Sons of Theolen escrita por Live Gabriela


Capítulo 32
Nipples - O Serviçal


Notas iniciais do capítulo

Capítulo escrito por Mateus de Fraga Rodarte com revisão e pequenas alterações por minha pessoinha :)



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O pano úmido foi esfregado vigorosamente contra a superfície de madeira do balcão da cozinha. A ação emulsificante da infusão de ervas especialmente preparada por Nipples começava a fazer seu efeito e, aos poucos, o serviçal conseguiu fazer desaparecer uma mancha esverdeada que talvez estivesse ali por mais de um ano. Ele observou a superfície agora uniforme, e embora não tenha sorrido sentiu-se especialmente satisfeito com o trabalho, afinal ele mesmo duvidara de sua capacidade de limpar aquele balcão.

— Acho que agora está bom — sussurrou para si mesmo.

Horas haviam se passado desde a partida de Dorothy e Arlindo e o clima dentro da cabana de Vaalij estava tenso. Enquanto Charly, Solomon e o próprio dono da casa debatiam sobre se e quando os visitantes deveriam partir, e sobre como seria mais seguro para todos se Vaalij permanecesse no celeiro durante a noite, o serviçal concentrou-se em identificar focos de sujeira e eliminá-los sistematicamente, decidindo não se abater naquela situação.

Nipples fez todo o procedimento de coleta e preparação de suas infusões limpadoras de maneira furtiva, de forma que até um fugaz ladino invejaria. Sua baixa estatura e semblante completamente desinteressante contribuíram para que os outros não o notassem em suas empreitadas particulares de limpeza; e mesmo quando avistado, seus companheiros de viagem não se incomodavam em entender o motivo para tamanho esmero com a limpeza do local. Da mesma forma, não podiam notar o quão nervoso Nipples estava com aquela situação. Entre uma esfregada e outra, escondido por trás de um rosto estático e gélido, o coração do serviçal pulsava em agonia, mas ele continuava limpando.

E por que limpar? Por que não chorar? Rezar? Meditar? Pois este era Nipples. Ele odiava sujeira e desorganização. Ele limpava e organizava inconscientemente, não apenas por detestar a sujeira, a qual ele tinha total repulsa, mas porque esta era a forma dele lidar com o mundo e com suas frustrações. Limpar para ele, era como escrever para um poeta ou desenhar para um artista, era sua forma de se entender como ser, e manifestar-se em relação ao que sentia.

Desde o final de sua juventude, a sujeira e desorganização começaram a incomodar o pequeno homem. Começou com um preciosismo, apenas uma preferencia por lugares limpos. Com o tempo a ausência destes ambientes passou a lhe causar um incômodo, e depois disso uma necessidade quase patológica de arrumar e limpar surgiu no serviçal, mas sempre que questionado ele respondia estar fazendo o seu trabalho. Alguns anos mais tarde, ele passou a saber da existência de germes, os quais nunca soube ou se preocupou em saber o que eram, limitando-se a entender que eram ruins e que estavam associados à sujeira. Passaram a ser uma desculpa para justificar seus exagerados hábitos de limpeza a partir de então.

Essa aversão à sujeira já seria um grande motivo para todo o esmero que aplicava na faxina que fazia naquela cabana, mas era apenas um dos três motivos que moviam o serviçal naquele momento.

O sol se aproximava do horizonte, e com ele o tempo de normalidade chegava ao fim. Em algumas horas Vaalij poderia passar por uma transformação, de forma que a única alternativa que tinham seria trancá-lo no celeiro. Para Nipples, embora essa fosse o único caminho possível para lidar com a situação sem ninguém se ferir, a simples ideia de trancar um anfitrião em um cômodo, sendo este aliás um de tão baixa comodidade, enquanto os convidados pernoitavam em sua casa, parecia-lhe um situação esdrúxula. Um absurdo na falta de etiqueta e bons modos, uma verdadeira abominação. Lembrar, aliás, que além de trancá-lo no local eles também iriam drogá-lo só piorava a situação para o serviçal.

E este era segundo motivo pelo qual Nipples estava esfregando a casa de maneira tão focada. Embora fosse uma contribuição irrisória perante a todos os inconvenientes que ele acreditava estar causando ao seu bom anfitrião, era tudo que ele, um serviçal, poderia fazer.

Mas não importa o quão mal Nipples estivesse com aquela ridícula situação em que haviam colocado Vaalij, se algo realmente o incomodava era o fato de não estar com Dorothy. Este era o terceiro motivo pelo qual Nipples eliminava toda a sujeira sem descanso.

Ele ainda se lembrava de maneira vívida os sentimentos antagônicos que passaram em sua mente quando uma mensageira real havia lhe informado de sua tarefa de acompanhar a jovem Dorothy Leon em sua missão ao norte como seu pajem oficial. Se por um lado a simples ideia de sair do castelo, frequentemente limpo pelas suas próprias hábeis mãos para viajar a um ambiente natural, lotado de poeira, lama, folhagem em decomposição e criaturas nojentas, era um verdadeiro absurdo, receber ordens do rei de Theolen, para acompanhar àquela a qual muitos acreditavam ser a verdadeira escolhida era de fato uma honra muito grande.

Nipples nunca havia almejado glória, fama, riquezas, aventuras ou qualquer coisa que lhe retirasse de sua confortável rotina como serviçal. Era um homem simples em todas as definições e isso era para ele motivo de orgulho e tranquilidade, talvez, de certa forma que apenas ele entendia, felicidade. Mas se as recompensas tradicionais em nada tentavam o já experiente serviçal, a sensação de cumprir suas tarefas era para ele algo muito importante e almejável. Não pelo reconhecimento, as poucas vezes que haviam notado o nível de cuidado e profissionalismo em sua limpeza no castelo não eram para Nipples motivo de orgulho e alegria, ele realmente não se importava com isso. O que realmente importava era que ele mesmo reconhecesse que ao final do trabalho, este tivesse sido feito da melhor forma que se poderia. Nipples era um homem que prezava a excelência, muito acima do reconhecimento e outras bonificações.

E neste momento ele estava falhando em sua missão. A tarefa mais importante dada a ele até aquele momento, e seu desempenho estava sendo ridículo. Sua senhora estava amaldiçoada, rumando sozinha ao sul para pernoitar num mausoléu imundo junto de cadáveres que levantavam e poderiam feri-la. E ele estava ali, em uma cabana quentinha e segura. Ou o mais próximo disso que era possível naquele reino maldito.

Naquele momento Nipples estava sendo um serviçal tão ruim quanto poderia ser. Ele havia falhado com o rei, a equipe, e principalmente com Dorothy. E por isso Nipples limpava. Pois só assim ele poderia não se abater.

— Acho que é chegada a hora — disse Vaalij olhando para a janela, de sua poltrona.

Charly e Solomon olharam para ele em silêncio, sendo o som do pano de Nipples sobre a madeira da parede o único ruído no local. Após alguns instantes Solomon interveio quebrando o silêncio:

— Muito bem. Nipples, o chá está pronto? Preciso levar Vaalij até o celeiro.

Nipples assentiu com a cabeça, pegou o chá, serviu em uma xícara de barro e entregou a Vaalij. O anfitrião o encarou com um olhar sereno, podia perceber que o serviçal não estava bem, mesmo por trás de sua aparência pragmática.

— Obrigado Nipples — disse Vaalij sorrindo.

Nipples engoliu em seco. “Como ele pode sorrir nesta situação?” pensou consigo.

— Não agradeça, meu senhor — respondeu em seguida com sinceridade, porém de forma mais séria do que de costume, com um traço de culpa na voz.

O homem então bebeu rápido o chá, estava com o gosto muito mais forte se comparado ao utilizado na noite anterior, afinal Nipples não precisava disfarçar o sabor desta vez.

Vaalij se levantou e caminhou para porta. Solomon fez o mesmo em seguida, afixando o martelo no cinto. Nipples incomodado com aquele procedimento, interveio, se oferecendo para levar o anfitrião no lugar do guerreiro. Solomon ficou em silêncio por alguns instantes, aquele homem havia amaldiçoado Dorothy Leon, nada poderia confirmar que era de fato confiável como alegava o serviçal, mas Nipples já havia se provado digno de confiança e por isso o guerreiro concordou; assim Nipples e Vaalij foram para o celeiro.

O homem de cabeços ruivos e encaracolados sentou-se em silêncio e Nipples começou a amarrá-lo contra uma das vigas que sustentavam a construção, da mesma forma que havia sido feito no dia anterior. Ele olhou discretamente o rosto de Momeh e viu que parecia abatido, ou ao menos assim ele estava até o momento em que percebeu estar sendo observado, quando converteu a expressão penosa em um sorriso caloroso, porém não verdadeiro.

— E então, será que encontrarão esse Steve em breve? — perguntou Vaalij tentando evitar qualquer assunto relacionado à maldição ou algo que pudesse deixar Nipples ainda mais desconfortável.

— Espero que sim meu senhor, muito em breve eu espero — respondeu o serviçal prendendo as correntes.

— Vocês já tem planos para depois disso? Quero dizer… Se a missão era encontrá-lo, vão voltar para a cidade logo depois?

— Por Pélor, que sim! Não posso mais suportar este lugar.

Vaalij sorriu, desta vez de forma espontânea. Nipples então percebeu estar falando mal do reino onde morava o seu atual anfitrião e corou-se.

— Quero dizer… Sua casa é lin…— alongou a sílaba.

Pensou em dizer que a casa era linda, mas segundo sua perspectiva seria mentira, haviam casas muito mais bonitas em Theolen, ele mesmo vivia no castelo! A palavra limpa também veio à sua mente, apesar de que a cabana estava limpa somente agora, após horas de trabalho do serviçal, mas ele preferiu não se preocupar com os detalhes.

— Limpa, sua casa é bem limpinha — soltou por fim colocando uma manta sobre o homem.

— Geralmente não, mas você deu um bom jeito nela hoje — disse Vaalij e Nipples concordou silenciosamente, sem deixar transparecer.

— Espero que não tenha se importado meu senhor, devido a sua hospitalidade acreditei que seria uma boa forma de agradecer. — Fez uma pausa. — Não costumo limpar lugares sem que antes me peçam por isso. — esclareceu. Os pequenos “ajustes” realizados com panos em ambientes sujos não eram vistos como limpeza para Nipples.

— Na verdade eu gosto da minha cabana bem do meu jeitinho, mas se limpar te deixa mais confortável… — sorriu discretamente.

Nipples terminou de prender o homem e então o olhou no rosto. Podia sentir no fundo que ele era uma boa pessoa, queria muito ajudá-lo, mas entendia que nunca poderia fazê-lo, afinal em um mundo de Escolhidos, clérigos e guerreiros lendários, ele era apenas Nipples, o serviçal.

— Me desculpe, meu senhor — disse om a voz trêmula virando-se de costas.

— Nipples… — chamou Vaalij, mas o serviçal correu para fora do local antes de lhe dar tempo para falar qualquer coisa, afinal Nipples não poderia deixar-se abater. Ao menos não na frente de qualquer um que pudesse ver.

Dentro da cabana, Charly e Solomon esperavam pelo retorno do serviçal. Sentado no sofá de vime, o garoto folheava o Livro dos Monstros escrito por Vaalij enquanto Solomon apenas o observava de braços cruzados.

— O que está fazendo? — perguntou o homem careca.

— Estudando Worgs — respondeu o jovem.

— O que é isso?

— São lobos das sombras, criaturas semelhantes a canídeos, mas conjurados e espalhados no passado por entidades malignas a fim de gerar desordem e devastação.

— Hum.

— Vaalij desenhou um aqui, ele é um excelente artista — disse Charly mostrando a figura do Worg para seu companheiro de viagem.

— Acho que já matei alguns desses — respondeu Solomon, sisudo — A carne desce muito mal. Um companheiro de equipe teve problemas com isso, se abater um e tiver estômago fraco, não o coma, ao menos que não se importe de passar o dia seguinte no mato — aconselhou.

— No mato? 

— Defecando.

— Ah.

A porta se abriu e Nipples entrou segurando os braços para se aquecer dos ventos gelados do norte. Tentou encaixar a porta da melhor maneira que pode no batente, mas apesar dos remendos e consertos que Vaalij fizera nela, ainda não ficava completamente fechada, devido aos estragos causados pelo homem-javali durante a lua cheia.

— Como foi lá? — perguntou Charly.

— Como assim meu senhor?

— Não deu nenhum problema?

— Oh, não meu senhor, Vaalij é um homem bom, a menos que esteja sob a influência da maldição, ele é incapaz de nos causar mal.

Solomon virou a cabeça para o canto considerando se discordava abertamente da boa vontade do serviçal, mas concluiu que não valia o esforço e continuou calado. Charly se voltou para o livro novamente e Nipples se dirigiu ao seu estojo de limpeza, procurando por mais coisas que pudesse limpar ou organizar.

A noite caiu e logo os três começaram a ouvir grunhidos altos vindo do celeiro, mas aparentemente nada havia saído de lá. Após algumas horas ouviram um som na porta. Solomon pegou o martelo e foi espreitar, uma figura humanoide suada mas ainda assim de beleza notória adentrou a cabana junto com o frio.

— Perdi alguma coisa? — perguntou Arlindo, o clérigo lindo.

— Oh, meu senhor! — disse Nipples se aproximando do único nobre em um raio de quilômetros. Um nobre bêbado, sem classe, modos ou etiqueta, mas ainda um nobre. — Como está a senhorita Leon? O que aconteceu?

Arlindo sem perceber a pergunta do serviçal, passou por ele e caminhou até Solomon.

— Onde está o Homem-Javali? — perguntou enxugando o suor do rosto fino.

— No celeiro — respondeu o guerreiro. — Ele tomou o chá e foi amarrado.

— Você o amarrou?

— Não, foi o serviçal.

— Você foi conferir? — franziu levemente cenho.

— Não é preciso.

Arlindo encarou Solomon com os olhos levemente fechados. O guerreiro o encarou de volta com sua expressão costumeira. O clérigo então deu de ombros.

— Se você diz… — falou caminhando até o sofá.

— E a Dorothy? — perguntou Charly fechando o livro e olhando para Arlindo com grande interesse.

— Não conseguimos chegar a tempo — respondeu o clérigo sentando-se, mas antes que pudesse continuar a falar, seus três companheiros de viagem se aproximaram agitados fazendo diversas perguntas simultâneas.

Arlindo considerou que tentar responder a todas seria muito trabalhoso e recostou-se no encosto do sofá de vime, esperando até que todos se silenciassem para que ele continuasse o relato.

— Como eu ia dizendo… - continuou. - Não conseguimos chegar a tempo. Nos aproximamos da planície, mas o sol já estava próximo demais do horizonte e preferimos nos separar, mas não se preocupem, eu falei com Obad-Hai e ele disse que tá tudo certo — disse tirando as botas com os pés doloridos e os apoiando em seguida sobre o caixote de madeira que servia de mesinha.

— Maravilhoso! — exclamou Solomon de forma irônica. — Ele veio até você falar isso? Você fez uma "magiquinha" e agora devemos ficar tranquilos?

— É claro que não homem — respondeu Arlindo com um semblante tranquilo. — Eu perguntei e seus lacaios sopraram-me augúrios de tempos ainda hão de chegar — explicou rodando o pulso.

— Como vozes na sua cabeça? — perguntou Charly curioso, sentado ao seu lado.

— Isso — respondeu o clérigo sereno, sem se importar muito em explicar sua magia. — Como vozes…

— Eu tinha um vizinho que ouvia vozes — respondeu Charly. — Mas ele era só doido mesmo… Como pode diferenciar seus pensamentos destas vozes? Principalmente considerando o quão bêbado você costuma ficar.

— Garoto… — Arlindo apontou na direção de Charly — Bebida não te faz ouvir coisas que não existem, apenas ampliam seus sentidos.

— Não tenho tempo para isso — disse Solomon se sentando na poltrona.

— Além disso, — continuou Arlindo. — um clérigo poderoso e experiente como eu sempre sabe lidar com suas magias.

Charly, ainda não convencido dos poderes de Arlindo, balançou a cabeça negativamente e deu de ombros. O clérigo olhou os dois membros que considerava relevantes na equipe sentados pensando sobre a situação. E então viu Nipples o encarando.

— Tem comida? — perguntou ao serviçal. — Tenho que evitar a ressaca.

— Tem carne, meu senhor — disse Nipples ainda curioso para saber mais sobre Dorothy.

Mas após alguns instantes encarando o clérigo a espera de informações que não recebeu, Nipples foi preparar algo para que todos comessem.

Embora estivessem preocupados em menor ou maior grau com o paradeiro da paladina, havia na informação de que ela não havia chegado no mausoléu, um motivador de dúvida na cabeça de todos. Para onde deveriam ir? Deveriam continuar em busca de Steve? Deveriam procurar por Dorothy? E se a encontrassem pela noite e ela estivesse transformada? O que deveriam fazer? Era o que todos pensavam, mas ninguém se arriscava a dizer.

Depois comer a refeição preparada por Nipples, a equipe se preparou para dormir. Os grunhidos e barulhos que vinham do celeiro já haviam cessado há algum tempo e Arlindo se retirou para o quarto de Vaalij, onde ficou a noite inteira. Charly pegou o colchãozinho velho e fino que usara na noite anterior e o arrastou até a sala deitando-se perto do sofá. Já o serviçal, apenas arrumou alguns panos sobre o chão e se deitou. Ao olhar para o lado viu Solomon sentado na poltrona observando o céu através da janela. Se perguntou por um momento no que o guerreiro estaria pensando, mas acreditou que não seria da sua conta e se voltou para o lado, ainda preocupado, e sem ter o que limpar.

Foi uma noite de tensão e pesadelos para o serviçal. Pouco antes de amanhecer ele pode ver Charly sentado observando a porta. Preocupado Nipples o chamou sussurrando:

— Meu senhor… Deveria descansar.

—Ah, Nipples — Se virou para o serviçal surpreso. — Não se preocupe, já dormi bastante.

— Um pouco mais de descanso não faria mal, meu senhor.

— Eu… Está bem… — concordou se deitando.

Em torno de meia hora depois Charly se virou para Nipples novamente e percebeu que o serviçal ainda estava acordado.

— Não consegue dormir também? — Perguntou o garoto apoiando a cabeças sobre mãos juntas.

— Não se preocupe comigo, meu senhor.

— Está pensando nela? E se ela está bem? Também está preocupado?

Nipples ficou em silêncio. E então concordou com a cabeça.

— O que faremos se o Solomon não quiser ir atrás dela? — perguntou o garoto agitado virando-se de barriga para cima. — Ele não está aqui por causa do Steve, ele pode querer ir atrás dos tesouros. O que faremos se ele quiser ir até mais o norte? Vamos com ele? Ficaremos e procuraremos a Dorothy? Acho que o Arlindo iria com ele e sei que não posso achar a Dorothy sozinho, eu não sou burro, mas… — Comprimiu os lábios. — Para onde você iria?

— Eu vou achar a senhorita Leon — respondeu Nipples sem pensar duas vezes.

— Mesmo sozinho? — questionou o garoto depois de encará-lo por um momento.

— Mesmo sozinho, meu senhor — respondeu Nipples ainda sem entender de onde havia tirado tamanha certeza e confiança.

— Você não tem medo, Nipples?

— Medo, meu senhor?

Nipples pensou e tentou entender o que se passava dentro de si. Ele olhou para os lados inquieto, não havia limpeza ou trabalho para desviar seu foco, ele tinha que responder e lidar com seus sentimentos, era o único jeito.

— Eu estou apavorado — confessou deixando os olhos umedecerem pela primeira vez diante de outra pessoa em anos. — Enquanto vocês dormiam acordei chorando três vezes. Me segurei durante horas, fiz o que pude para não desabar, mas cada vez que pensava no dia de amanhã apenas medo e insegurança passavam pela minha cabeça, meu senhor. — Nipples fez uma pausa e limpou os olhos lacrimejantes. — Mas se medo fosse motivo para se desistir do trabalho, Theolen seria apenas uma vila de selvagem localizada entre os bosques do norte. Meu dever é com a senhorita Leon, então mesmo que minhas pernas travem e meu corpo trema, mesmo que eu seja capturado no caminho por aqueles terríveis Drows ou aqueles arbustos horrorosos… Meu destino está selado ao da senhorita Leon. Eu vou encontrá-la.

Charly sorriu. Pode sentir uma segurança no serviçal que não experimentava desde o momento em que Dorothy Leon havia lhe permitido viajar junto dela para o reino de Thorrun. O garoto sabia que sozinho Nipples tinha tantas chances de sucesso quanto ele, talvez menos, mas Dorothy era sua amiga, não poderia simplesmente deixá-la, não poderia também abandonar o serviçal.

— Então vamos juntos — respondeu o jovem theolino por fim.

Depois de algum tempo os raios do sol começaram a se espalhar sobre o reino dos anões do norte. Nipples e Charly aproveitaram alguns intervalos de sono um pouco mais tranquilos após a conversa da madrugada, mas o tempo de paz havia chegado ao fim. A manhã veio e com ela os viajantes começaram a se levantar, arrumando a pouca bagagem que havia sobrado após as desventuras anteriores.

Solomon se levantou da poltrona onde passara a noite, pegou a armadura e o martelo e foi para o lado de fora sem falar com os companheiros. Arlindo saiu do quarto se espreguiçando, encheu um copo de cerveja e começou a retirar a roupa para sua reza matinal, um ritual que finalmente poderia fazer por completo sem a presença de uma dama que poderia se ofender. Charly ao ver o companheiro se despindo se levantou e foi para o lado de fora da cabana com passos acelerados. Nipples apenas não olhou na direção do clérigo, haviam muitos cobertores e panos para serem arrumados, sem contar na organização dos móveis que haviam sido movidos do lugar, ele não poderia perder tempo com as esquisitices daquele homem.

O serviçal então iniciou seus afazeres tentando acalmar o coração acelerado, pois apesar da expressão apática no rosto, Nipples estava nervoso já que logo ele iria ter de informar Solomon sobre sua decisão de ir procurar por Dorothy, o que lhe causava pânico. Sendo assim, protelou o máximo que pôde, dobrou e redobrou as cobertas, até estarem praticamente simétricas e ajustou os móveis até seus locais de origem exatos, mas depois disso, não havia mais o que ele pudesse fazer.

Juntou então a mochila de Dorothy que estava pronta há dois dias no quarto, junto do arco curto e aljava que ela esquecera e notou, quando a pegou do chão, uma caixinha de madeira caída embaixo da cama de Vaalij. Já havia visto aquele objeto antes, inclusive fora o motivo por ter sido sequestrado por drows; parecia ser algo muito importante, de extremo valor e provavelmente a paladina havia o esquecido ali. O pequeno homem se agachou e tocou na caixa, sentindo um forte calafrio que o fez soltar o objeto num ato reflexo. Confuso com a situação, pegou um de seus lenços de bolso e com ele puxou o baúzinho para perto de si, reparando em algumas inscrições douradas na borda que não tinha notado antes. Havia certamente algo de especial naquela peça única, mas ele julgou que não era de sua conta e colocou a caixinha na mochila, imaginando que Dorothy ficaria satisfeita por ele ter se lembrado de pegar seu pertence.

Nipples saiu do quarto com a mochila na mão e respirou fundo. Olhou para a casa que já quase reluzia de tão limpa e fechou os olhos. O momento havia chegado, não havia mais o que limpar e ele teria de lidar diretamente com suas escolhas. Era hora de falar com Solomon.

Passando por Arlindo, que terminava a reza e começava a se vestir, Nipples colocou a mochila sobre a mesa e saiu pela porta da cabana vendo o guerreiro acompanhar Vaalij para fora do celeiro. O serviçal engoliu a saliva, juntou toda a coragem e estupidez existente em seu pequeno e atarracado corpo, e caminhou na direção do homem.

— Senhor Hahn — disse Nipples quase gaguejando, e tentando esconder uma mão tremulante. — Eu gostaria de perguntar o que pretende fazer… Quero dizer… Senhor...

Solomon voltou sua atenção ao serviçal e o encarou. Nipples respirou fundo então continuou.

— Quero dizer, senhor, não posso deixar a senhorita Leon para trás, meu dever é para com ela, e bem... Senhor, eu preciso encontrá-la e-— piscou algumas vezes olhando para o chão, tentando encontrar as palavras que lhe fugiam à boca.

— Tudo bem — respondeu Solomon e então se virou para Vaalij voltando a pedir mais informações sobre o local.

Nipples ergueu a cabeça e encarou o guerreiro confuso, não sabia o que aquela resposta significava. Esperou por mais alguns momentos até a conversa entre Solomon e Vaalij se cessar e falou novamente.

— Senhor Hahn, estou partindo em busca da senhorita Leon.

— Eu entendi.

Nipples o observou perplexo, talvez o guerreiro o considerasse tão insignificante que nem ao menos se importava com sua partida. Isso era bom, o problema é que por mais de uma vez aquele homem havia se irritado com momentos de exposição desnecessária de Charly ao perigo. Anunciar que o garoto iria com ele atrás de Dorothy poderia ser muito problemático.

— E senhor... — Nipples prosseguiu sentindo o coração quase saltar pela garganta. — O jovem senhor Charles vai comigo.

Solomon olhou o serviçal por um instante com a sobrancelha levemente erguida. Nipples se encolheu amedrontado e por fim o guerreiro respondeu.

— Eu sei. — Fez uma pausa. — Não só ele aliás… O garoto veio falar comigo mais cedo, acredito que a Leon ainda pode ser útil dependendo do estado em que esteja. Não confio em vocês três para um mínimo de apoio em combate. Então vocês dois não vão atrás da garota… Vamos todos.

Nipples atônito com o peso que aos poucos saia de suas costas deixou o queixo cair levemente.

— Oh… Está bem então.

— Mais alguma coisa? — perguntou o guerreiro.

— Não senhor… — respondeu Nipples recuando e indo para um canto enquanto levava uma das mãos à bochecha carnuda.

Ele se perguntou se Charly ou Solomon também haviam falado com Arlindo sobre procurar a paladina. Mas rapidamente percebeu que tendo discutido sobre isso ou não, o clérigo não tomaria um curso diferente do restante da comitiva, pelo menos não sozinho.

Nipples então adentrou a cabana e foi até mochila, pegando o bloco de notas que havia salvado de sua própria bagagem. Ele usou um lápis e começou a escrever no papel enquanto todos preparavam-se para partir e despediam-se de forma mais ou menos calorosa de Vaalij em frente à casa.

Solomon deu um desconfiado aperto de mão ao licantropo. Arlindo um forte abraço e um agradecimento pela enorme quantidade de cerveja fornecida pelo homem. Charly com um aperto de mão sincero, agradecendo pela estadia e pelo Livro dos Monstros, que Vaalij lhe deu, alegando que o garoto faria um melhor uso da leitura do que ele mesmo que já havia aproveitado ao máximo o livro.

Por fim, Nipples caminhou até a porta passando para o lado de fora e parando de frente para Vaalij, que se abaixou um pouco para poder olhá-lo nos olhos.

— Esta é a receita do meu chá, meu senhor, para caso precise de uma noite tranquila de sono quando as coisas estiverem turbulentas — disse entregando o papel com a receita numa caligrafia invejável. — Obrigado por tudo, senhor Vaalij.

— Obrigado à você, senhor Nipples… Eu não estaria vivo se não fosse por você.

Nipples olhou para o chão rapidamente. Ele discordava do que ouvira, não conseguia se ver como uma peça importante na vida de alguém, mesmo que de fato tivesse salvado a vida do homem ao droga-lo na noite do incidente. Apesar disso considerava discordar abertamente do anfitrião seria uma grande falta de educação, então apenas continuou calado.

Vaalij pegou uma bolsa que estava carregando desde que havia saído do celeiro com Solomon, se apoiou sobre um joelho no chão e a abriu.

— Nipples, além de você tem mais alguém que é responsável por eu ainda estar respirando. Eu sei que isso nunca compensará o que fiz com ela, mas de toda forma... — disse Vaalij retirando cuidadosamente algo grande da sacola de pano. — Estou trabalhando em minhas habilidades de armeiro há algum tempo e estava forjando isso para mim, mas acabei quebrando o dela durante aquela noite, e acredito que isso poderá fazer muito mais bem nas mãos de Dorothy do que nas minhas — falou entregando o objeto para Nipples.

Era um escudo de metal vermelho com a borda reforçada na cor prata. Possuía quatro pontas, duas em suas laterais superiores, uma central mais elevada no topo, e por fim uma na extremidade inferior. O escudo era mais largo na parte de cima e afinava em uma curva até a ponta da base. Em seu centro havia um belo desenho gravado de forma simplista, apenas o contorno dos olhos, focinho e da fronte da cabeça de um javali com coloração prateada como da borda, que reluzia com os raios de sol da manhã.

Era um escudo muito bonito até mesmo para alguém como Nipples que não se interessava por armas. Estava tão bem polido que o serviçal quase conseguia ver o próprio reflexo perfeitamente.

— Faça este escudo chegar até ela Nipples — disse Vaalij fitando os olhos caramelados do serviçal. — Entregue-o para que ela possa se defender de todas as sombras que cobrem estas terras. Entregue-o para que ele a ajude a encontrar a luz quando parecer não haver mais nenhuma. Entregue-o para que ela possa usá-lo até que o javali nele estampado se torne um símbolo de esperança por todos que ela defender, ao invés da lembrança de um homem amaldiçoado.

— Senhor Momeh… — disse Nipples erguendo o olhar com o coração batendo forte, pois finalmente sentia que estava no caminho correto para terminar aquele trabalho como o melhor serviçal que poderia ser. — Pode confiar em mim… Pois eu não falharei.


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Notas finais do capítulo

Oi pessoas!
Desculpa a demora. Eu acabei tirando um tempo para organizar a história e planejar os capítulos que virão a seguir então acabou demorando mais pra sair esse daqui mesmo.
O Mateus que escreveu e eu dei uma "polida" com a revisão e alguns ajustes que achei necessários. De qualquer forma, o que acharam?
Comentem! A opinião de você é importante ^^