Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 21
O Interlúdio Federici - Parte 1




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Irina tinha quinze anos quando se apercebeu que a pessoa que era não se alinhava com o que os outros pensavam de si.

Tomar subitamente consciência disso não foi a parte complicada – desenvolvera ao longo dos anos, por influência de boas companhias e más experiências, uma inestimável paciência consigo mesma e com os dramas internos, externos, de grande escala ou pouca leva em que se via envolvida. Também mentiria se afirmasse que aceitar-se tinha sido da simplicidade de calçar uma meia. Era algo novo com que precisava de aprender a viver, e a mudança nunca é particularmente fácil.

Mas conseguiu, e orgulhava-se disso. Isto, porém, até finalmente contar aos seus pais certo dia. A sua mãe estava a tentar arranjar qualquer achaque que o painel de controlo da iluminação da casa resolvera desenvolver, quando a sua voz soou.

— Filho, podes passar-me a chave de porcas? Caraças, estou a ver que não saio daqui hoje.

— Iep, toma. Mas já agora, sobre isso, posso falar contigo sobre uma coisa? É que tenho quase a certeza de que não sou um “filho”. Sou mais uma “filha”.

Já tinha, nos áureos tempos da sua infância, quase partido uma perna por subir ao telhado, ateado fogo à garagem e levado um cão provavelmente raivoso para a sua casa – mas nunca vira um ódio tão grande nos olhos da sua mãe como naquele dia.

Não se lembrava dos detalhes da violenta conversa que se seguiu; agradecia à sua memória por ter o discernimento suficiente de apagar o que devia e de a poupar às palavras exatas que a mãe tinha usado.

Sabia que a certo ponto, a mãe a agarrara. Ela chicoteara o braço na sua direção para se libertar, e a mãe, numa crueldade instintiva que nunca pensara que se fosse dirigir a si, lhe acertara com a chave de porcas nas costas.

Fechou-se no quarto por um tempo indeterminado, as lágrimas a queimarem-lhe as faces e as dores a relembrarem-na de que a mãe a detestava. Naquela noite quis convencer-se de que a odiava com o dobro do fervor – mas a mudança é difícil. Era uma tortura tentar encontrar coragem para a odiar. Decidiu que seria um processo, e fechou-se em si mesma.

No dia seguinte a mãe dirigia-se a si frivolamente; parecia sublinhar cada “filho” e “rapaz” que lhe lançava. Ordenou-lhe que fosse à cidade na companhia do seu pai, que a olhava com um silencioso porém tenaz desapontamento. Escolheu-lhe a roupa, um faro sóbrio composto por um colete ocre, uma camisa branca e calças retas, completo com um casaco também negro e pesado. Ao vasculhar pelos seus pertences deu pela falta de quaisquer peças de roupa douradas, rosadas ou vermelhas que detivesse, mas nada disse. Obedeceu-lhes sem protestar.

Silenciou enquanto o barbeiro lhe cortava o cabelo tão curto como o pai pedira. Silenciava enquanto a mãe lançava piadas acídulas sobre as suas primas, Magda e Madalena, chamando-lhes todo o tipo de nomes e atribuindo-lhes todo o tipo de comportamentos que considerava impróprios “para meninas da idade delas”. Silenciou quando ela a proibiu de as visitar, às primas e à sua tia, companhias às quais atribuía aquelas “ideias estranhas que ele agora tinha na cabeça”.

Não silenciou quando a mãe se recusou a ouvi-la sobre as dores que cada vez lhe cortavam mais fundo as costas.

— Filho, por favor, agora tens de tudo, querem ver? Já não bastam os problemas que eu tenho? Porque é que queres tornar as coisas mais difíceis do que já estão?

— Não sei, se calhar porque desde que me deste com a puta de uma chave de porcas nas costas que não consigo pô-las direitas?!

Tinha sido mandada para o quarto com um berro penetrante que ainda hoje a assombrava. Nessa noite não dormira – enquanto esperava que o barulho na sala se apagasse, dando-lhe espaço para colocar em marcha o seu plano, preparava silenciosamente uma pequena mochila com o mínimo possível de pertences necessários. Não podia chamar a atenção com grande bagagem, além de que as suas costas não aguentariam. Mas o barulho nunca se chegou a dispersar e, em vez disso, sobressaltou-se com uma batida na porta do seu quarto. A voz da sua mãe soou do outro lado.

— Filho. Tens aqui alguém que quer falar contigo.

Passos pesados aproximaram-se da sua porta. Deu graças ao cosmos de não terem tentado rodar-lhe a maçaneta, pois já adivinhava a fúria que se abateria sobre a sua mãe quando a encontrasse trancada. Uma voz rouca e grave soou do outro lado.

— Boa noite. A sua mãe chamou-me por causa das dores nas suas costas. Sou o Doutor Poliéve, médico de especialidade, posso entrar?

Lógico seria que uma onda de alívio se abatesse sobre si, um resquício de esperança até, ao constatar que a sua mãe se preocupava o suficiente para ter chamado alguém com tanta urgência para a tratar.

Mas ouve algo que lhe colocou os sentidos em alerta.

“Por causa”, mas que pico na voz foi aquele? “Por causa das dores nas costas”, “dores nas costas”, soou diferente, soou estranho, soou…

Soou falso.

Com o coração a ribombar-lhe no peito precipitou-se para a janela e abriu as portadas, analisando as suas opções; era uma casa baixa, estava apenas no primeiro andar. Era capaz de conseguir. Tinha de conseguir.

— Menino Federici? Está tudo bem aí dentro? Posso entrar?

— Senhor Poliéve — deu por si a dizer à voz do outro lado — hei de descobrir quem o senhor realmente é. Fique à minha espera.

Agarrou na mochila, puxou os cordões para a fechar, e saltou. Não se lembrou da inconveniente dor nas costas.

Assim que os pés tocaram no chão uma pontada excruciante agarrou-a, espalhou-se pelas costas e atingiu-lhe a cabeça como um veneno a queimar-lhe os sentidos. Cada inspiração era um suplício enquanto tentava coletar os pensamentos, acalmar o pânico que se instalava em si e obrigar-se a fugir. Ouvia já as vozes urgentes dos pais e de Poliéve a correr para a janela.

Largou a correr pelas ruas silenciosas da cidade, preenchendo-as com o eco dos seus passos desesperados, do seu arfar inconstante. Assim que possível, enfiou-se por uma ruela, depois por outra, por outra e por outra, até só ter uma vaga ideia de onde estava. Sabia que os pais a perseguiriam, e que provavelmente o fariam na sua motorizada a éter, mais rápida do que alguma vez uma rapariga com as costas numa miséria e a respiração numa cacofonia poderia ser. Conseguiu encontrar um caminho recôndito, ladeado a geradores a vapor de lojas e prédios circundantes e meia dúzia de sem-abrigo a dormir tolhidos pelos cantos, por onde veículos a vapor não conseguiriam passar.

Os pais conheciam-na melhor do que desejaria. Sabia que esperariam por si na estação dos comboios, que avisariam tão cedo quanto possível toda a gente da sua fuga. Seria o “filho problemático, desnorteado”, a quem os pobres pais apenas querem dar uma segunda oportunidade, e a cidade toda ficaria alerta. Tinha de pensar rápido.

Andou durante o que pareceram horas, até uma zona da cidade que não conhecia – um provável bairro social com gente a conversar animadamente à porta de casa, sentados nos degraus ou em cadeiras de plástico. Uma mulher de cigarro entre os dentes tinha a sua prótese ferrugenta no braço a ser concertada por um adolescente da sua idade. Ambos levantaram a cabeça à sua presença, seguidos do resto do grupo.

— O que fazes por aqui, pirralhito? À procura de alguma coisa?

Ainda hoje não sabe de onde foi tirar a coragem com que respondeu:

— Boa noite. Estou um bocado perdido, por acaso. Posso usar o vosso telefone para chamar um táxi?

No fim, não eram pessoas que quisessem problemas. Convidaram-no a entrar, a usar o velho telefone de parede de um adíade do grupo e a sentar-se com eles enquanto esperava. Maioritariamente ignoraram a sua presença, levantando apenas uma animada, acolhedora conversa em sua volta. A mulher, porém, apresentara-se e dera-lhe alguma conversa.

— Estiveste a chorar, miúdo. O que se passou?

— Não é nada. Só tenho uns… umas pessoas de merda atrás de mim. Estou com um bocado de medo do que vai acontecer se eles…

— Ah, sei como é — abanou a prótese ferrugenta ao nível dos olhos — a sobrevivência é lixada. Há demasiada gente filha da puta neste mundo, e só nos resta aceitar e tentar escapar. O que quer que tenha acontecido, relaxa. Estás seguro, vais escapar. Não há muita gente que se meta por aqui.

— O que aconteceu?Deu por si a perguntar. A mulher sorriu-lhe em resposta.

— Sempre me disseram que a vingança é má, sabes? Que a virtude estava no perdoar, no aceitar de volta quem errou contigo. Mas eu acho isso tudo uma treta. O facto de tu odiares alguém que te fez mal é o resultado de teres trabalhado por esse ódio! De teres construído amor próprio suficiente para dizer basta e para mostrar a essa pessoa que não te pode voltar a magoar.

A mulher deu um trago no cigarro quase acabado, torceu a cara quando sentiu o sabor amargo do filtro queimado. Atirou a beata para o chão e sussurrou-lhe:

— Por outras palavras, matei o meu ex-marido.

Um carro negro com listras brancas parou na estrada adiante, a bufar vapor e a descomprimir aos soluços a pressão acumulada nas engrenagens e suspensões. Uma buzina que se assemelhava a um grasnar engasgado soou, o característico chamar dos táxis da cidade. Levantou-se e agradeceu com um sorriso. O grupo acordou para a sua presença e dirigiu-lhe alguns acenos e despedidas:

— Ah, adeus miudinho!

— Tchau, puto, fica bem!

A mulher despediu-se com um rápido abraço, algo desconfortável e algo tosco, mas sentido de qualquer das formas.

— Vai correr tudo bem, moço, vais ver — a mulher sorriu-lhe uma última vez.

— Obrigada, Irina. Até um dia — acenou-lhe de volta antes de entrar no táxi.

**

Tinha de admitir que era uma pessoa previsível. Era mais do que óbvio que apenas encontraria pouso na casa da tia e das primas, e os seus pais sabiam disso. Não sabia como é que eles esperavam convencer a mulher a trabalhar a favor deles, depois da conturbada conversa telefónica em que apanhara a mãe num daqueles dias. Dissera à pobre senhora tudo o que já lhe havia dito: “Você e as suas filhas são uma má influência, o meu filho era uma pessoa às direitas antes de começar a ir para aí, se não fosse pelo meu marido nunca o teria deixado sequer ir vê-la”, e toda a verborreia que já tinha ouvido vez atrás de vez.

E foi esse pequeno traço de esperança que a levou a dizer ao taxista para a levar diretamente à Casa Caleana Major. O homem arregalou os olhos, primeiro com a expressão de quem ganhou a lotaria, depois com alguma desconfiança.

— Isso é uma viagem e peras. Vai sair muito caro, sabe?

Abriu a carteira e revelou-lhe o maço de notas que poupara quando os pais ainda não lhe tinham cortado a mesada. Supostamente compraria um carro ou uma mota de éter com aquelas poupanças quando chegasse à idade de conduzir, mas haviam coisas mais urgentes de momento. O taxista assentiu prontamente e guiou-a, sem mais uma palavra, à mansão recôndita da tia, no cimo de uma solitária colina a uma cidade de distância.

A mulher esperava-a à porta.

Assim que abriu saiu do táxi o seu primeiro ímpeto foi o de voltar a entrar. Apesar dos antecedentes, não sabia se a tia, por amor ao irmão, não a entregaria de volta à casa dos seus pesadelos. Raios, nem sabia se os pais não estavam já à espera no interior da mansão, com um sorriso malicioso a pairar-lhes nos lábios. Sentiu o estômago a revoltar-se.

— Tenho recebido umas quantas chamadas dos teus pais, nestes últimos tempos. Ou melhor, da tua mãe — a mulher começou, sem direito sequer a cumprimentos — umas a acusar-me de te ter metido numa saia, a última a pedir-me, não, a ordenar-me que os contactasse se tu viesses cá ter, porque fugiste de casa.

Não respondeu. A tia era das poucas pessoas que não conseguia ler.

— É verdade o que eles dizem? Sentes-te uma rapariga?

— Sim.

— E como queres ser chamada?

A pergunta arrepiou-lhe as costas, relembrando-a só agora que havia uma certa fração da coluna que ainda lhe doía. Vasculhou por entre pensamentos conturbados até encontrar algo satisfatório para lhe responder.

— Irina.

— Irina. Irina Federici, é soante — a mulher abriu um sorriso genuíno — quando a tua mãe me ligou pela primeira vez com aquela jocosa conversa de que tu “estavas com ideias estranhas na cabeça”, as tuas primas quiserem ir a tua casa raptar-te e trazer-te para cá. Não estou a brincar, estavam preocupadíssimas! E sinceramente apetecia-me o mesmo, mas sempre pensei que o meu irmão e a mulher acabassem por cair em si, aceitar-te, e isto tudo tornar-se apenas uma má memória ao fundo do baú.

Aproximou-se dela e abraçou-a de repente, causando-lhe um salto repentino.

— Desculpa não ter atuado logo, Irina. Podia ter-te poupado muito sofrimento. Mas por favor, deixa-me compensar-te.

As suas forças desvaneciam-se no abraço da mulher. Uma voz no fundo da sua mente urgia-lhe que continuasse alerta, mas já estava exausta de estrebuchar. Verdade ou não, sincera ou uma armadilha, deixou-se guiar pela tia até ao interior da mansão.


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Notas finais do capítulo

A todos os que já se começavam a perguntar o porquê daquele aviso da transsexualidade na história - pois.



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