Roupas no Varal escrita por Edgar Varenberg


Capítulo 1
Em branco


Notas iniciais do capítulo

A história possui narração leve, mas um enredo bem complicadinho, sugiro ler com bastante calma se você for daqueles leitores que gosta de captar todas as mensagens. Boa leitura!



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O vento batia naquele lugar como se fosse uma corrente transportadora de pura paz. E lá, um último lugar, um último andar, parecia assustador se você chegasse perto da beira — nem tanto, porque a parede ficava na altura do peito de um adulto com altura mediana —, mas era o suficiente para deslumbrar o alto de um local que formava muitos ninguéns. Carros, cores, pessoas e a imensidão natural ao fundo que só servia de fundo mesmo, tudo de fundos imperceptíveis.

Roupas brancas balançavam, mas numa leveza tão confortadora que pareciam bailar entre as cordas, como se fossem marionetes guiadas por pregadores coloridos. Tango, samba, axé ou valsa. As roupas brancas também lembravam fantasmas. Tobias sempre se perguntara se ali havia fantasmas, pois um dia leu um livro sobre seres sobrenaturais e descobriu que seu pai tinha se tornado um naquele mesmo lugar, só que uns andares mais abaixo. Sua mãe nunca quis falar diretamente, mas ele sempre soube que, ali, tinha fantasmas. Talvez eles dormissem pela amanhã, aproveitando a brisa e balançando as roupas para se disfarçarem.

Tobias não gostava de branco, mas onde ele morava todos se vestiam assim, inclusive ele. Mas a única que trazia cores de vez em quando era sua mãe. Sempre se esquecia delas, mas sua mãe o relembrava cada vez que brilhava com um novo tom e irradiava o seu pequeno quartinho o qual chegou a dividir com seu amigo Fernão. Dividia. Apesar de não saber muito bem por que não dividia mais. Sempre perguntava:

“Mãe, o Fernão virou um fantasma?”

“Mãe, um dia eu vou virar um fantasma?”

E a mãe apenas encarava seus olhos negros.

“Você se tornará um caçador de fantasmas se continuar obcecado desse jeito, meu filho.”

Tentava sorrir, mas não conseguia.

Ninguém sorria.

“Ah, qual é, mãe, eu já tenho 14 anos. Não me trate como se eu fosse uma criança que acredita em eufemismos. Eu sei que as pessoas morrem. Mas eu posso me comunicar com fantasmas, né?”

“É, filho...”

O jovem gostava de passar seu tempo vendo as roupas balançarem. Às vezes se escondia quando alguns funcionários iam lá tirar e colocar novas peças e não sabia bem por que fazia isso, nada dizia, oficialmente, que era proibida a presença de pessoas por lá, mas ele sentia que era proibido; escondia-se por precaução. Ficava lá por mais tempo que pensava, chegava a ver o sol se pôr. Tudo isso porque não gostava muito de onde morava, era chato e ele só tinha que ficar deitado o dia todo; às vezes doía. E ver toda aquela gente de branco passando pelos cantos o atordoava, ele preferia ver os fantasmas bailando nas roupas ao vento.

Calhou de sem querer Tobias ficar ainda mais tempo do que imaginava e, pela primeira vez — não na vida, mas sim naquele ambiente característico da sua rotina —, viu a noite. Viu o pratear da lua transcender as roupas brancas, e que no escuro o vento era mais calmo, porém mais frio. Era como se os fantasmas agora suspirassem serenatas, assistia a tudo isso sentado, abraçando os joelhos. Ficou preocupado de sentirem a sua falta, começariam a procurá-lo.

De repente, um contraste o assustou. Ficou observando por tanto tempo que nem deu para se esconder. Era amarela e preta, com listras grossas. Uma bela camiseta. Outro jovem se esgueirava de forma atrapalhada pelas roupas brancas, também pelos lençóis, dava-os um movimento esdrúxulo, incompatível com toda a harmonia ilusória compatível com a mentalidade de Tobias, de todo o universo composto naquela realidade. O outro garoto olhou para Tobias surpreso, não esperava encontrar alguém por ali, não naquele horário, olhou-o como se algum tipo de esconderijo tivesse sido violado.

Mas ele não vestia branco. E não era a mãe de Tobias.

Talvez fosse o momento certo para ir embora, talvez se ele levantasse naquele momento, ele não seria obrigado a tocar palavras, seria tipo uma comunicação indireta de troca de turnos e nenhum dos dois pensaria naquilo de forma muito detalhada. Um cruzamento de vidas sem significado. Sim, seria a melhor a solução; entretanto, Tobias apenas ficou parado, procurava manter um nível entre encará-lo e fitar o chão concentrando toda a sua timidez — que estava mais para um incômodo — nos riscos desenvolvidos pela idade do chão em que sentara.

“Deve ser de você que estão falando.”

Estremeceu-se com aquele contato, não porque tinha vergonha, mas por ter sido inesperado; Tobias apenas esperava que ficasse num silêncio compartilhado, não esperava ouvir a voz do menino que parecia tão jovem quanto ele, talvez um pouco mais; chegou até a ficar na ansiedade de perguntar. Tobias gostava de saber da idade dos outros.

“Acho que perdi a noção do horário. Você estava me procurando ou veio pra cá porque quis?”

O menino sentou-se ao lado dele como se a intimidade permitisse. Ajeitou o seu cabelo usando a tela desligada de um aparelho celular como espelho e suspirou enquanto o ligava apenas para observar o horário:

“Eu venho para cá todo dia depois que eu consigo fazer minha irmã dormir. É complicado porque ela insiste em ficar acordada e querer ver meu rosto, mas é importante que ela descanse sempre.”

“Eu a entendo, as camas são bem desconfortáveis. Como eu nunca te vi por aqui? Eu já me escondi dos caras que se vestem de branco, mas você eu nunca vi.”

“Eu só venho à noite. Você perdeu o horário.”

Tobias observava uma discrepância considerável entre os dois. Não sabia o que era, ainda estava naquela fase ideológica invisível que martelava qualquer pensar em busca de soluções. Mas era como se duas realidades ocupassem o mesmo corpo, uma mesma esfera de tempo. Era como se uma mesma ampulheta carregasse quantidades diferentes de areia, mas, mesmo assim, transcorria o mesmo tempo. Talvez o tempo agisse de diferentes maneiras nas pessoas ou as pessoas manipulavam o tempo de diferentes maneiras.

“Quantos anos você tem?”

Não deu. A ansiedade de Tobias explodiu em relação àquela sua curiosidade particular. Tinha a mente trancada em achar que definições de tempo constavam realidades precisas. E apesar das aparências, tinha medo da resposta; seu olhar indicava uma resposta, mas ele não queria acreditar que era aquilo mesmo que ele via. Daria um nó bem apertado nos seus conceitos, seria muito trabalhoso se revirar e construir, do zero, novos pensamentos.

“Atualmente quatorze, mas não falta muito para eu completar quinze.”

O nó veio quebrando razões como mulher raivosa. Com Tobias se perguntando coisas um tanto inocentes, mas bem presentes em qualquer adulto e ainda não tinha a palavra certa para descrever, não tinha as provas certas para confirmar, nem segundos suficientes para crer, mas se perguntava como o outro menino podia ter mesmo quatorze anos. Aparentava mais, não só fisicamente. E pensou que era porque faltava pouco para os quinze, diferente dele que tinha feito quatorze há pouco tempo. Preferiu se iludir que o fim daquela idade o reservaria uma transição mágica, e talvez trouxesse.

“É melhor eu ir. Devem estar loucos procurando por mim.”

Apenas um assentimento fez tudo aquilo acabar. Tobias então desceu as escadas, estava na hora de voltar para o seu quartinho, para a cama desconfortável, a televisão velha e aqueles poucos brinquedos que ainda fazia um esforço para abandonar. Viu as pessoas de branco circulando, mas agora de forma mais serena, era noite, tudo sob a lua se movimentava mais devagar. Logo foi chamado a atenção, mas tudo bem para ele.

Dormiu sem ter sonhos.

Acordou como se fosse obrigado.

O café da manhã estava ruim; Tobias odiava aquelas torradas estranhas, eram secas e muito duras. Mas ele não escolhia e não gostava muito de comentar coisas negativas, portanto, comia sem reclamar. Depois ficou fitando a janela com grades e, ao olhar para o calendário, percebeu que só veria sua mãe no dia seguinte. Ele se acostumou a não vê-la todo dia, ela tinha outros filhos, outras tarefas, então o tempo se dividia como podia, e a solidão familiar nunca foi bem um problema para o menino que gostava de ficar sozinho, ele não se compreendia naqueles meios, mas era como se só respondesse por educação.

Decidiu que torturaria suas costas. Ficaria deitado olhando para o teto até quando a vida o empurrasse para outro destino. E ficou. Sonhava acordado toda vez que desfocava o olhar da mancha nada sutil daquele teto branco, viu pássaros, aviões, super-heróis e máquinas terroristas a cada dose de imaginação. Às vezes era por pura vontade, às vezes era por puro efeito. Tobias gostava exceto quando ele tinha vontade de se contorcer. Era para o próprio bem que ninguém conseguia prever quando chegaria, alimentado de esperanças que construíam cada vez mais fragilidades humanas.

Exaustou-se daquilo depois do crepúsculo e aproveitou que a noite trazia mais calma e sucesso de não ser visto por aqueles que se vestiam de branco. Fazia mais frio que ontem e as roupas no varal estavam vulgarmente mais agitadas. Talvez os fantasmas fossem mais promíscuos quando ninguém estava vendo, tipo os humanos; a coincidência da chegada de Tobias e do acalmar do bailar das peças no varal foram surpreendente, como se os fantasmas realmente tivessem vergonha de serem vistos em momentos obscenos. Se é que eles eram vistos...

Fantasmas não tinham noção.

Passou a noite naquele terraço solitário, observando o pouco que sobrava das estrelas, afinal, a luz artificial urbana não deixava nada mais à mostra. Os carros estavam mais movimentados ao fundo, isso significava que era sexta-feira, pelo menos nos conceitos inexplicáveis do jovem menino. Não via graças em estrelas, não via graça em muita coisa, mas gostava muito de simplesmente deitar no chão e imaginar coisas, vivia imaginando aquilo que seus olhos eram incapazes de ver, quebrando fronteiras que ele seria incapaz de enxergar, inventando histórias que talvez ele nunca vivesse.

Era incrível como Tobias não se incomodava com o passar do tempo, ele conseguia ficar imóvel por horas, apenas pensando e pensando... Não se queixava, e a vida passava voando, as horas passavam em parágrafos e percebeu que as coisas estavam diferentes quando o ambiente ficou silencioso demais. Nem as roupas brancas se mexiam mais, nem os grilos e os vagalumes mostravam sua existência, até o vento decidiu descansar.

“Você de novo.”

O jovem Tobias se assustou com aquela voz aparecendo de surpresa e o escuro ficou tão diferente do habitual. Era rosa e verde, de listras finas, verticais. Uma bela camiseta. Esquecer-se da existência do outro menino estranho com a mesma idade foi um erro, a lembrança poderia ter evitado um surto desnecessário, um desconforto intenso e aquele nó de incompreensão.

Poucos minutos depois estavam trocando informações, coisas do tipo sabor de bolo favorito, histórias como o dia que Tobias se engasgou com uma bala e descobriu que era alérgico a menta e até umas mentirinhas, como um peixe que voava. Entretanto, descobriu-se que o nome do pequeno rapaz era Eduardo, que indicava, segundo ele, riqueza em dinamismo.

Eduardo disse que tinha medo de crescer, que deixou de se sentir criança faz tempo e não lidou muito bem com essa perda; disse que a mente mudou de uma forma e a imaginação se adaptou, era exatamente sobre aquilo que Tobias se sentia engasgado de comentar. Ele tinha noção dessas mudanças nele, sentia-se o mesmo de sempre, sentia-se inferior sem ninguém apontar isso a ele, mas era só coisa que ele sofria em silêncio.

Passaram-se dias.

Dormindo sem sonhos.

Acordando como se fosse obrigado.

Sempre no terraço acompanhado dos fantasmas que pareciam gradativamente vivos.

Citou-se sobre sonhos. Eduardo disse que sonhava que a sua irmã não precisasse mais da ajuda dele para conseguir dormir, que ela não precisasse mais de ajuda nenhuma; era complicado ser o irmão mais velho. Tobias, diferente dele, era o irmão mais novo, e ele gostou de pensar que mesmo possuindo a mesma idade, as realidades se distorciam completamente, como dois relógios iguais, porém funcionando por energias diferentes, as baterias sempre sendo diferentes.

“E você, Tobias, com o que sonha? Esse lugar é cheio de sonhos, desejos, mas ouvi falar que é amaldiçoado, que nem sempre se concretizam.”

“Eu sonho em encontrar um grande amor.”

Algo tão grande para alguém tão jovem. Primeiramente, Eduardo apenas arqueou uma sobrancelha, talvez com um tom de estranheza em ver alguém falando aquilo, evidentemente foi fruto de inexperiência, de surpresa. Lembrou-se de seu pai dizendo o quão era importante respeitar os sonhos alheios e, mais importante ainda, ajudar as pessoas a segui-los, que é o mínimo que a sua presença de mundo pode proporcionar.

“Eu posso ser o seu grande amor.”

Tobias arregalou os olhos imediatamente.

“Ei, ei! Você é um menino. Não conta!”

“Como não? Eu gosto de meninos.”

“Você não é meio novo para já saber que gosta?”

“Você não é meio novo para já saber que não gosta?”

Touché. Nenhum dos dois percebendo que aquilo andava rápido demais. Não se tratava de brincadeira de criança. Mas compartilhar os sonhos fazia parte de um elo de confiança, fazia parte de se tornar frágil mutualmente e cada um carregar a fraqueza do outro, blindando quaisquer chances de invasão, envolvendo-se numa camada de faz de conta que, surpreendentemente, dava certo. Os fantasmas se animaram e algumas roupas se soltaram do varal. Um frio violento anunciou o até amanhã.

Tobias ficou sem fome pelo resto da noite e se revirava tentando acelerar o tempo como sempre fazia. Não demorou muito, pensar em patos auxiliava no processo. Pensou num pato de borracha de cor verde-limão — mas na sua imaginação era amarelo, como as listras grossas da camiseta de Eduardo — e logo se soltou a pensar em mais coisas, mas sentia uma ansiedade destrutiva em si, como se o jantar tivesse com muito sal, como se ele tivesse assistindo uma contagem regressiva em câmera lenta.

Dormiu sem sonhos.

Acordou como se não tivesse dormido.

Os dias se passavam naquela magia de sempre, como cronômetros quebrados. O futuro se tornava futuro a todo instante. Tobias aprendeu muitas coisas com Eduardo e vice-versa. Dentre eles a demonstrar afeto com um simples unir de lábios. Repeti-los todo dia. Aprenderam a se interpretar apenas com o olhar. E aquilo fugia do controle susto em cardíaco. Eduardo não era tão diferente como Tobias pensava, cometia erros exatamente como eles. Tobias não era como Eduardo pensava porque não pensava no que existia como ele pensava. Um admirava o que não existia no outro, mas o racional da história sempre foi Eduardo. Ele sabia mais.

“Você não tem noção do que está acontecendo...”

“O que foi, Eduardo?”

“Eu consegui fazer de tudo pela minha irmã e, apesar de tudo, agora ela pode ficar comigo quando quiser, esse meu sonho, e também dela, não foi destruído.”

As roupas comemoravam num vibrar o qual Tobias nunca havia presenciado. Ele sorriu, aquela agitação inquieta o fez sorrir. E também a camiseta vermelha de Eduardo. As camisetas dele eram encantadoras.

“Tobias, você não sente falta do mundo lá fora?”

“Falta de que exatamente? Minha mãe vem me visitar às vezes, não é tão ruim.”

Tobias se lembrou da última conversa que teve com a sua mãe. Ela estava mais silenciosa que o normal, como se tivesse se afastado bruscamente de sua existência. Não houve muito contato, os choros pareciam mais secos, como esperanças totalmente destruídas. Uma situação tão negativa que ele nem preferiu comentar sobre o quanto gostava de passar seu tempo com Eduardo, apesar de apresentar clara timidez em dizer que tinha encontrado um grande amor. A aceitação no olhar daquela mulher que o originou era de extrema infelicidade, talvez ela tivesse passado um dia ruim, mas isso não explicava o seu silêncio, não explicava ela estar de branco, cor que detestava.

Seria um possível afastamento culpa dele?

Seriam esses os problemas que os adultos enfrentavam e isso uma primeira amostra de suas transformações?

“Talvez você consiga o mesmo que a minha irmã. Talvez seu destino seja outro. E eu sinto que eu não tenho nada a ver com isso.”

Eduardo simplesmente caminhou para dentro do prédio, na área fora do terraço, Tobias o via porta adentro, naquela escuridão natural da noite, enquanto ainda estava do lado de fora, atrás da porta, vendo, pelo canto do olho, as roupas brancas balançando como sempre.

“Eu acredito em você, Tobias.”

“E eu acredito em você, Eduardo.”

Eduardo apenas estendeu a mão.

Tobias o seguiu para dentro.

As roupas no varal balançaram eternamente.

Dormiu com sonhos.

E ainda sonhava em acordar.


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Notas finais do capítulo

*Os personagens não foram descritos fisicamente de forma proposital;
*A comparação "como mulher raivosa" foi inspirada de um episódio do desenho "As terríveis aventuras de Billy e Mandy";
*Fiz dois finais e fiquei na maior dúvida sobre qual escolher. Caso te interesse saber do outro final, fale comigo por MP :D