Vatriesse escrita por Gazervici
— Casa Caleana Major, em que posso ajudá-lo?
— Marco, é a Irina. Posso falar com a minha tia?
A voz no outro lado pausou por um considerável espaço de tempo, deixando a rapariga a perguntar-se se não lhe teriam desligado o telefone. Mas antes que se pudesse resignar a tentar mais tarde, um sopro rápido soou do outro lado:
— Podes. Espera um bocado.
Irina encostou-se à parede do cubículo da cabine telefónica, com o auscultador a pairar-lhe sobre a orelha. Podia orgulhar-se de afirmar que tinha nojo de pouca coisa, mas encostar ao ouvido algo que já entrara em contacto com as faces de milhentas outras pessoas – num hospital, nem menos – deixava-a com um gosto amargo na boca.
E se alguém tivesse uma infeção auditiva? E se alguém tivesse tossido para o bucal? E se alguém tivesse caspa? Não, era coisa que evitava até não ser já evitável.
Distraiu-se a olhar para as pequenas gotículas que se acumulavam nas paredes de vidro do cubículo. Talvez uma chuva miudinha, tímida, um molha-parvos que apenas serviria como lembrete de que estavam na época fria, talvez até cacimba. Distraiu-se por instantes a fazer corridas de gotas de água, algo trivialmente nostálgico que lhe deixava margem de manobra mental para distrair os nervos espicaçados e finalmente digerir os últimos eventos da emaranhada trama “As Desventuras e Tribulações da Ala dos Mecanizados: os parvos fazem parvoíce (outra vez)”.
Ainda bem que não escrevia radionovelas. Era horrível com nomes.
Folgara em encontrar Silas vivo e inteiro, ainda que um pouco abalado, ao chegarem ao seu quarto há meros minutos atrás. Marise não o conseguira admoestar com a firmeza que gostaria – parte por saber que a culpa também recaía em si – e limitara-se a desfiar o rol de perguntas da ordem: como estás, já te sentes melhor, tens a certeza que estás em condições de sair. Surpreendentemente, Silas respondera afirmativamente a todas, ainda que não ocultasse um resquício de temor na voz e nos gestos incertos.
Ele estava pronto para sair, seguro de que não lhe iria acontecer nada de mal. Mas para tal, havia algum trabalho de background a fazer.
Uma voz feminina soou do outro lado:
— Irina?
— Olá, tia!
A excitação na voz da mulher era quase palpável, quase como se estivesse ali com ela, e não numa mansão recôndita a quilómetros de distância.
— Querida, minha menina! Desculpa nunca mais ter dito nada, peço tantas desculpas, mas tenho andado tão ocupada! Isto tem estado um rebuliço por estes lados.
— Imagino! Como correu a… excursão da Madalena?
— Portou-se lindamente, que orgulho! Devias tê-la visto, tão segura de si nos seus negócios, uma mulher feita! Ah, queria mesmo que tivesses ido com ela, eram capazes de se ter divertido, as duas! E o litoral está lindo a esta altura do ano!
— Fica prometido que da próxima vou. Escuta, tia, sabes porque é que te estou a ligar?
A mulher ficou silenciosa por uns segundos, como se perscrutasse a memória pela resposta à pergunta. Ela esperava o pior, sempre o pior, e Irina cogitava agora que talvez não devesse ter fraseado a tentativa de suspense daquela maneira. A sua voz desceu, agravou-se, numa frase muito ponderada:
— Porquê, querida?
— Vou sair amanhã!
Agora afastava o auscultador do ouvido, não por repulsa de germes alheios mas porque o guincho da senhora do outro lado lhe daria direito a mais uma estadia no hospital, se não se precavesse.
— Tão cedo? Que maravilha, o tempo passou tão depressa! De manhã, certo? Vou mandar o Marco preparar as coisas! E os teus amigos, que tal vão?
— Isso era outra coisa de que te queria falar. Lembras-te do Silas? Bellavance?
— Sim, o menino que se queria livrar do irmão, não é?
— Esse. Vai sair amanhã comigo. Portanto aquele nosso esquema tinha de ser posto a mexer o mais rápido possível.
— Sim, sim, casar-se com a menina Teresa… Ascolana? Um bom nome para adotar, tem peso, valor. Não tão soante como Federici — Irina escarneceu, a mulher soltou um pequeno riso de volta. Tomou um tom pensativo, algo distante — mas enfim, é compreensível.
— Só há um pequeno problema, tia — era quase uma súplica estrangulada. A tia não reagiria mal, mas sentia que estava a exigir demasiado — a Teresa não vai ter alta connosco. Conseguimos fazê-lo à mesma, sem muito estrilho?
Ouviu uma pausa preenchida no outro lado, um “hmmm” que se prolongou enquanto a senhora assimilava as novas condições. Irina quase a via como se estivesse de volta à Caleana Major, na sala comum – a tia fixava um ponto, e toda a sua mente trabalhava em sincronia como uma máquina bem afinada, juntando pessoas, lugares, variáveis, favores devidos e favores prestados como peças de um enorme, convoluto puzzle. Os seus indicadores moviam-se discreta mas rapidamente ao sabor dos seus pensamentos, assemelhando-se à batuta de um maestro.
Não era muito longe da realidade – a atual líder Federici era a maestra da mais minuciosa orquestra em que alguma vez tocara. Nos seus negócios habituais, uma discreta nota desafinada poderia ser o fim do concerto – e cabia à senhora substituir o azarado tocador duas músicas antes do erro.
Irina entretinha aquela analogia muitas vezes. Nela, considerava-se apenas a tocadora de ferrinhos, aquela cujo tinir adicionava uma certa graça à melodia, mas cujo dislate lhe valeria apenas um olhar austero por parte dos colegas. Em iguais partes ansiava e temia o dia em que se tornasse contrabaixo, violino ou flauta.
— Pronto, já sei — soou a tia de repente, impelindo de novo Irina para o assunto a resolver — não te preocupes, vou já falar com quem é devido, ir buscar quem nos ajude, que é tudo boa gente. Temos de confiar nas pessoas, Irina, é o que eu te digo. Mas essa confiança deve ser igualmente frágil e inabalável. Se nunca te fizerem nada que te desrespeite, deve ser constante, a única constante neste mundo de incertezas. Porém, deve estar preparada para se dissipar se necessário.
Já ouvira aquele discurso vezes sem conta, mas a sua tia insistia em repeti-lo em toda a ocasião que achava propícia; era um mantra Federici, compreendia essa parte, mas notava na senhora algo como uma preocupação mais profunda; não era apenas uma doutrinação acéfala, o que lhe dizia era apenas para que nunca se visse em perigos desnecessários, em desgostos evitáveis e crises improfícuas. Era um conselho genuíno.
— Eu sei, tia. Não precisas de te preocupar, está tudo tranquilo por estes lados. Em matérias de confiança e tal. Tudo bem.
— Prezo em saber, querida. Mas deixa-me só dizer-te uma coisa — a sua voz voltou a baixar para um tom de secretismo — tu sabes que há maneiras mais fáceis de resolver isto.
— Tia…
— Escuta, estou só a sugerir! — E voltou para o seu tom jovial — Não estou a dizer que o vosso é um mau plano, pelo contrário, mas… se o problema é o irmão, porque não cortar o mal pela raiz?
— Não é nada que eu já não tivesse pensado.
Mas nunca tinha sequer sugerido a Silas. Era uma ideia que se agarrara à mais recôndita parte da sua mente a partir do momento em que, numa fatídica noite, a história saíra em hesitações estranguladas da boca do rapaz que nem a olhava, nem a si nem a Teresa, enquanto tentava por palavras atenuar o imperdoável.
Teresa rosnara em resposta, os nós dos dedos alvos de os apertar em punhos cerrados. “Eu mato esse gajo se o encontrar Silas, juro-te que sim.” Notara nos olhos do rapaz que ele ponderara a ideia, saboreara por meros segundos a simples cogitação – mas rapidamente esta se desfez. Silas disse-lhe apenas que esquecesse isso.
Por isso não acrescentou as suas próprias ponderações, ainda que dançasse nelas de vez em quando: “Matá-lo, que desperdício. Com tanta gente desarranjada por este mundo fora, que ficaria a dever favores em catadupa a quem lhe trouxesse uma cobaia de que ninguém sentisse a falta – matá-lo é má tática. Rasgar-lhe a carne é tão fácil como torcer o pescoço a um coelho. Rasgar-lhe a alma já é um desafio mais à altura.”
Calou-se, sabiamente. Acreditava piamente que Silas era fundamentalmente boa pessoa, e boas pessoas não costumam reagir bem a esse tipo de propostas.
— Não, ele não alinhava numa coisa dessas. E eu não vou fazer isso nas costas dele.
— Sendo assim, respeito os teus desejos e os dele. Amanhã aí estarei — mas parou por uns instantes, antes de acrescentar — mas posso ao menos pôr um pouco de segurança em volta do rapaz? Nada de muito sério, só por precaução.
— Está bem, desde que não seja mesmo nada de maior! Bem sei como é que as tuas “precauções” são.
— Isso, chama-me mãe-coruja! — Riu-se — Mas sabe que estas preocupações têm razão de existir!
— Eu sei. E confio em ti. Obrigada, tia.
— Minha menina, não tens nada que agradecer. Guarda as lágrimas para amanhã, e vê se dormes! Vamos ter um dia ocupado.
— Até amanhã, então. Dá um beijo à Madalena por mim!
— Considera-o dado! Até amanhã, Irina!
Pousou o auscultador no gancho. Carregou num botão enferrujado na lateral do telefone, mas este não lhe dispensou quaisquer moedas de troco. E com o visor avariado, era-lhe impossível saber se tinha gastado os seus minutos à conta ou se o aparelho tinha simplesmente mais achaques do que aparentava. Acabou por não se preocupar com ninharias e sair do cubículo, tapando os braços descobertos com as mãos.
Algum dia contar-lhes-ia tudo.
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