun.

— Eu sei, o que torna o lugar perfeito para procurarmos meu tio – rebateu a jovem – Steve veio para eliminar o mal do norte. Ele deve estar onde os monstros estão!

— Descer com base nisso seria uma grande aposta… – disse o homem loiro com um gemido, falar ainda lhe causava muita dor – Uma aposta baseada no Necromante falando a verdade.

— Bem, ele já fez isso antes… Quando falou sobre a licantropia – retrucou ela.

— Pode ser uma armadilha – disse Solomon depois de alguns segundos de silêncio entre o grupo.

— Sim, eu sei, mas não importa. Nós não temos mais pra onde ir. Se ficarmos, os esqueletos voltam à noite, se formos para o norte, drows e outras criaturas perigosas podem nos atacar e eu não estou disposta a desistir e voltar para Theolen. 

— Minha senhora, desculpe a intromissão, mas não seria prudente descansar por hoje? Posso ajudar a cuidar dos ferimentos de todos – sugeriu Nipples preocupado com a integridade física de seus companheiros que há pouco estavam em um combate intenso contra o rakshasa e um minotauro.

— Seria, mas acho que Steve pode estar em apuros. Pelo jeito que o Necromante falou, algo aconteceu com ele. Não sei o que é, mas não posso perder tempo se ele precisa de mim.

— Eu não consigo curar todo mundo para seguirmos em bom estado – comentou o clérigo.

— Eu não preciso de cura – disse Solomon se voltando para Dorothy em seguida – Mas se quisermos descer é melhor estarmos preparados para o que quer que esteja lá embaixo. 

— Eu estou preparada! – disse Dorothy prontamente.

— Talvez, mas não esqueça de que não está sozinha… – disse o guerreiro olhando de relance para Charly e o serviçal.

Nipples pôde sentir que seu nervosismo fora notado por Solomon e por mais que estivesse com medo do que viria a seguir, deu um passo para frente encarando o homem de quase dois metros de altura.

— Eu irei aonde for necessário, meus senhores! Eu entendo os riscos e sei que pouco posso fazer contra oponentes hostis, mas cumprirei meu dever com cautela, então, por favor, não se preocupem comigo! – enfatizou.

— E nem comigo – Charly se levantou depois de compreender o que estava acontecendo – Eu sei o quanto eu aguento numa luta e não vou me arriscar se não for necessário. 

— Vocês não precisam ir se não quiserem – disse Dorothy.

— Com todo o respeito, minha senhora, talvez tenha se esquecido, mas resgatar o Sr. Leon não é apenas sua missão. É nossa também – falou Nipples, provocando um sorriso tímido na paladina.

— Então vamos nos preparar – ela disse por fim.

Sem mais discussões, a equipe concordou e cada um lidou com uma tarefa específica antes de descerem. Dorothy curou-se de seus ferimentos e junto de Solomon ergueu o grande círculo de pedra do chão, abrindo a passagem para o subterrâneo, Nipples e Charly buscaram os pertences de viagem do grupo e Arlindo se responsabilizou por tratar de seus machucados, assim como os do jovem guerreiro, deixando-os não totalmente recuperados, mas ao menos em condições de viajar.

Faltando apenas um par de horas para o anoitecer, eles acenderam tochas improvisadas e desceram as escadas com cautela para as escuras e perigosas catacumbas de Thorrun.

Nipples seguiu na frente ao lado de Dorothy segurando uma das tochas, Solomon levava outra atrás de todos, e apesar de não conseguirem enxergar tudo o que havia à sua frente, a surpresa tomou conta da expressão dos humanos ao avistarem o gigantesco espaço que os estava esperando. 

O local era vasto, quase como se estivessem em uma planície, mas durante uma noite escura, sem lua ou estrelas. Um frio percorreu a espinha de Nipples ao vislumbrar o cenário que se perdia na escuridão. Era como se ele pudesse sentir que havia algo de errado ali, algo sombrio. Ainda assim, ao olhar para Dorothy, sabia que a garota não deixaria nada de ruim lhe acontecer, e continuou caminhando um pouco mais calmo com seus colegas, até ouvir Charly tropeçar em algo, fazendo todos pararem.

— Ai! - reclamou o menino – Esse lugar é muito escuro!

— Então fique mais próximo das tochas – respondeu Solomon passando ao lado do garoto e iluminando um tipo de espada cravada no chão em que  ele perdera o equilíbrio.

— Isso não deveria estar aqui de qualquer jeito – retrucou – O que é isso afinal? Um sabre? – questionou pegando a arma.

— Parece um – disse Dorothy se aproximando.

— Você quer ficar com ele? – Charly esticou o objeto para a garota.

— É uma arma bonita, parece boa, mas já estou com a espada do Necromante e… – disse observando a empunhadura e a lâmina até encontrar um selo marcado no pomo da arma que ela reconheceu.

— Está tudo bem, minha senhora? – perguntou o serviçal notando a expressão de susto da garota.

— Sim – ela recobrou a atenção – É só que acho que conheço o ferreiro que fez esta arma. É de Theolen…

— É do Sr. Leon? – perguntou Charly preocupado.

— Não – negou a garota – O que quer dizer que mais pessoas de Theolen vieram para Thorrun recentemente.

— É, as histórias dos tesouros e da glória de quem viesse pra cá estavam já se espalhando na cidade – comentou Arlindo.

— Eu pensei que ninguém viesse por causa da maldição – disse a paladina – É perigoso vir pra cá!

— Pessoas estúpidas e desesperadas vem, mas obviamente não sobrevivem – falou Solomon iluminando um amontoado de pedras no chão que formava um túmulo revirado.

— Por Heirôneous… – disse Dorothy colocando o sabre sobre o túmulo.

— Melhor irmos embora, antes que o antigo dono desse sabre acorde – sugeriu o clérigo.

Seguindo viagem levemente abalados, passaram por uma grande árvore seca e solitária e caminharam por mais um bom tempo quietos. O silêncio no subterrâneo era uma constante, deixando apenas os passos na terra seca ecoarem no ambiente. Mesmo Charly e Arlindo que costumavam conversar mais durante as viagens, estavam calados, como se os diálogos não pudessem sobreviver ao local desolado.

Avistaram então, depois de quase uma hora no lugar amaldiçoado, o que parecia ser um pequeno vilarejo com não mais do que trinta casas de pedra e um grande templo, que lhes despertou curiosidade e aumentou os ânimos.

— Conseguem ver aquilo? É uma cidade? – questionou Dorothy forçando a vista.

— Parece ser uma vila, minha senhora – disse Nipples esticando o braço com a tocha para tentar iluminar melhor o local.

— Não sabia que ainda haviam pessoas morando aqui – comentou Charly curioso.

— Não há, devem ser apenas ruínas – falou Arlindo parando ao lado deles - Pelo que ouvi falar, há séculos ninguém vive em Thorrun.

— Bom, acho que deveríamos dar uma olhada – sugeriu Dorothy – Se não encontrarmos nenhuma pista do Steve, ao menos podemos usar as casas como abrigo, já deve ser quase noite e seria bom descansar depois de toda aquela luta.

Seguindo até o vilarejo, Nipples observou com olhos atentos as casas antigas feitas de alvenaria que ainda se mantinham em pé, mesmo depois de tantos anos. Elas tinham em geral, cerca de dois andares, possuíam a base quadrada ou retangular, mas se erguiam pouco neste formato de caixa, pois os telhados longos e triangulares desciam pelas laterais até quase o chão, deixando a impressão de as casas serem como grandes tendas de pedra. “Deve nevar muito aqui no inverno” pensou o serviçal, considerando que aquele tipo de telhado era geralmente usado para não acumular neve, mas logo lembrou-se que estavam no subterrâneo o que deixou bastante confuso.

Continuando a caminhada, os theolinos pararam perto de um fosso quebrado no centro da cidade, que visivelmente fora geometricamente planejada, e há poucos metros dele avistaram o enorme templo de granito. A construção sagrada tinha cerca de 15m de altura e contava com três naves, duas laterais e uma na frente, dando o formato de um “T” à basílica.

— Uau… É bem maior do que parecia – disse Charly admirado – Como pode haver algo grande assim debaixo da terra?

— É, e eu não acho que esse seja o maior templo de Moradin que há em Thorrun – disse Arlindo – Pelo tamanho da cidade, deve ser uma simples capela.

— Eu vou ver se tem algo de valor por aqui – falou Solomon se separando e indo em direção a uma das casas.

— Espera – exclamou Dorothy – Não deveria...

— Ah, não comece com moralismos – interrompeu o guerreiro – Sabe que vim pra cá por causa do dinheiro, não venha reclamar de saques à ruínas agora.

— Eu apenas ia dizer que não deveria ir sozinho – disse a garota um tanto surpresa com a reação do colega - Posso procurar por auras malignas antes de explorarmos tudo, assim não somos pegos de surpresa de novo – falou se aproximando do homem e encarando-o de baixo para cima.

— Ah… Faça isso então – disse ele enquanto se afastava da jovem e observava o local.

Dorothy olhou para Nipples deixando um pequeno sorriso escapar e o serviçal sorriu de volta notando o orgulho da garota ao surpreender o guerreiro com sua atitude. A moça então se aproximou de uma das casas e estendeu a mão, fechando os olhos e respirando fundo em seguida. 

Nipples estendeu a tocha para iluminar melhor o edifício e viu uma inscrição rúnica gravada ao lado da porta, indicando que aquela era a casa de um costureiro, o que fez o serviçal ter um pequeno devaneio sobre o reino de Thorrun.

As histórias sobre o lugar variavam geralmente entre dois temas: contos épicos enaltecendo a ousadia e prosperidade do ilustres anões que abandonaram Moradia para construir um novo lar no norte; ou histórias sobre as guerras, ganância, a maldição e a queda do reino mais rico que o mundo já teve.

Sendo assim, era muito curioso para Nipples pensar que aquele era um lugar como qualquer outro, com pessoas comuns como ele, que tinham trabalhos e vidas simples e não participavam das histórias epopeicas de Thorrun. 

Distraído com a história do local, Nipples acabou se assustando ao ver Dorothy desfalecendo ao seu lado repentinamente, e deixou a tocha em sua mão cair, para poder segurar a garota.

— Meus senhores! Socorro! – gritou para os outros homens que estavam espalhados dando uma olhada na vila.

— O que diabos aconteceu? – perguntou Solomon se aproximando e pegando a jovem com apenas um dos braços.

— Não tenho certeza, meu senhor. Ela apenas desmaiou! – justificou Nipples preocupado.

— Algo a atacou? – questionou olhando em volta.

— Não, estávamos sozinhos.

— O que houve? – perguntou Charly voltando correndo junto de Arlindo.

— Por Obad-Hai… Ela estava tentando sentir auras? – perguntou Arlindo para o serviçal, que concordou com a cabeça – Então dê alguns instantes, ela deve recobrar a consciência em breve.

— Isso é normal? – questionou Charly.

— Acho que não, mas quando tentou sentir a aura do Necromante pela primeira vez ela ficou bastante tonta. Deve ter se sobrecarregado como naquele dia.

— Isso significa que ele está aqui? – perguntou o garoto assustado.

— Pegue-a – disse Solomon entregando a moça desacordada nos braços de Arlindo e puxando o martelo da cintura em seguida – Se aquela besta maldita estiver aqui, farei questão de exterminá-la de uma vez por todas.

— Não é ele... – murmurou Dorothy abrindo os olhos.

— Hey, você está bem? – sorriu o clérigo de maneira encantadora.

— Minha senhora! – Nipples exclamou aliviado.

— Se sente melhor? – perguntou Arlindo.

— Sim… Obrigada – disse a paladina com a voz trêmula saindo do colo do galã – E não se preocupem, não senti o Necromante – falou olhando para o guerreiro – Era outra coisa.

— O que? – questionou o careca ainda alerta.

— Não sei dizer ao certo… Não é como se fosse um pessoa ou criatura, é como na Planície Roxa, só que pior. Como se houvesse uma aura neste lugar, no ambiente, uma aura densa e sombria. Acho que foi demais para eu suportar, mas estou bem. Quando aprendi a detectar auras malignas, Steve me alertou que às vezes podemos ser sobrecarregados por alguma energia que seja muito forte.

— Quer dizer que há algo muito ruim aqui embaixo, não é? – disse Charly com o cenho franzido.

— Talvez, mas pode ser a própria maldição que toma estas terras – respondeu a garota.

— Vamos torcer para que seja só isso. Eu realmente preciso descansar – falou o clérigo que ainda possuía ferimentos doloridos pelo corpo.

— Precisa de ajuda, meu senhor? – ofereceu Nipples prontamente – Posso limpar e enfaixar seus machucados.

— Isso pode ser útil… – concordou o clérigo com o serviçal.

Os dois então se afastaram e Nipples pode notar o quão ferido estava Arlindo, que mancou até a pequena escadaria em frente ao templo de Moradin, onde sentaram-se. O serviçal rapidamente começou a revirar sua mochila atrás de seus suprimentos de saúde então reparou no clérigo admirando a grande estrutura sagrada atrás deles. Os olhos do homem brilhavam encantados com o lugar e sua expressão era tranquila. 

Nipples havia se acostumado a ver o famoso bêbado da cidade nos corredores do castelo real sorrindo, sempre acompanhado de alguém, conversando ou flertando com a pessoa. Mesmo nesta viagem ele sempre estava papeando ou gracejando. Geralmente não via Arlindo quieto ou em um estado tão sereno, o que lhe causou certo estranhamento e o fez pensar que mesmo os dois trabalhando no mesmo local, viajando juntos e até compartilhando de um segredo sobre o passado do clérigo, eles mal se conheciam. Nipples havia julgado o homem por todo esse tempo apenas por rumores e sua fama, o que o deixou extremamente incomodado, já que era exatamente isso que desconhecidos faziam com ele. 

— É um belo templo, não acha, meu senhor? – falou.

— Absolutamente – concordou o homem sem olhar para o serviçal – É difícil enxergar a beleza em lugares maltratados pelo tempo como este, mas se puder vê-los no passado, ficará fascinado. 

— De fato, mas não sabia que era um admirador da arquitetura – falou já com pomadas e faixas em mãos.

— Prefiro as formas da natureza, mas posso apreciar belas construções também. 

— Eu compreendo. Sempre admirei prédios e outras edificações em Theolen, na verdade, acredito que a cidade seja uma das coisas mais bonitas que já vi – disse Nipples sorrindo saudoso de sua casa, fazendo Arlindo o encarar curioso - Me desculpe, meu senhor, acabei tendo um devaneio. Com licença - pediu envergonhado segurando o braço do clérigo para limpá-lo e enfaixá-lo.

— Sem problemas… – falou o clérigo perdendo o interesse pelo serviçal e voltando a atenção para Dorothy, Charly e Solomon que exploravam as casas vazias.

— Onde mais precisa de ajuda, meu senhor? – perguntou Nipples depois de cuidar dos ferimentos nos braços e no rosto do clérigo.

— Nenhum lugar, já curei o resto. Obrigado – respondeu levantando-se pronto para ir atrás dos outros.

— Tem certeza? Vi que estava mancando…

— Ah, mas é óbvio! Desde que saímos de Theolen não paramos de caminhar! É como se eu fosse um cavalo… Um belo alazão ou unicórnio, mas ainda um cavalo – gracejou, mas Nipples não riu, preocupado – Não se incomode com isso, se eu precisar, convoco seus serviços para uma massagem nos pés, está bem? – falou dando as costas e se afastando em seguida.

Nipples suspirou então começou a guardar suas coisas. Preferiu ficar ali mesmo, na escadaria do templo, aguardando a exploração da equipe pelas casas da cidade, afinal, caso ele os acompanhasse teria que suportar ver as antigas casas completamente cobertas por poeira e nada poderia fazer para melhorar a situação de limpeza do local. Então poupou-se de tal perturbação e começou a ler as inscrições rúnicas que circundam o batente da entrada do prédio sagrado.

Apesar de conseguir entender as palavras ali escritas, elas não faziam um sentido muito claro para o serviçal. “Talvez seja alguma magia” considerou, pois já havia visto alguns inscritos mágicos, que apesar de terem palavras compreensíveis, necessitavam de um conhecimento arcano ou sagrado para fazerem sentido em uma frase. Depois de aguardar algum tempo apenas descansando da longa caminhada até ali, o homem baixo viu seus companheiros de viagem se aproximarem conversando:

— Não acredito que vai carregar essa tralha até Theolen – disse Arlindo para Solomon, que encarou o clérigo enquanto jogava um candelabro dentro de uma trouxa improvisada feita com roupas de cama velhas.

— Parece bem pesado mesmo – comentou Charly.

— Vocês realmente acham que peso vai ser um problema pra ele? – perguntou Dorothy de forma irônica, afinal o guerreiro era o maior e mais forte dentre eles.

— Só estou dizendo que ele deveria procurar por coisas menores, como moedas - continuou o garoto.

— Posso esmagar essas coisas e elas ficarão menores, além disso não acho que vamos encontrar muito dinheiro por aqui – respondeu o guerreiro – Duvido que os anões mantinham suas economias em suas casas à vista para encontrarmos. 

— Será que eles tinham cofres naquela época? – questionou Charly.

— Talvez o Nipples saiba – falou Dorothy sorrindo ao parar de frente para o serviçal.

— Meus senhores? – levantou-se à disposição.

— Sabe onde os anões guardavam dinheiro Nipples? – perguntou o mais jovem.

— Oh, sinto muito, meu senhor, não possuo esta informação. O povo anão costuma ser bastante ostensivo, porém nunca compartilham onde guardam seus pertences valiosos.

— Ah… Não acredito que viemos pro reino mais rico de todos os tempos e não vamos sair com os bolsos cheios de dinheiro… – falou o garoto desapontado sentando-se na escadaria.

— Ainda tem aquele que conseguiram na floresta – falou Arlindo.

— O que? – perguntou Dorothy.

— Encontramos um saco com uns tesouros antes de nos depararmos com o troll, quando estávamos te procurando – respondeu o homem louro.

— Vocês lutaram contra um troll e encontraram tesouros? – ela perguntou retoricamente – Porque coisas legais assim só acontecem quando eu não estou por perto? 

— Sua definição de algo legal é bem estranha… – zombou o clérigo, fazendo a menina e Charly darem risada. 

— Olha, pra alguém que desde pequena ouviu sobre aventuras magníficas, histórias com heróis, monstros e tesouros, é algo que parece divertido, ta bem?! - justificou Dorothy.

— Falando assim, se um dia contassem essa nossa história seria legal mesmo falar sobre como derrotamos um troll – concordou Charly mais animado – Embora não tenha sido nada divertido na hora, só desesperador mesmo… – fez uma careta se lembrando da luta.

— Exato – continuou o clérigo – E acho que é o que falta nessa viagem, um pouco mais de diversão, nós só trabalhamos aqui… O que faria pra relaxar se estivesse em Theolen? - perguntou olhando para o garoto.

— Ah, eu não sei… Eu costumava fazer desafios com o pessoal da minha rua, ou passear pelos parques. Ah! Eu gostava muito de ver os festivais de longe, mas nunca fui em um por não ter quem levar… – olhou para baixo envergonhado.

— Isso é adorável, mas não era o que eu estava esperando. Você ainda é jovem demais pra conhecer os melhores prazeres da vida… – falou o clérigo – Solomon, o que você fazia para se divertir na cidade?

— Não é da sua conta – respondeu o guerreiro desinteressado mexendo em seus pertences recém-adquiridos.

— Ah, certo, esqueci que você não sabe o que a palavra significa… Ahn vamos ver… Nipples? – falou com o nariz franzido.

— Meu senhor?

— Sua diversão é fazer faxina, não é?

— Sim senhor! – respondeu com orgulho.

— Pelas folhas de Obad-Hai... – lamentou Arlindo passando a mão pelo rosto – Vocês realmente precisam de alguém que os ensine a viver de verdade.

— Mas e eu? Você não perguntou o que eu faço... – disse a paladina.

— Porque sei que irá dizer algo como “treinar” – falou o homem provocando outra risada em Charly.

— Isso não é justo, eu gosto de outras coisas também! – ela exclamou cruzando os braços enquanto o clérigo a encarava desconfiado.

— Como o que? – ele perguntou.

— Como... cavalgar! E ler e ouvir histórias, ir em torneios, essas coisas... – respondeu depois de pensar um pouco.

— Pela terra sagrada… Sabe o que é realmente divertido? Levantar e tomar um banho de sol pela manhã enquanto faz alguns exercícios para acordar o corpo, depois relaxar nu em um lago sentindo a presença de Obad-hai e aproveitando o tempo só. Se tiver tempo pode se secar ao natural enquanto se delicia de frutas frescas colhidas no jardim. Em seguida caminhar pela cidade e conhecer coisas novas seja na rua, no mercado, numa praça ou no trabalho. E ao escurecer, o ideal é colocar sua melhor roupa e se preparar para uma noite de bebidas na companhia das mais belas pessoas enquanto aproveita de uma boa música e um eventual romance. Isso é o que eu chamo de um bom dia - falou o clérigo saudoso de sua rotina.

— Bom, de qualquer jeito, não acho que dê pra fazer nada do que falamos aqui - disse Dorothy suspirando.

— Ah, eu consigo improvisar algumas coisas – comentou Arlindo de forma ambígua causando um pequeno silêncio constrangedor dentre o grupo.

— Bom minha senhora, não é como a leitura de um livro, mas se eu encontrar mais runas posso lê-las para vocês – sugeriu Nipples – Imagino que neste templo devam ter algumas.

— Obrigada Nipples, mas não quero se sinta na obrigação de nos entreter – ela falou com um sorriso sem graça.

— Oh, minha senhora, não será um problema, eu aprecio a leitura e será bom para exercitar o meu conhecimento na língua anã.

— Parece legal, vai que eles tem coisas interessantes sobre esse lugar - falou Charly.

— Suponho que seja melhor do que fazer nada… – disse o clérigo dando de ombros.

— Ta bem então, vamos entrar. Podemos dar uma olhada no local, aproveitar para descansar e depois vamos comer algo – falou a paladina.

Empurrando uma enorme porta empoeirada, eles avistaram a grande ala principal do local e adentraram o templo. Havia um grande salão aberto, com alguns bancos compridos encostados nas paredes, onde Solomon se deitou para descansar, uma vez que as camas das casas da cidade não suportavam seu tamanho. 

Pedras translúcidas se disponham pela construção de forma que qualquer luz que entrasse no local era refletida por todo o ambiente enquanto que no chão, desenhos formavam uma espécie de padrão geométrico que antigamente era usado para organizar a posição dos frequentadores daquele templo e um grande altar central erguia uma figura anã masculina feita de pedra escura. 

— Esse é Moradin? – perguntou Charly observando a estátua.

— Não – responderam Nipples e Arlindo ao mesmo tempo o que chamou a atenção de Dorothy e até mesmo de Solomon que começou a acompanhar a conversa de fundo.

— Moradin é sempre retratado com um martelo e uma bigorna, isso se não for representado apenas por estes objetos, apesar de parecer um pouco, não acho que seja ele... - continuou o clérigo.

— Aqui diz que este é Ulfgar Thorrun – disse Nipples, lendo as runas na base da estátua.

— Ulfgar Thorrun? Como o reino? – perguntou Charly.

— Achei que ele havia sido um rei, o que ele está fazendo em um templo? – perguntou Dorothy curiosa.

— Bom, meus senhores aqui diz o seguinte: “Que as palavras de Ulfgar Thorrun nos guie para fora da escuridão”.

— Que estranho, normalmente templos não colocam qualquer figura não sagrada dentro de seus espaços – falou Arlindo observando perplexo a figura de pedra.

— Talvez eles o considerassem como um deus também – comentou Charly.

— Isso foge muito ao comportamento religioso dos anões, eles restringem muito sua fé à Moradin – disse o clérigo – Nunca vi nada além de símbolos e imagens dele em templos.

— Bom, Steve, apesar de ser o Escolhido não cultua nenhum deus específico, ele me disse que tira suas força de Theolen, então imagino que dê pra cultuar outras pessoas ou coisas, não é?! – falou Dorothy.

— É, talvez… – concordou o louro suspirando e colocando as mãos atrás da cabeça - Talvez ele fosse tão carismático que tenha convencido seu povo a não só segui-lo como monarca, mas também a cultua-lo como um deus.

— Isso seria bem impressionante – disse Charly.

— Hum, não sei... Imagino que o povo acreditava e tinha tanta fé nele que acabaram por cultua-lo, transformando-o em uma divindade para eles - falou Dorothy divagando.

— Acho que pode estar certa, minha senhora – concordou Nipples fazendo com que os três voltassem os olhares para ele – Parecem haver runas no chão explicando um pouco mais sobre isso. 

— Pode traduzir? 

— Sem problemas, parece estar escrito em forma de uma canção, mas como não possuo dotes de canto, contarei como um poema se não se importarem.

— Parece divertido – Dorothy sorriu e puxou Charly e Arlindo pela mão até os bancos laterais do salão para dar espaço para Nipples seguir com a leitura.

O pequeno homem começou então a seguir os padrões desenhados no chão que eram acompanhados das runas informativas, ele iluminou o piso de ônix negro com a tocha enquanto caminhava até encontrar o início da história e começar a relatar em voz alta os inscritos milenares do local.

 

“No início não havia nada,

Apenas a imensidão

Um reino vazio no topo do mundo

Que virou o lar do povo anão.

 

Rejeitados da terra natal

Sozinhos em um novo lugar

Escutaram as vozes das sombras

Que lhe prometeram um próspero lar

 

Enganados pelas trevas, 

E pelo lorde que ali reinava

O poderoso povo anão

Ganhou riqueza ao troco da alma

 

A ganância tomou conta

Dos corações tão deslumbrados

Pois muito poder eles tinham, 

Mas preços altos lhes foram cobrados

 

Guerras se iniciaram,

E o povo se dividiu

Mas de dentro das montanhas

A canção de um herói surgiu

 

Sem medo de lutar

E salvar seu povo da devastação

Ulfgar Thorrun ergueu sua voz

Contra o deus da escuridão

 

Uma batalha foi travada

E um martelo o anão brandiu 

Enquanto o monstro definhava

Sob a luz que o extinguiu

 

Guiando o povo para um tempo

De paz e prosperidade

Ulfgar Thorrun salvou a todos

E reinou pela eternidade”

 

Nipples deu o último passo e terminou a leitura. Estava encantado com a história contada ali e observou maravilhado a estátua de pedra do anão da lenda. Por um momento e pela primeira vez durante aquela viagem, Nipples ficou feliz de estar em Thorrun tendo a oportunidade de conhecer sobre a cultura do reino vizinho ao seu e de poder dividir esse conhecimento com seus amigos.

— É isso, meus senhores – disse por fim.

— Obrigada Nipples – agradeceu Dorothy.

— Uau…– balbuciou Charly – Ele matou um deus! Eu nem sabia que isso era possível!

— E não é – corrigiu Arlindo – Deuses são seres imortais. Ele pode ter derrotado esse tal Lorde das Profundezas, mas não o destruído permanentemente. Deve ser apenas um exagero da história.

— Não deixa de ser impressionante – continuou a paladina – Mas acho que tem razão… Parece que mesmo depois de libertar seu povo e fazer Thorrun virar o grande reino que ouvimos nas histórias, o Lorde das Profundezas ainda amaldiçoou o local e conseguiu acabar com tudo o que Ulfgar construiu - falou com um tom mais triste na voz.

— Deuses podem ser cruéis – disse o clérigo passando a mão na nuca.

— Ainda bem que estamos no templo do herói da história então – brincou Charly.

— É, acho que podemos ficar tranquilos aqui por enquanto. Ulfgar Thorrun irá nos proteger – concordou Dorothy sorrindo.

E por mais que a garota estivesse falando aquilo para descontrair, Nipples sentiu que ali eles estavam realmente seguros, e poderiam descansar e se recuperar no templo do rei anão.


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