Fogo e Gasolina escrita por Didilicia
Notas iniciais do capítulo
Penúltimo capítulo.
A porta se fechou, e Herculano baixou as mãos até a pia, agarrando a beirada de porcelana e inclinando a cabeça para baixo. Ela estava lhe arrancando as entranhas. Era uma cobra peçonhenta, mas ele ainda sentia aquele desejo corrosivo de amá-la e protege-la. E ela precisava de sua proteção tanto quanto uma tigresa de garras afiadas precisaria.
O evento na ópera só acelerava o que mais cedo ou mais tarde aconteceria: seriam pegos. Ele tinha certeza. Mas a cobiça da Duquesa não a deixava ver que isso era só uma questão de tempo.
Úrsula deitou-se na cama e tentou dormir, mas não conseguia forçar os olhos a se fecharem. A única luz no quarto escurecido vinha da janela onde uma lua parcialmente encoberta formava um quadrado cinza-escuro, que dava forma escura aos móveis do quarto. Era tarde, quase meia noite, e ela precisava do sono, mas ele não vinha. Inquieta, virou-se, socando o travesseiro e tentando encontrar uma posição mais confortável.
Estava frustrada por terem sido vistos. Sua cabeça revirava em ideias que pudessem ajuda-la a escapar outra vez.
Depois de mais alguns minutos, desistiu. Não adiantava. Não ia dormir. A duquesa afastou as cobertas e jogou os pés para o chão. Estendendo a mão para o robe, vestiu-o e amarrou um laço. Então percebeu que Herculano não estava ao seu lado na cama. Viu as luzes do banheiro acessa e hesitou, atraída magneticamente na sua direção. Resistiu à atração, e deslizou silenciosamente até a janela.
“Maldito Augusto!” – pensou.
No meio do silencio, a voz baixa de Herculano quis saber:
– O que está fazendo?
Assustada, Úrsula deu meia volta, virando-se para ele. Ante a franqueza desconcertante do olhar dele, a duquesa levantou a mão para afastar do rosto os cabelos avermelhados que cobriram seus olhos, bagunçados pelo vento de fora.
– Não estava conseguindo dormir. Pensei que, se tomasse um pouco de ar puro, poderia me relaxar. Você também parece que está tendo dificuldades para dormir.
– Eu e tu fomos descobertos. – disse - Não dá mais pra ficar aqui. Vão vir atrás da gente.
– Isso não é verdade... Sim, fomos descobertos, mas Augusto não vai sair nos caçando por toda Paris. – ela insistiu.
– Ele não vai deixar a duquesa livre de seus crimes.
– Não esqueça que você é meu cúmplice agora... - ela observou, deixando claro que ele estava com ela nisso.
– Mais tu é uma bruxa ardilosa mermu... mais um motivo pra gente sair dessa cidade.
– Talvez possamos ir para a Itália...Veneza – ela sugeriu depois de refletir.
– Vamu voltar pro Brasil, pro Sertão, lá onde sou Rei e a única prisão que tu teria que se preocupar é a dos meus braços em volta de ti.
– Herculano... – Úrsula aproximou-se dele, segurando-lhe o rosto com ambas as mãos – Nada me faria voltar para o Brasil.
Ele afastou as mãos dela, um pouco bruscamente. Sua testa franziu, e seu olhar escureceu de tristeza.
“Nada?” – pensou.
Ela fez silêncio, embora não desviasse o olhar dele. Herculano deixou escapar um suspiro, mexeu a cabeça de um lado a outro como se estivesse tentando negar a si mesmo algum pensamento que insistia em atormentar. Virou-se e deixou o quarto antes que ela pudesse dizer qualquer coisa para impedir.
...
– Eu quero toda a Guarda da Corte atrás de Úrsula!! – O Rei Augusto andou de um lado a outro na ante sala do imenso quarto onde estava hospedado.
– Se acalma, Augusto – Maria Cesária aproximou-se dele, colocando as mãos em seus ombros.
– Eles não podem escapar desta vez.
Neste momento, um guarda da Corte entrou no salão pedindo licença. Suas feições denunciavam pressa para comunicar uma notícia ao Rei.
– Com sua licença, majestade. Trago notícias da prisioneira que fugiu.
– Diga logo.
O rapaz entregou para o Rei uma lista de lugares e valores a serem pagos, tudo em nome de Duque Petrus. Em seguida, diante do olhar confuso de Augusto, ele explicou:
– Todas essas contas estão sendo emitidas em nome do Duque Petrus.
– Mas Petrus está no Brasil! – diante do silencio obvio do guarda, Rei Augusto finalmente começou a entender o que estava acontecendo. – Aquela cobra traiçoeira!! Está gastando às custas do ex marido... vivendo como Duquesa em Paris junto do amante... aquele cangaceiro.
– Augusto, o Capitão Herculano é um bom homem. Com certeza está sendo enganado por ela. – Maria Cesária tentou intervir pelo capitão, mas esse gesto de generosidade não caiu muito bem aos ouvidos do Rei.
– Com todo respeito Maria Cesária, não se meta nisso! Herculano não é inocente!
Ela abaixou a cabeça e afastou-se. Augusto não desistiria até prender os dois. Ele virou-se para o guarda:
– Descubra onde eles estão e capturem os dois!
– Sim, majestade.
O cerco estava se fechando.
...
Tempos intermináveis se passaram até que a maçaneta girou e a porta do quarto onde estava a Duquesa se abriu, trazendo Herculano de volta.
Ele viu Úrsula dormindo. Metade do lençol cobria seu corpo, mas ele podia ver que ela não vestia nada. Ele retirou toda a roupa e deitou na cama ao lado dela, juntando seu corpo, querendo acordá-la. As mãos dele se estreitaram, quase imperceptivelmente, na cintura dela, para atraí-la mais para perto.
Úrsula estremeceu de desejo.
Ela abriu os olhos sem dizer nada e levou as mãos espalmadas até os ombros dele. A boca dele se abriu sobre a dela, tomando-lhe os lábios num beijo faminto e exigente. Ela deu-se de bom grado ao capitão que já a possuía, de coração e alma.
As mãos nas suas costas e quadris moldaram-na aos contornos rijos do corpo dele. O batimento irregular do coração dele era um som glorioso, igual ao dela. A boca dele se moveu para explorar a curva do pescoço dela.
– Menti para você, Herculano – sussurrou Úrsula, cheia de um amor doído.
Houve uma imobilidade momentânea antes que ele erguesse a cabeça e permitisse um pouco de espaço entre eles. Ela enfrentou o olhar penetrante dele e seu toque de desconfiança. Seus dedos traçaram o contorno macio do rosto barbeado numa carícia meiga.
– Quando? – perguntou ele com veemência.
– Quando lhe disse que nada me faria voltar para o Brasil – respondeu com voz macia e latejante. – Não era verdade. Você me faz ficar viva , quando me toma nos braços e faz amor comigo. Eu não suportaria viver longe do seu amor, do seu carinho...
A expressão dele exigia que ela continuasse.
– Herculano, quero ser mais do que apenas sua amante. Quero que sinta algo mais que simples luxúria por mim... – a voz dela ficou tensa com a profundidade de sua ânsia. – Quero que goste de mim. Deixe-me ser sua amiga, sua confidente, quem sabe sua mulher. Quero que saiba que te amo e que você, apesar de todos, você PODE confiar em mim!
A boca dele se estreitou, num ar de sombrio desgosto. Ao ver a expressão dele, Úrsula sentiu-se como se tivesse sido esfaqueada no coração. Magoada, ela saiu dos braços dele, sentou na cama cobrindo-se com o lençol. Imaginava que, se explicasse que gostava dele de verdade, ele admitiria a mesma coisa e confiaria nela, faria tudo que ela desejasse então.
– As vezes tu é muito convincente – murmurou ele, com ceticismo suficiente para provar que não acreditava nela – Mas não consigo imaginar tu satisfeita por muito tempo, enfiada no cangaço comigo.
Ela virou para ele, suas mãos pousaram de cada lado do pescoço dele.
– Acredita em mim, Herculano.
Antes que ela pudesse continuar, ele já a tomava nos braços, e sua boca apagava a resistência simbólica que ele impôs a principio. Seu abraço era quase cruel, exigindo gratificação. E ela não poderia negar a ele essa satisfação, do mesmo modo que não desejava negá-la a si própria.
Nas negras sombras aveludadas da cama, o fogo que seus beijos haviam ateado explodiu em labaredas, e consumiu a ambos em êxtase.
Apertando mais os braços dele em volta do seu corpo, Úrsula curtiu a satisfação do “depois”. Sentia-se quase completamente contente. Ergueu os olhos pra ele e sorriu, sabendo que Herculano podia ver sua expressão e que ela não podia ver a dele, embora isso não fosse necessário.
– Temos uma coisa especial, Herculano – murmurou ela. – Isso você não pode negar.
A resposta dele foi retirar o braço de sob os ombros dela. Rolou ate a beira da cama e se sentou. Na escuridão do quarto, só o que Ursula podia distinguir era a forma escura do corpo dele, de ombros largos. As molas da cama gemeram quando ele se levantou, tirando seu peso de cima delas. Ela franziu a testa ao notar que os sons dos seus movimentos indicavam que ele estava se vestindo.
– Não vai ficar aqui comigo? – a pergunta já escapara antes de ela se dar conta de como soava desgovernada.
– Não. – foi a negativa seca.
– Por que?! – ela quase engasgou tentando conter o choro.
Por um minuto, Herculano não respondeu, enquanto ele se dirigia para pegar suas coisas e caminhava até a porta.
– Pode ficar com a cama, Ursula... – respirou, e depois continuou, sabendo que era aquilo que precisava ser feito – ...com seus luxos e suas mentiras. Eu tô voltando pro Brasil. Pro Sertão e pro cangaço. Se tu quiser ficar mais eu, tu sabe onde me achar.
Mentiras?! O coração dela gritou de angustia, porem nenhum som saiu de sua garganta. A porta se abriu e se fechou. Como ele podia acreditar que todas as coisas que ela lhe dissera eram mentiras? Ela deixara nua suas emoções, despira-se de todos os fingimentos, suplicara-lhe que confiasse, que a amasse. Humilhara-se, e ele pisou no seu coração, deixando-a sozinha no quarto.
Seus dedos enroscaram no travesseiro em que a cabeça dele repousara. Puxou-o para si e enterrou nele o rosto, para que seus soluços lancinantes ficassem abafados pelas penas grossas. A duquesa preferira que ele a tivesse agredido e o tempo se encarregaria de amenizar a dor, mas a agonia da rejeição demoraria demais a sarar, se é que sararia. Chorou até o travesseiro ficar ensopado de lágrimas, e que não houvesse mais nenhuma. Homem algum jamais a tinha feito chorar. Era sempre ela quem os deixava lamentando.
Ela não achou a paz até que a pura exaustão cobrisse com uma nuvem negra sua consciência.
...
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