Criptas antigas e tumbas lacradas escrita por Lyubi


Capítulo 1
calças molhadas




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O que você pensa quando ouve falar em vampiros? Mortos-vivos, imortais, bebedores de sangue, sexualmente promíscuos, muito fortes e muito rápidos, traiçoeiros, gananciosos. Alhos, morcegos, crucifixos e longas capas esvoaçantes são apenas os acessórios. Um monstro que mora na noite, nos contos de terror e nas nossas imaginações mais vergonhosas durante aquele momento da madrugada em que você precisar ir ao banheiro e toda a casa está mergulhada em escuridão. Uma criatura noturna letal e fatalmente perigosa. Parece aterrorizante, certo? Mas não aterrorizante como uma barata enorme subindo pela sua perna, certo?

Vampiros são monstros românticos. Eles foram feitos a nossa semelhança e isso nos trás um sentimento de atração e segurança por esses seres deliciosamente perigosos. Você nunca vai ver um filme clássico de vampiro em que ele estará acompanhado por mulheres ou homens gordos de meia idade, claro que não, vampiros estão interessados na juventude. Os filmes sempre apresentam a jovem mais bela de pele mais clara e sedosa com a carne tenra como a vitima sagrada. E vampiros estão sempre coligados ao sexo, por que sexo sempre foi um tabu (um pecado demoníaco) para a sociedade e que melhor para representar a libertação dos nossos sonhos pecaminosos do que esses altivos seres sanguinários, assassinos, sem coração?

"Podia agora sentir no seu hálito o cheiro de criptas antigas e tumbas lacradas" me lembrei de súbito à frase de um dos contos do King Stephen*. Enquanto olhava para todos aqueles seres de aparência quase humana, mas de modos tão pouco humanos, eu pensava se aquele corpo vampiro na verdade não fosse uma cripta, um túmulo cheio de corpos em decomposição. Muita filosofia para se pensar em meio a tanto barulho. Eu ia guardar as minhas notas mentais para ruminar sobre isso depois.

Por um milagre, Bill deixou Sookie por um instante e ela veio para o meu lado, estávamos na festa de retorno do vampiro de dois mil anos de Dallas.

— Se divertindo? — conversou casualmente.

— Um pouco. Desculpe ter sido de pouca ajuda dessa vez.

Ela sorriu para mim. Entendi aquilo como "meio tarde para isso, não?".

— Não se preocupe. Teria sido pior se você não tivesse chegado no final. — Ela ficou em silêncio, escolhendo palavras, acho. — Eu estava pensando Daria... Acho que eu venho dependendo muito dos outros.

— Stackhouse. Pode parar com a conversa fiada. Você não é uma coitada e nunca foi. Se você não percebeu, você vem livrando a bunda dos vampiros e vem recebendo muito pouco por isso.

— Eles estão me pagando... — reagiu em defesa dos sanguessugas.

Ela gemeu quando eu segurei seu maxilar ferido.

— Não estou falando de dinheiro Sookie. Estou dizendo que vampiros não precisam ser protegidos. Jovens loiras de peitos grandes, sim.

Ela riu sem-graça, mas totalmente lisonjeada. Essa aqui tinha um ego que eu vou te contar, só não era tão grande quanto o de seu irmão, Jason.

Bill voltou e chamou a nós duas para a sala maior, ao lado, onde estava o vampiro suicida sentado recebendo reverências e palavras de fidelidade pelos seus subordinados. Com os vampiros você sempre estava uns dois séculos atrás, no mínimo.

Godric era baixinho, fora transformado em vampiro ainda adolescente, mas fora a aparência jovem sua postura era muito reta e altiva, como um soberano de milhões de anos que ele, na verdade, era. Parecia sereno e tinha um quê de melancolia no rosto. Ele havia se oferecido a uma seita de religiosos loucos que queriam a morte de todos os de sangue frio. Para a grande maioria dos vampiros esse era um ato de vergonha e repulsa (desejar o fim da própria existência), mas sendo Godric quem era, restava aos outros apenas esquecer o acontecido e continuar a servi-lo como rei vampiresco do Texas.

Havia uma pequena fila de vampiros para cumprimentá-lo, mas ela estava diminuindo e entendi que eu e Sookie deveríamos nos apresentar quando chegasse a nossa vez.

Eric estava atrás da cadeira de Godric, ao lado direito como um guarda-costas muito assustador. Sookie me confidenciou que o suicida era o criador do vampiro loiro, Xerife da Área 5.

— Como pode tanto bom gosto caber num carinha tão baixinho? — brinquei olhando para o coelho branco e loiro de dois metros que era Eric.

Sookie riu baixinho. E depois disso eu me esqueci dela e de todos os outros seres daquela casa. Estava acontecendo e eu vi coisas e soube de coisas que não queria ter sabido. Senti que estava vivendo um sonho e já estava na nossa vez, alguém já havia nos apresentado, talvez Bill.

Godric falava algo sobre estar agradecido pela coragem de Sookie e pela minha ajuda e era como se eu estivesse hipnotizada, ouvindo tudo através de um vidro. Consegui captar claramente apenas o som da sua voz, muito limpa e calma, mas firme. Uma voz eterna e cavernosa.

— O cheiro de criptas antigas e tumbas lacradas... — quando dei por mim tinha acabado de interromper uma fala do vampiro antigo e ele me olhava como se eu tivesse problemas de cabeça. E eu tinha mesmo. Olhei em seus olhos e me senti voltar ao normal, ou quase. — Godric, eu posso lhe dar um presente?

Sentia os olhos de muitos vampiros sobre mim e, acredite, não é uma sensação agradável. Os claros olhos de Eric pareciam muito escuros, estava pronto para me matar se eu fizesse qualquer coisa suspeita.

Após um momento de consideração, o vampiro milenar acenou com a cabeça.

Com terrível dificuldade, minhas pernas se moveram para alcançar uma cadeira que eu coloquei próxima a ele e me sentei. Podia sentir a tensão na sala tão pesada que mal conseguia respirar, Sookie e os outros humanos estavam com medo. Eu estendi a minha mão para ele e ele, com um misto de educada desconfiança e fascinação, encaixou a sua na minha. Seu toque era frio e a carne rija, eu percebi por um momento que estava tocando a mão de um morto e quis gritar. Mas a coisa havia começado e não tinha como parar.

— Godric, quando essa música acabar eu preciso que você solte a minha mão. Você pode cumprir isso?

— Sim. — E a sua voz não me deixava desconfiar que ele não cumprisse.

C.C. Adcock estava nos primeiros acordes de Bleed 2 Feed.

Eu o fiz fechar os olhos e disparei. Como se tivesse uma arma na mão e apenas "click" pressionasse o gatilho, eu fiz aquilo sair da minha mente e tomar a dele.

Era a lembrança do sol ás dez da manhã num país tropical, eu estava pouco vestida, sentia a grama meio seca sob meus pés e o sol na sua caricia mais intima á minha pele, não, a pele de Godric, agora era ele que estava ali. Aproveitando o calor do sol, podia ficar assim para sempre, mas não havia tempo suficiente. Então já estávamos na água fresca banhando todo o corpo e os raios solares fazendo a superfície brilhar. A brisa tocou a parte exposta do corpo arrepiando todos os pelos deliciosamente. O meu rosto se evaporando para trazer o de Godric...

I bleed 2 fee-eeed, Love sets you free

Havia doce nos meus lábios, primeiro mel, depois bolo de chocolate, doce de milho, vinhos e queijos do Peru, carne bovina, peixe, pimentas... Água. Estava com muita cede. De água. Como se eu não bebesse daquele liquido há muito, muito tempo, mas não era eu. Era Godric.

Nós viajávamos. Não, nós não estávamos juntos, eu apenas o guiava.

Round and round on a fou-fou hunt

Eu era humana e queria que ele soubesse um pouco o que é estar vivo, pela última vez. Todas as minhas lembranças boas, se desfiando em sensações e nos transportando por um rio de sentimentos. Eu me lembrei do primeiro banho de chuva, do meu primeiro assassinato, da emoção de ter sobrevivido. Eu sentia meu sangue fluindo em meu corpo e meu coração batendo acelerado, estranhamente, agora o coração do vampiro. Eu o levei a minha infância quando caí e ralei os joelhos, a dor, a ardência, o desespero. E o colo de Adele Stackhouse quando ela me acolheu entre seus seios e me deixou chorar até ter dor de cabeça. O levei a Hadley quando ela foi cruel. E a Peter. A primeira vez que nós fizemos amor e ele cuidou das minhas cicatrizes tão bem. Eu estava tão feliz, mas não era apenas eu deitada naquela cama. Godric! Eu estava perdendo o controle. Não, eu já o tinha perdido.

Have mercy have mercy have mercy on me

Chegamos ao orgasmo e logo depois tudo já tinha virado e estávamos na Irlanda, meu pequeno de quatro anos correndo para os meus braços. Mamãe! E o rosto de Godric tomando o meu como um fantasma, ele estava abraçando minha criança, sorrindo e sentindo todo o amor que eu sentia pelo meu filho. Eu o estava fazendo feliz? Naquele momento, não percebi que ele estava, de certa forma, sugando a minha felicidade.

A little bloooo-oooo-ood

Novamente, a raiva tomando conta de mim, a ira quase explodindo de dentro do meu peito, mas dessa vez eu não choraria, eu me rebelaria como um demônio. Eu coloquei fogo em tudo e em todos. Do lado de fora do hospital Godric e eu, no mesmo corpo, sujos de fuligem e observando a grande construção se pintar de laranja e vermelho, as pessoas gritavam e a fumaça ardia meus olhos. Eu ainda segurava o galão de gasolina.

Então eu abri os olhos. A música tinha acabado e uma eletrônica já tomava seu lugar, Godric tinha soltado a minha mão, mas agora estava muito mais perto. Sentindo o arrepio de desespero subir da planta dos meus pés até a nuca percebi que em algum momento o vampiro tinha me colocado em seu colo como um bebê e beijava os meus lábios cerrados. Não queria pensar no assunto, mas não conseguia evitar imaginar que por trás daquela bela e morta boca havia criptas antigas e tumbas lacradas prontas para me tragar para dentro depois de me matar.

Godric abriu os olhos lentamente e sorria quase apaixonado até perceber que eu estava assustada. Ele afastou seu rosto e afrouxou o aperto ao meu redor para que eu pudesse me endireitar em seu colo, mas não me levantar.

O sorriso voltou e, progressivamente, ele começou a rir alto. Quando duas grossas linhas de sangue começaram a escorrer de seu rosto em meio à gargalhada, eu procurei a ajuda de Eric que permanecia atrás da poltrona de seu criador, mas muito mais estupefato do que ameaçador. Num instante ele me estendeu uma caixinha de lenços umedecidos — o que eu achei muito perspicaz por que lenços secos não conseguiriam limpar os vestígios do sangue — e passei a enxugar o rosto de Godric desajeitada e envergonhadamente. Ele se acalmou e olhou para mim ainda sorrindo, algo meio sinistro com a face direita riscada pela lágrima de sangue.

— Foi algo maravilhoso.

— Um pouco intimo demais, eu perdi o controle, desculpe — mas eu era a única a não conseguir encará-lo nos olhos, então as desculpas eram para mim mesma.

— Isso é estar vivo... Ser humano, eu não me lembro de como era há dois mil anos, mas isso foi incrível.

— Fico feliz que tenha gostado — por que eu não tinha gostado nem um pouco, com certeza.

Enquanto terminava o trabalho em seu rosto ele ficou em silêncio ainda me olhando.

— Eu entendi o que quis dizer — sua voz tinha deixado o pouco calor que vinha tendo até agora e voltou a ter o tom eterno, cavernoso. — Você considera estar viva uma dádiva. Não gostaria de estar no meu lugar, mas mesmo se estivesse, como um vampiro, não conseguiria desistir de existir.

— Eu não recrimino você, Godric. Eu sei que a existência pode ser muito pesada as vezes. Bom, você viu.

— Eu vi. E mesmo não sabendo exatamente o que vi, eu fico muito feliz pela experiência. Você quis me dizer que mesmo os humanos são tão demoníacos como nós.

— Vocês todos, na verdade, não foram humanos muito gananciosos e, por não quererem morrer, se agarraram a qualquer forma de vida?

— Sim. E eu me arrependo por isso. Quero uma forma de vida eterna com mais luz, entende?

— Entendo.

E entendia? Talvez, mas no momento só queria sair do colo daquele pequeno vampiro milenar que tinha as calças molhadas.


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Notas finais do capítulo

*Referência ao conto O piloto da noite, do livro Pesadelos e Paisagens Noturnas 1

Tenho delirado com essa cena do Godric (e com o próprio Godric) desde que vi a série — há um ano e meio atrás — e agora relendo o livro... Foi demais para mim, sentei e escrevi. Espero ter agradado (mas é difícil; nem eu sei de onde a Darinha surgiu). Obrigada a todos. Várias mordidas. Bay bay~



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