Airheart escrita por Vaalas


Capítulo 8
Capítulo 08 — Burn it Down


Notas iniciais do capítulo

EU VOLTEI.
Depois de quase um ano em hiatus (a história completou um ano dia 31 e foi nesse mesmo dia que eu terminei de escrever esse capítulo), Airheart está de volta, desta vez com seu capítulo final.
Sim, eu demorei um ano para escrever esse último capítulo e peço muitas desculpas pela demora horrível. Sequer respondi os reviews do capítulo anterior ainda, mas prometo que estarei fazendo isso já já.
Até as notas finais e espero que tenham uma ótimo leitura ♥



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Era plena quinta-feira e a loja do mecânico estava fechada. As cortinas seladas, impossibilitando que qualquer um pudesse ver seu interior, e as luzes apagadas lá dentro. Jeremy se amaldiçoou, praguejando mentalmente ao pôr os olhos na placa de “fechado” virada contra a porta.

Sua consciência pesou ao lembrar da promessa que fizera, a de que não iria procurá-lo após o ― último! ― beijo.

Sempre mantivera suas promessas, mas não havia gostado do sabor daquela.

Oliver vai se casar, repetia, tentando se convencer, e ela é linda.

Sacudiu a cabeça, espantando pensamentos. Olhou novamente para a loja de Oliver, a construção de dois andares na cor amarela e laranja, com vitrines de vidro. As peças douradas e prateadas em exposição brilhavam pela luz do sol morno, donas de uma beleza que só uma obra de Murphy parecia possuir. Com um suspiro, deu as costas, pondo a cartola na cabeça.

Sua única mão foi ao bolso e a outra manga da camisa balançou, vazia, enquanto Benedict refez seu caminho para casa. Oliver não estava disponível naquele momento.

...

As cicatrizes eram rosadas, meio pálidas, e corriam espalhadas até certo ponto do seu ombro, como uma teia de aranha. Jeremy tocou-as com os dedos levemente, passeando pelas linhas finas e pelas brutas. Na verdade, parecia que sua pele era vidro trincado, as linhas rosadas nada sendo senão as raízes, espalhando-se como um vírus pela superfície.

Era uma manhã cinzenta de terça, semelhante a seu humor. Fazia três semanas que estavam sem seu braço ― às vezes tinha a sensação gelada de que nada fora além de um sonho distante, que nunca possuíra braço algum, nunca voltara à guerra, e nunca conhecera Oliver ― e gostaria poder dizer que já se acostumara, mas estava farto de mentiras. A falta de seu braço era como a falta de Oliver. Física.

O ex-aviador levantou-se da cama, mas o ato lhe soara tão mecânico que se frustrou com a piada cruel. Vestiu um colete azul marinho e mais uma de suas camisas sociais, lutando contra os botões com a única mão. Não se deu ao trabalho de arrumar os cabelos com gel, uma vez que não tinha humor para se importar com a bagunça que eram os fios dourados rebeldes, dançando em sua cabeça como trigo em dia de colheita. Mal havia notado como haviam crescido, já fora do corte militar padrão.

As ruas de Londres lhe deram um sorriso nublado como o céu. Do outro lado da rua, o velho sr. Williams, veterano de guerra como ele, o cumprimentou com um polido aceno de cabeça. O loiro retribui, e se pôs a andar pelo caminho que bem conhecia. Parecia um bom dia para visitar uma loja.

Não parecia provável que Mechanic Murphy estivesse mais uma vez fechada, como estava havia semanas, bastante tempo atrás. No entanto, para contrariar toda a obviedade, era exatamente isso que informava a placa na porta de vidro, com o dizer “fechado” lhe entregando um recado maldoso.

― Ollie não abre a loja faz semanas ― comentou uma voz atrás de si, e Jeremy virou-se na mesma hora para seu dono ― Me pergunto onde está com a cabeça. Dias pós-guerra são os melhores para o tipo dele de clientela.

Era sra. Molland, uma simpática mulher que vivia na rua à frente. Era do tipo engraçado de senhora, com uma face rechonchuda e maçãs do rosto altas. Parecia uma avó em todos os ângulos, com os cabelos cinzentos bem presos em seu penteado delicado. Os olhos dela se prenderam na manga vazia do seu braço direito, onde o membro lhe faltava, mas era um olhar sutil e atencioso, sem malícia ou pena alguma. Jeremy gostava dela, sempre a cumprimentava nas suas antigas visitas.

― Você tem o visto ultimamente? ― perguntou, tentando atrair a atenção para seu rosto. ― Ou Claire, sua noiva?

A senhora deu de ombros, abrindo seu guarda-chuva com certo desinteresse.

― Para ser sincera, não. A jovenzinha era muito adorável, mas não tem vindo tem um tempo. Talvez eles tenham viajado ou algo do tipo, qualquer coisa que não é de meu interesse. Agora se me der licença, preciso comprar os charutos do sr. Molland antes que o velho tenha um infarto ― acenou, dando de costas e retomando o passo.

Jeremy observou-a se afastar e então tornou a virar-se para a loja, erguendo o rosto contra o sol pálido para ver a janela estreita do andar de cima. Era ela que dava para o quarto do mecânico, mas estava fechada havia muito, sem nenhuma luz ligada no interior.

Fitou então a porta de vidro da entrada, ligeiramente irritado com a ausência do outro, e bateu contra ela com os punhos cerrados. Se pôs a escutar, qualquer sinal que fosse, mas apenas havia um silêncio chato ricocheteando pelo estabelecimento todo.

Esperou um pouco mais e chegou a ouvir alguma coisa, tão baixa que bem poderia ser o vento. Talvez fosse o vento, de fato, o que só o deixara mais irritado ainda. Tinha a certeza de que Oliver estava ali dentro, ignorando-o, tentando fazê-lo notar o quão patético soava ao chegar ali novamente, quebrando sua promessa ou o que quer que ele tenha jurado.

Se fossem tempos diferentes e Jeremy ainda possuísse seu outro braço, sem dúvidas teria consigo um bloco de papel. Poderia escrever uma mensagem e passá-la por baixo da porta, poupando Oliver de ter que encará-lo mais uma vez. Mas não tinha nada para deixar ali se não sua voz e o eco das batidas de seu punho contra o vidro.

Ele devia mesmo deixar isso para lá e seguir em frente, devia, precisava. Era o que o mecânico estava tentando fazer, afinal.

― Oliver! ― se aproximou da porta, apenas após conferir que a rua estava deserta. Permitiu-se fechar os olhos ― Não tenho certeza se pode me ouvir, mas algo em mim acredita que sim. Eu realmente quero acreditar que sim. Queria me desculpar por... bem, por tudo isso que tem acontecido nos últimos tempos, talvez nos últimos anos... a culpa disso tudo é minha e eu apenas joguei o peso em você. Fui eu que comecei aquilo e fui eu quem partiu logo depois, não te dando o tempo necessário para pensar nisso tudo... ― Do outro lado da porta havia um corte de três tipos de silêncio. Jeremy podia quase diferenciá-los e senti-los na boca. ― A verdade é que eu amo você, mesmo. Já disse antes e direi essa última vez. Eu amo você, e não é justo que eu o pressione quando você tenta seguir em frente. É o que farei também, vou seguir, dar meu jeito. É por isso que eu espero que esteja ouvindo tudo o que estou dizendo, porque, vamos ser sinceros, nosso adeus foi péssimo, e não gostaria de lembrar que não falei tudo o que deveria falar, e muito menos que ficamos com tanta melancolia à nossa volta. ― Bateu novamente contra o vidro da porta, respirando fundo ― Você não é melancólico, Oliver, é alegre e animado com cafeína no sangue. Espero que lembre disso. E eu espero também, de verdade, que seja muito, mas muito feliz. Lembre-se, por favor.

Quase disse “adeus”. A palavra subiu pela garganta, e então voltou para dentro sem nunca tocar sua língua. Pegou-se imaginando de repente: a porta se abria e Oliver se lançava contra ele em um abraço apertado, mudo e forte. Ele sussurrava em seu ouvido que o perdoava e que tudo voltaria a ser como antes, mas era só um vestígio de ilusão. As palavras que disse contra a porta pareceram sem sentido, como se tiradas de um livro de romance diferente daquele, mas ignorou, fechando o rosto.

Não podia dizer adeus.

― Até mais.

 Ele agora seria o homem que seguiria em frente, por isso levou a mão ao bolso e voltou a andar, deixando a loja para trás e pensando em parar no comércio da esquina para comprar bolo de mirtilo e pão de cevada.

...

O tempo não se passou rápido, mas passou, pouco a pouco. Fazia dois meses desde a última vez que vira Oliver, e Jeremy podia dizer que estava indo muito bem, obrigado. Havia comprado novos livros, uma estante grande e revistas de viagem com títulos europeus, asiáticos e até mesmo americanos. Sempre teve curiosidade nos países orientais, mais ainda na América, para lá do oceano. A vontade de viajar e conhecer novos lugares só crescia quando o tédio batia-lhe a porta.

― Mais chá, senhor?

A garçonete estendeu o bule e Benedict assentiu, erguendo a xícara branca de porcelana. Estava um clima muito agradável naquele dia, e tomar chá verde com pão preto, biscoitos e geleia de amora era o que ele gostava de chamar de tranquilidade boa. A outra tranquilidade ― aquela geralmente encontrada no quarto, no fim da noite, quando a luz fraca da lamparina incomodava a leitura de seus livros e as lembranças incomodavam seu consciente ― era menos prazerosa, até um pouco perturbante.

Se perguntava como não enlouquecera com tanta paz.

― Hoje fará sol ― comentou ela, distraída. Ele voltou a beber seu chá ― Dias assim são muito bonitos. É bom poder vê-los.

O loiro levantou o olhar, desinteressado, na direção da moça. Ela não era muito bonita, mas tinha certo charme nos cabelos escuros curtos e no sinal do queixo. Foram os olhos, no entanto, que atingiram sua atenção: a esclera amarela e a íris escura do lado esquerdo, contrastando do tom azul claro do direito.

Era possível e naturalmente provável que, se chegasse um pouco mais perto de seu olho, escutaria o tic tac comum das máquinas.

― É mecânico, certo? ― ela lhe fitou, erguendo as sobrancelhas ― Seu olho, digo.

A moça hesitou por um breve segundo, com uma sombra de perturbação surgindo acima das pálpebras.

― Sim. ― sua expressão mudou, encarando-o com desconfiança. Sua íris seguiu o movimento, as pálpebras piscando. Era fascinante sua naturalidade, o modo como o olho seguia seus comandos. ― Algum problema?

― Não, não quis ofendê-la. Apenas acho incrível.

Tão ou mais incrível quanto um braço mecânico.

O semblante dela suavizou, mesmo que pouco. O gosto do chá pareceu diferente ao descer.

― Não é o que costumo ouvir por aí. As pessoas ainda têm dificuldade em enxergar isso como algo natural ― deu de ombros ― Sabe, é contra a natureza, Deus, ou algo assim, mas eu não me importo. Poder enxergar novamente muda tudo em uma pessoa, é algo... bem, mágico.

Jeremy comeu o último biscoito do prato e bebeu o que restou do chá. No fundo da xícara de porcelana as poucas ervas escuras lhe deram um sorriso calmo.

― Não sei se diria que é mágico, mas é algo delicado, complexo e muito, mas muito belo. ― seu ombro direito latejou como nunca, e a dor física e psicológica alcançaram seu rosto ― Entendo disso, acredite.

A moça do olho mecânico, no entanto, não entendeu muito bem.

...

Achou que seria um dia bom para comprar um novo livro, então voltou para casa com um exemplar qualquer sob o braço, azul de capa dura. Realmente, aquele seria um dia ensolarado, bonito e agradável: o suor saudável em sua testa provava isso. Achou que seria bem afortunado levar um jornal ao porteiro de seu prédio, o homem que sempre parecia estar de mau humor, com rugas grosseiras entre as sobrancelhas grisalhas.

Mas apesar de tais preocupações mundanas, tinha olhos mecânicos em seus pensamentos. A ideia de um olho falso que conseguisse captar imagens tão bem quanto um verdadeiro lhe assustava um pouco ― se Oliver era capaz de construir coisas do tipo, o que não conseguiria fazer? ― e o deixava aflito ao notar que seu braço não era lá a coisa mais extraordinária, mesmo que fosse incrível. Olhos lhe soavam bem mais complicados e complexos do que braços. E mesmo que Oliver lhe garantisse que preferia construir braços à pernas, o que será que achava de olhos?

― Bom dia, Tony. ― cumprimentou o porteiro, aproximando-se do balcão.

― Senhor ― o homem meneou a cabeça em saudação, aprumado contra a madeira.

Jeremy estendeu-lhe o jornal e acenou, tentando sorrir. Anthony era um tanto arisco e pouco simpático, mas ainda assim agradeceu, apertando as folhas com os dedos grossos e as unhas amareladas.

― Ah, um amigo seu passou por aqui. Pediu para lhe entregar um bilhete e, pera, um instante ― abaixou-se, pegando um envelope de uma gaveta. ― Aqui.

O envelope era branco, e Jeremy precisou pôr seu livro sobre o balcão para apanhá-lo. Não tinha selo nem lacre de cera, sem remetente, nem destinatário.

― Como era esse meu amigo que trouxe isto?

Tony deu de ombros, abrindo o jornal com pleno desinteresse.

― Não faço a mínima ideia ― passa folha― era um cara ― passa folha ― disso eu sei.

Descontentou-se levemente com os poucos detalhes, lutando contra o envelope para abri-lo. A frieza de Anthony trazia com saudade a lembrança dos dias de sol.

Dentro dele havia uma folha também branca, dobrada ao meio, com manchas de tinta e caligrafia bonita e meio rude, feita por dedos de artista que já conhecera o trabalho árduo. Estava amassada nas bordas, com marcas de suor e ansiedade. Bastara isso, e sua respiração foi presa nos pulmões.

Este cupom vale um braço + um abraço grátis.

Vencimento: Hoje.

Com isso, podia considerar-se um homem morto.

...

Estava começando a escurecer quando avistou as luzes de Mechanic Murphy ligadas, as cortinas abertas e bem dobradas ante a porta de vidro, com o belo “fechado” ainda a enfeitando. A rua estava um tanto movimentada naquele horário de pico e a mão de Jeremy suava sobre o papel de carta. Por um momento, pensou ser um engano.

Um cupom e um braço, pensou, impossível ser engano.

Ficou parado por alguns segundos em frente a porta, encarando a maçaneta, mas não vendo nada de fato. Estava em um estágio vegetativo mental grosseiro e imprevisto, sonhando acordado. A porta sendo aberta à sua frente era como um balde de água gelado em seu rosto.

Oliver ergueu as sobrancelhas e sorriu.

― Ah, você chegou. Sim, sim, entre logo, temo que precise tomar um longo pedaço de seu tempo esta noite, Mr. Benedict ― As covinhas surgiram em suas bochechas e as mãos fecharam-se em sua cintura. Usava o avental de trabalho e luvas de couro, os cabelos bagunçados como café em pó, à altura dos olhos. Seu rosto voltou-se aos céus. ― Está uma noite maravilhosa, não concorda?

Atônito, suando e com receio, Jeremy assentiu com ferrugem no gesto. Não sabia exatamente o que deveria fazer naquele instante. Oliver apenas abriu mais a porta.

― Foi o que pensei.

E entrou novamente, deixando a porta aberta à espera do convidado. Este, por sua vez, continuou parado com a calçada sob as solas, perguntando-se até que ponto aquilo era fantasia de uma mente alucinógena e onde começava a realidade.

O papel em sua mão já havia rasgado quando deu um passo para dentro.

― Feche a porta ao entrar. ― pediu Murphy.

O mecânico era uma sombra movendo-se atrás do balcão sob a luz de lâmpadas azuis e amarelas, provavelmente uma invenção sua. A loja cheirava a verniz e óleo, exatamente como se lembrava. Era, no entanto, difícil concentrar-se em lembranças quando Oliver estava à sua frente, sorridente e mais real que uma recordação. O aviador encarou suas costas virando-se para a porta do depósito e sumindo de vista. Encontrou-se então sozinho na recepção, sem saber exatamente o que deveria fazer.

Oliver surgiu novamente pela porta.

― Ah, sim, quase me esqueci ― riu ― Me siga, sir, tenho uma surpresa nem tão surpresa para você.

A sala de gavetas continuava exatamente do jeito que lembrava, nem um metro quadrado ampliada ou reduzida. Continuava sendo o mais amplo cômodo da oficina, com teto alto e pequenas janelas de vidro gradeadas, cheio do chão ao teto com gavetas de ferro. O mecânico moveu-se por elas já sabendo seu destino, tal como na primeira vez que se encontraram. Abriu uma gaveta, fechando-a logo depois.

Jeremy piscou muitas vezes, olhando em volta.

― Oliver, o que diabos isso... ― tentou, mas o outro logo correu em sua direção, tirando-lhe o fôlego. ― O que você está...

― Sente-se no banco atrás de você e prepare o rosto para sorrir. ― sua voz era séria, forte e firme, mas seus lábios estavam erguidos e seus olhos se divertiam tanto... ― Estou falando sério, Benedict.

O loiro cambaleou alguns passos e se encontrou sentado em um banco de madeira. O mesmo em que sentara anos antes, quando fez medidas para encomendar seu primeiro braço. Oliver parou à sua frente e esticou as mãos, inclinando em sua direção um embrulho de papel azul claro.

Jeremy soube pelo formato o que era e sentiu um nó no estômago.

Um braço e um abraço.

― Não... Oliver, isso é... ― se interrompeu, levando a mão à boca. ― Meu Deus.

― Apenas desembrulhe logo. ― as bochechas do mecânico coraram e ele desviou os olhos. ― Temos muito o que falar, isso é só como um presente de boas-vindas.

Com os dedos um pouco trêmulos, Jeremy puxou o papel debaixo da fita e o embrulho se desfez sobre as suas mãos. A luz das lamparinas azuis refletiu no metal prateado e bem polido, transmitindo um brilho surreal aos seus olhos. Jeremy tocou-a com a ponta dos dedos, descendo pelo cotovelo gelado até a palma da mão bem desenhada e os contornos suaves do pulso e dedos.

Algo dentro de si revirou-se antes de Oliver começar a falar.

­ ­­― Você não pode ir à guerra com ele. É um metal pouco resistente e bem destrutível, mas leve e perfeito para o uso cotidiano. Tem poucas ligas de carbono e ferro-níquel, então não tente batê-la na parede com uma força idiota. ― o mecânico balançou a mão em descaso. ― Adicionei um relógio no pulso e aumentei a sensibilidade pra 2.8, agora você pode também cortar umas cenouras e decorar bolos com a mão de um artista, ou o que quer que você pretenda fazer a partir de agora.

Jeremy lhe encarou por baixo de seus cabelos dourados. Oliver vinha trabalhando naquilo há quanto tempo? Diria três meses, no mínimo, uma vez que seu primeiro braço tomou muito mais tempo para ser construído. Por todo esse tempo de ausência, estaria o mecânico pensando nele, trabalhando secretamente naquele projeto tão... atencioso?

― Oliver... Não nos vemos há quase quatro meses ― disse, com os olhos brilhando mesmo com a luz fraca do lugar ― Todo esse tempo...

O moreno balançou a mão em descaso, um tanto elétrico, e começou a falar:

― Estive meio ocupado, acho. Infelizmente não descobri como fazer um braço anti-tolice, então tome cuidado ― tossiu, meio pigarreando, e abaixou os olhos. ― Desculpe. Eu só...

― Instala para mim?

O mecânico ergueu os olhos e o encarou face a face. Jeremy não sabia dizer se estudava sua expressão ou calculava como agir, mas sabia que estava feliz, demais até. O rosto de Oliver era um tanto cauteloso, mas ainda assim sorriu, como era comum anos antes.

― Sempre, Jeremy.

...

Tudo pareceu tão nostálgico dali para frente. O ex-aviador sentou-se no banco sem camisa e os dedos do moreno passearam pelo toco de seu braço e desceram na curva da axila, buscando a área sensível com atenção. Jeremy olhava para seu rosto, estudando-o descaradamente e temendo que fosse tudo um sonho. Oliver estava ali, próximo, as mãos sobre seu corpo, e nada mais importava de verdade.

Sentiu o choque vibrante, as cócegas engraçadas subindo do toco de seu braço até a coluna e respirou fundo para evitar o espasmo. Oliver reconheceu o sinal.

― Essa situação traz muitas lembranças ― balançou a cabeça. ― Sabe, daquele tempo.

― Gosto dessas lembranças ― murmurou, quase um sussurro.

Sentiu o mecânico sorrindo em suas costas e toda sua alma pareceu vibrar por dentro da pele. O moreno trouxe seu braço, o erguendo até o toco. Era lindo, com carcaça reluzente e dedos finos, cheio de articulações e músculos moldados. Poderia ser um braço de verdade, não fosse pelo metal brilhante, as engrenagens e o cheiro de óleo novo.

Fizeram silêncio durante a instalação. Sentiu o gelado perfurando seus nervos e entrando na área mais sensível, mas segurou-se àquela dor fria. Era real, as mãos de Oliver às suas costas, o braço novo dolorido e aquele vazio na loja, indicando que estavam sós. Era real o cheiro de graxa, fumaça e cobre, o café enfraquecido no ar. Oliver era real e ele também, assim como aquela dor.

― Senti falta disso. Demais.

Oliver soltou o braço e voltou-se à sua frente, encorajando-o a movê-lo. Jeremy olhou para a ponta do indicador e para a linha da vida na palma da mão, e tentou concentrar-se na conexão e na dor fria.

Os dedos se moveram, um após o outro, facilmente como se fosse um braço de verdade. Respondia bem mais rápido que seu braço anterior, mas a dor picante em seus nervos era mais profunda também.

Sorriu mesmo assim, com o suor pingando de sua testa. Oliver ajoelhou-se à sua frente e lhe encarou nos olhos, com um fantasma de sorriso nos lábios.

― Senti falta disso também, Jeremy. De verdade. ― o aviador pensou que fosse olhar para os pés, mas não o fez. Tinha as bochechas coradas e o cabelo na cor de café refletindo as luzes das lamparinas, mas continuou encarando-o nos olhos, com medo de desviar.― Me desculpe, Jeremy. Por tudo. Por não esperar, por deixá-lo no hospital daquele jeito e por não abrir a loja para você todas as vezes que vinha. Os últimos meses foram...

― Está tudo bem, Oliver. ― uma gargalhada rouca fugiu de sua boca. ― Por Deus! Está tudo bem.

A cabeça do mecânico se inclinou para o lado, como que incerto, e o aviador esticou-se para frente para ouvi-lo, os cabelos molhados de suor. Oliver continuava lhe encarando de perto, estudando-o, mas abriu um sorriso de canto.

― Você tem certeza disso? Digo, você ainda tem o direito de me ouvir implorando e me desculpando até o fim da noite. De me ouvir tagarelando sobre o quanto fui rude ou teimoso e sobre como você estava certo durante o tempo inteiro. Tem certeza que vai desperdiçar isso me perdoando tão facilmente?

― Tenho. Seria um tempo gasto à toa.

Inclinou o corpo ainda mais para frente, sentando-se na ponta da cadeira, e observou o rosto do moreno de perto. Desde as sardas sutis até os olhos verdes. Parecia não ter mudado nada nesses três anos.

― Jeremy?

― Sim?

― Tudo bem eu beijar você agora?

A luz do farol de um carro atravessou a janela gradeada e o rosto de Oliver se iluminou sombriamente. Havia pequenas rugas doloridas em sua testa e olheiras sob os olhos como pequenos bolsões cinzentos. O aviador olhou para seus ombros pesados e não hesitou ao mostrar-lhe os dentes em um sorriso malicioso.

Acenou positivamente, bastando isso. Oliver não precisou se aproximar tanto para encostar seus lábios nos deles, já estavam tão próximos... sempre estiveram, na verdade.

Os lábios de Jeremy tinham o gosto do café de outrora.

...

― Vi uma moça com um olho mecânico essa tarde. Não consegui parar de pensar nisso durante o dia, sobre como você deve construir coisas assim sempre. Olhos, pernas, braços, mãos. ― sorriu, virando o rosto para ele ― Há alguma coisa que você não construa?

Estavam deitados no chão do depósito, lado a lado, olhando para o teto distante e estudando as luzes que entravam pelas pequenas janelas gradeadas. Havia movimento na rua, faróis de carros e sons de conversas, mas havia um silêncio confortável plantado no meio daquele lugar, por isso os dois sorriam ― sorriam também porque estavam sem camisa, os ombros nus se tocando, mais próximos do que nunca estiveram, com as luzes fracas das lamparinas iluminando seus rostos.

― Não construí tantos olhos durante minha vida, mas já produzi alguns. A maioria é encaminhada para hospitais, não sou capaz de instalá-los eu mesmo, então não gosto muito de fazer eles. ― esticou a mão para cima, olhando seus dedos ― Mas são bonitos e demorados, então é um passatempo bom. Mas não posso construir tudo. Não há como construir um coração ou um cérebro, pelo menos não com a tecnologia de hoje. Parece triste, sabe? Ter um coração frio de metal...

Jeremy virou-se de lado para olhá-lo melhor.

― Oliver.

― Fale.

― O que houve com Claire?

O mecânico soltou um suspiro cansado. Olhou-o com o canto dos olhos e depois voltou-se para o teto.

― Terminamos no mesmo dia em que fui visitá-lo no hospital. Passeei com ela pelas ruas enquanto lhe explicava como me sentia e como não achava que seria certo continuar com aquilo. ― Jeremy sentiu os dedos dele se fechando nos seus. Os apertou de volta ― Não diria que ela ficou bem, mas me ouviu até o fim e pareceu entender, embora não tenha aceitado direito. Ela entrou em casa antes que começasse a chorar e desde então não tive muitas notícias dela. Ouvi dizer que ela embarcou num navio em direção ao Mar Mediterrâneo ou à América, mas não tenho muita certeza. Eu nunca quis machucá-la.

― Sei que não. Ela também sabe disso, acredite. ― inclinou-se para o lado, puxando-o para perto com o braço de metal. ― Fico feliz que tenha me escolhido, mesmo que tenha demorado demais.

A mão fria estava em suas costas, na linha da espinha, e Oliver estremeceu.

― Desculpe, deveria ter falado algo antes. Eu só estava... bem, distraído com a construção do novo braço. E também andei fazendo uns ajustes no Air Driller, mostro para você outra hora. Agora... ― enlaçou o pescoço do loiro om os braços. ― Agora vamos só esquecer por um instante.

Jeremy riu, jogando o corpo para cima do mecânico e voltando a beijá-lo. Sentiu os dedos apertando sua nuca, os cabelos sendo puxados conforme Oliver o apertava e mergulhava com tudo naquele momento, os lábios famintos. A noite estava quente e ambos suavam naquele cômodo abafado e escuro, mas o loiro abraçou-o, beijou seu pescoço, a linha do seu maxilar e cada uma de suas sardas pequeninas.

― Eu amo você, Jeremy F. Benedict ― o mecânico puxou os cabelos de trás, sussurrando em seu ouvido direito. ― Amo você há bastante tempo, na verdade. Desde que você sentava na minha oficina com aqueles óculos feios e lia o jornal em voz alta. Desde que você jogou pedras na minha janela e trouxe uma caixa de doces. Amo você desde que me beijou e desde que se despediu de mim no seu prédio. Jeremy, eu...

― Oliver, pelo amor de Deus, cale a boca.

Beijou-o mais uma vez, apenas para mostrar que havia entendido.

...

Quando Jeremy acordou, o quarto estava vazio, mas as cortinas estavam erguidas e a luz da manhã entrava por ela, morna e clara. Sentou-se meio zonzo de sono, empurrando os lençóis para longe e procurando Oliver pelo cômodo. Ele não estava ali.

Olhou para o braço mecânico na sua lateral direita e sorriu ao movê-lo à frente dos olhos, a dor nada sendo senão um incomodo distante. Gostava da leveza dele nos movimentos e do modo como se movia ágil e fácil pela lubrificação recente.

Levantou-se da cama e procurou suas roupas no chão, na intenção de cobrir a nudez, mas só achou a calça e um par de meias que provavelmente eram suas. Sua camisa havia sido perdida em algum lugar no depósito, um andar abaixo dali, então o ex-aviador procurou alguma camisa entre os pertences de Oliver que poderia cabê-lo.

Desceu as escadas terminando com os botões e se deparou com o cheiro de café no ar. Preto, forte e fervido, do jeito que o mecânico gostava. Encontrou Oliver sentado na oficina com óculos enormes, do tamanho dos de mergulho, acoplados a uma luminária poderosa sobre a mesa. O robô Air Driller estava logo à frente e o mecânico soldava pequenos fios vermelhos na barriga da criação.

― Bom dia, airheart. ― cumprimentou sem sequer se virar na sua direção. ― Tem café no balcão e biscoitos em algum lugar do armário. ― ergueu os olhos dos enormes óculos ― Adorei a camisa.

― Não está um pouco cedo para trabalhar? ― olhou o relógio cuco sobre uma estante, eram sete horas. ― Poderia dormir um pouco mais hoje, é domingo.

― Hum, não consegui dormir, precisava fazer alguma coisa, então pensei que poderia terminar isso logo.

Havia uma caneca enorme de café vazia ao seu lado e embalagens de doces jogadas entre os matérias e peças.

― Está trabalhando nisso desde que horas?

― Desde às três, talvez quatro.

― Nós fomos dormir nesse horário. ― Oliver não respondeu. ― Ok, pare tudo isso e suba. Você precisa dormir um pouco.

― Não posso, tenho que cuidar da loja e terminar cinco projetos ― apontou para atrás do loiro ― tem um dispositivo de pesca, um controle remoto universal e três mini zeppelins para um desfile, eu...

― Oliver. Cama.

Uma hora depois, o mecânico tinha o rosto enterrado nos travesseiros.

Jeremy sentou no espaço ao lado, bebericando uma xícara de café e estudando seu rosto pelo que pareceram ser horas. Se perguntava há quanto tempo o outro estava sem dormir e quantas doses de café havia ingerido antes que ele chegasse. Lembrava-se do quanto estava elétrico e tenso, do jeito que costumava ficar antigamente, mas desta vez tinha também uma grande dose de cansaço. Oliver já não era tão novo para aquelas coisas.

Uma nuvem pareceu ter caído sobre a rua em algum momento do fim da manhã e o sol foi tapado por uma sombra fria. Jeremy subiu as escadas com um prato de biscoitos e se inclinou para fora da janela do quarto, olhando para o céu.

Uma frota de cinco zeppelins ― quatro pequenos seguindo um maior ― e seis airships cortavam a céu. Havia uma música distante descendo pela rua, ao som de marcha, e Benedict sabia ser uma procissão seguindo por terra os passos da frota aérea. Rainha Vitória, navegando pelos céus ao sol do meio-dia com todo o luxo que a nobreza e o sangue real lhe permitia.

Ela amava voar, todos diziam. Jeremy amava voar também.

Olhou para a cama onde Oliver ainda dormia de bruços, os braços estendidos ao lado do corpo e a respiração lenta e cansada. Afastou-se da janela com o prato de biscoitos e se acomodou ao lado novamente, entrando sob as cobertas.

O rosto dele estava a centímetros quando sussurrou:

― Amo você, Oliver H. Murphy. ― mais do que voar, mais do que os céus, mais do que o país e o dever.

O mecânico sorriu, mesmo não estando acordado, e tudo pareceu certo de novo ― sorrisos e café forte em uma manhã quente de domingo.

FIM.


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Notas finais do capítulo

Acabar essa história me doeu tanto ;-; Eu tive enormes bloqueios escrevendo esse capítulo final e sempre me pegava relendo os primeiros capítulos e sentindo tanta saudade dessa história e dos leitores dela. Já tive muitas histórias ao longo dos meus anos no Nyah!, mas falo com sinceridade quando digo que os leitores de Airheart foram os melhores que já tive. Todos comentavam com tanto amor pela história e pelos personagens e pareciam ver detalhes que eu mesma não notava ao escrever. Me apaixonei por essa história provavelmente graças à vocês então obrigada por tudo, por essa jornada incrível e por me darem tanto apoio e estímulo de ir pra frente.
Outra coisa que eu queria dizer (e que também foi um dos motivos de eu ter demorado tanto para postar) é que eu estou escrevendo um pequeno spin-off de Airheart. Vai ser uma shortfic chamada Airship e vai contar a história da Claire (como vocês viram, ela embarcou num navio. E ELA MERECE UM ROMANCE ENTÃO SIM, VAI TER MAIS CLAIRE). Eu pretendia postar esse capítulo só quando publicasse o primeiro de Airship, mas notei que vai ser um pouco demorado para concluir Airship de vez (vai ter uns três capítulos só) porque eu to embolada com esse papo de ensino médio e estudar é um saco. Então fiquem ligados que já já sai (se quiserem que eu avise por mp quando postar, diga nos comentários ♥)
E acho que é isso. Obrigada a todos que deram chance e força a esse projeto que é um orgulho meu (e finalmente finalizado). Espero que tenham gostado de ler tanto quanto eu amei escrever e os aguardo numa próxima aventura.
Até logo! (não adeus, nunca adeus)



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