Christmas Eve escrita por little wolf boy


Capítulo 1
Capítulo único




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Era uma noite fria de dezembro quando John mancava pelas ruas de Londres. Pequenos flocos de neve caíam do céu, derretendo quando tocavam os corpos quentes daqueles que passavam. Algumas crianças escapavam do aperto dos pais, correndo com as línguas para fora enquanto tentavam pegar um deles na boca. Era possível ouvir canções de natal a distância e decorações enfeitavam cada prédio pelo qual ele passava.

O clima era de alegria, mas os olhos de John estavam ocos, vazios. Assombrados. Ele tentava sorrir para as pessoas que pegavam seu olhar e acenavam um “Feliz Natal”, animadas com o feriado, mas as luzes que decoravam o lugar só conseguiam lhe lembrar de bombas explodindo, e mesmo as inocentes canções cheias de esperança se transformavam em gritos de desespero e dor em seus ouvidos amaldiçoados.

Fazia duas semanas que ele havia voltado do Afeganistão, e os dias se passavam lentos, tediosos. Tinha de ver sua terapeuta duas vezes por semana, horas em que passava em silêncio, se interrompendo só para dizer “Estou bem” e variantes. Ela lhe pedira para fazer um blog, escrever as coisas que fazia durante o dia. John havia dito, pacientemente, que nada acontecia em sua vida. Quando ela insistia, ele tinha vontade de falar para ela que o máximo de ação que ele vivia pertencia ao mundo dos sonhos, quando ele tinha de matar e ver seus amigos serem mortos, as bombas explodindo como uma mórbida canção ao fundo. Apesar disso, ele se mantinha em silêncio. Sempre em silêncio.

Hoje ele encontraria Harry, o que era algo diferente do comum, ele supunha. Só não sabia ao certo se podia considerar aquilo algo bom. O endereço que ela lhe dera era de um bar numa parte pouco privilegiada de Londres, chamado Masque Haunt. Enquanto caminhava, John podia ver as crianças brincalhonas e casais sorridentes serem lentamente substituídos por ruas vazias e olhos nas sombras. John franziu o cenho. Eles podiam vir lhe roubar, se quisessem. Não é como se ele tivesse alguma coisa mesmo.

Apesar disso, chegou ao dito bar em relativa segurança. Era um lugar velho de letreiro sujo, mas ao menos estava quente lá dentro, cheio de velhos rabugentos e homens barbudos bebendo cerveja enquanto praguejavam e discutiam com a velha televisão que havia ali, passando um jogo de beisebol qualquer. Ele procurou entre as faces desconhecidas, conseguindo com facilidade encontrar a figura fina de Harry entre os homens, sentada na bancada do bar enquanto brincava com uma garrafa em sua mão. Suspirando, John se aproximou.

Harry parecia, se isso fosse possível, pior que ele. Ela era uma garota bonita pelo que John se lembrava de sua adolescência, com uma face delicada e olhos castanhos brilhantes. Agora, no entanto, a sua cara estava manchada de delineador borrado e os cabelos loiros, antes tão bonitos, estavam sem brilho e quebradiços, presos num rabo de cavalo frouxo, como se ela tivesse deixado de se importar com eles um longo tempo atrás. Os seus olhos e nariz estavam vermelhos, e John não sabia dizer se era pelo álcool ou porque ela andara chorando.

— Hey — chamou, colocando uma mão cautelosa em seu ombro. Harry levantou o rosto e o encarou com uma expressão vazia por alguns segundos. — Sou eu. John. — Ela não parecia estar bêbada o suficiente para se esquecer dele, pelo menos. Lhe dando um sorriso fraco que não alcançou seus olhos, ela acenou para a cadeira vazia ao seu lado.

— Johnny, que bom ver você. Como foi a guerra? — A voz dela era leve, um tanto alterada, e ela interrompeu a sentença para tomar um longo gole da garrafa que tinha em sua frente. John a encarou por alguns minutos, cansado e sem disposição para rebater seu comentário. — Aw, não me olhe assim. Você sabe que eu estou brincando.

— Como você está, Harry? — perguntou ao invés disso, deixando um pouco de sua preocupação aparecer. Não precisava de nenhuma resposta, apesar disso: A aparência dela lhe contava o suficiente.

— Ah, eu estou ótima. A Clara me abandonou, sabia? Disse algo sobre não querer ficar com a fracassada bêbada que eu era — respondeu, a voz amarga enquanto lhe encarava com acusação. — Muito obrigada por estar aqui para me ajudar nessa época.

— Harry… — falou, quase pedinte, não querendo entrar naquela discussão de novo e sabendo, pelo modo como a raiva se acumulava nos olhos de sua irmã, que não tinha escapatória.

A escolha militar de John sempre foi um ponto sensível entre os dois. O ambiente familiar de suas juventudes foi complicado, principalmente por causa do pai dos dois. Assim que John tinha idade suficiente, ele foi embora, o coração pesado. Sabia que não podia suportar outro jantar tenso com palavras não ditas, outra noite ouvindo os gritos de sua mãe, ou tendo de observar as brigas entre Harry e seu pai, vendo ambos desaparecer sobre o efeito da bebida. Ele simplesmente não podia.

Ainda assim, devia estar lá por ela, para ajudar sua irmã, sua única irmã. Mesmo sendo só um garoto, devia ter se erguido para parar o seu pai mais vezes. Ainda assim… Balançou a cabeça, tentando espantar essa linha de pensamento.

— Não, John, você não estava lá quando eu precisei, você não me ajudou como você devia e agora ela foi embora e eu estou sozinha! — gritou Harry em rápida sucessão, largando sua garrafa para apontar um dedo para ele. Seus olhos eram acusadores, raivosos, o rosto se tornando vermelho enquanto ela respirava ofegante. Alguns segundos se passaram em silêncio. Então:

— Eu estou aqui, Harry — murmurou John, quase inaudível, desviando os olhos para encarar suas mãos cheias de calos. — Você não está sozinha. — Apesar do volume de sua voz, ela conseguiu ouvir, lhe encarando ferida por alguns segundos antes que lágrimas surgissem em seus olhos. Ela continuou a balbuciar coisas como “É tudo sua culpa” e “Eu te odeio, John” mesmo quando ele a abraçou, alisando seu cabeço bagunçado.

O resto do tempo se passou do mesmo modo: Haveria alguns silêncios desconfortáveis antes que Harry explodisse e brigasse com ele, o culpando de coisas que John sabia que, de certa forma, eram sim sua culpa. Então ela choraria, e John iria abraçá-la e, mesmo que por dentro houvesse uma dor pelas coisas que ela havia dito, ele não falava nada, pois sabia que merecia aquilo. Não expressava a sua raiva e tristeza pela vida que tinha depois da guerra, nem comentava sobre as garrafas atrás de garrafas de cerveja que Harry pedia. O silêncio, afinal, era o seu mais frequente companheiro.

Ao ir embora, Harry lhe estendeu um celular, desviando o olhos desconfortável e brincando com a ponta de sua camisa. Ele era prateado e parecia ser um daqueles modelos novos, embora estivesse bastante riscado.

— Mantenha contato, tudo bem? — ela disse, não encontrando seus olhos. John sorriu, um mero contorcer de lábios imitando uma emoção que ele não sabia mais como sentir. Agradeceu e prometeu ligar para ela, muito embora soubesse que não o faria. Era covarde de sua parte, fugir de Harry, sua irmã quebrada que não queria ser consertada, mas ele não sabia o que fazer e, afinal, era só mais um motivo numa lista imensa das coisas pelas quais ele se sentia culpado: Não é como se fosse pesar muito.

A caminhada de volta para casa (se é que podia chamar aquele lugar de casa) foi fria e silenciosa. Seu pequeno apartamento ficava numa parte pouco valorizada de Londres, não muito violenta, embora você ainda precisasse ficar atento ao sair de noite. Ninguém decidiu incomodar John naquele dia, no entanto, e ele chegou em seu prédio pichado sem maiores incidentes.

Seu apartamento era vazio, com somente os móveis que ele precisava e as paredes nuas e brancas. Apesar disso, ele parecia escuro, como se as sombras que atormentavam John estivessem avançando para o mundo físico também. Ele sentou na sua cadeira em frente ao computador, abrindo o seu blog. Encarou a tela vazia intitulada “Novo post” por alguns segundos, tentando achar algo, qualquer coisa em sua vida patética que valeria a pena contar. Não conseguia vir com nada.

O relógio batia meia noite, e John conseguia ouvir fogos de artifício à distância. Pensou nos natais de quando era criança. O silêncio na mesa pouco farta, como a tensão se prendia no ar até que seu pai perdesse a paciência e começasse a discutir com sua mãe. Como Harry o chamaria para sair de fininho da mesa, os dois indo até a varanda, e as histórias de natal que ela contava enquanto dividia uma barra de chocolate roubada da loja de conveniências do centro da cidade, a sua voz fazendo pouco para se sobressair diante dos gritos de sua mãe ao fundo. Como John se esforçaria para sorrir mesmo que lágrimas caíssem dos cantos de seus olhos, e do abraço forte que Harry lhe daria em seguida, se sentindo seguro no calor de seus braços.

Agora era frio, e o mundo estava silencioso. John abriu a gaveta em sua mesa de cabeceira, onde uma arma reluzia, quase convidativa. Ele a encarou por um longo tempo, o desejo de que tudo acabasse queimando dentro de si. Finalmente o descanso, a indiferença para todos os problemas e tristezas, a fuga de uma vida lamentável atormentada por pesadelos de uma época que não lhe pertencia mais. Ele queria, queria muito.

Ninguém se importaria, afinal. Não sua irmã bêbada, perdida em sua própria tristeza. Não seus pais mortos, ossos secos em um cemitério qualquer. Ninguém nunca iria se importar porque, afinal, o que havia em John? Ele era somente um soldadinho quebrado, tão patético que estava contemplando morrer por suas próprias mãos. Um covarde. Desejou naquela hora ter perecido pelo tiro que lhe enviou para casa. Que o atirador tivesse acertado um pouco abaixo, bem em seu coração. Que ele tivesse morrido, engasgando em seu próprio sangue, em vez de sentir a dor excruciante que lhe tirou a sua profissão, os seus amigos, a adrenalina, sua vida ali que, por mais falha que parecia, era de certa forma feliz.

Desejava, desejava, desejava, mas nada fazia, fechando os olhos no fim ao suspirar. Algumas lágrimas deslizaram pelo seu rosto ao deitar em sua cama dura, encarando o teto branco e pensando sobre a sua vida um pouco mais. Pensar era tóxico, no entanto, porque suas meditações sempre voltavam para a dita arma guardada na gaveta ao seu lado.


Amanhã, talvez.


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