Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 19
Medo




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Dominic já não sabia sinceramente o que sentia.

Queria admoestar-se por se sentir só, por dizer a si mesmo que a solidão e o sentimento de não pertencer a lado nenhum o estavam a comer vivo e a destruir-lhe o que quer que restasse de uma identidade própria que já não conhecia, mas não queria ser dramático.

Não pertencia ao grupo de Irina. Não pertencia aos Puritanos.

Não pertencia a Lucas. Não pertencia a nada.

Parte de si queria simplesmente mandar tudo aquilo às heras, assinar os papéis para sair do Hospital Magno, cancelar a operação e voltar a Diavena. Nunca mais veria Irina, ou Teresa, ou Silas, portanto nunca mais se preocuparia com a sua desaprovação. E, quem sabe, teria um resquício de oportunidade de se reintegrar na sua antiga casa.

Mas não conseguia. Ele já não era Diavena, já não era um Puro – ao menos sabia isso sobre si mesmo, ainda que fosse pouco e nada reconfortante. Não conseguiria passar o resto da vida a fingir a si próprio, aos outros, a Lucas que acreditava naquilo. Já não era Diavena, mas não conhecia nada que não fosse Diavena. Era pedir para sofrer.

E a outra parte, o que lhe restava? Fingir que estava tudo bem, ir com Teresa à sua antiga terra, regressar a Rorise. Aquele grupo certamente não o acolheria, agradecer-lhe-iam vagamente pela ajuda e seguiriam cada um o seu caminho. E se Lucas realmente o aceitasse? Estaria a condená-lo a sair do único sítio que conhece para se mudar para a grande cidade sem quaisquer perspetivas de futuro.

Às vezes detestava-se.

A inquietude agora dava-lhe para andar, mexer-se e remexer-se, pelo que se levantou da cama e atravessou o quarto a passos largos, olhando brevemente para os seus poucos pertences – uma pilha de roupa, parte emprestada pelo Hospital, pousada numa das duas cadeiras junto à mesa de canto; os pacotes de bolachas e sumos que lhe sobravam das refeições a cobrir um canto do tampo da mesa; os medicamentos em frascos laranja transparentes, etiquetados com a caligrafia da enfermeira de cabelos negros.

A máquina ao lado da sua cama ronronava. Mostrava no ecrã verde opaco números que não percebia e avisos a piscar.

Olhou para a porta. Virou-lhe costas e sentou-se à janela.

A tarde findara com as nuvens negras a desaparecerem em manchas e fiapos, dando lugar a um céu noturno de poucas estrelas e uma lua minguante. Aquilo era pior que não sentir nada. Não podia cair em apatia outra vez?

Estava meio absorto em nada quando distinguiu passos a aproximar-se do seu quarto. Eram passos pequenos, que deslizavam no chão – não os de Marise, cujo código de vestuário a obrigava a usar aquelas socas de plástico de guinchavam e alertavam qualquer conhecedor da sua presença.

A sua porta estava encostada, mas a pessoa de meias ainda assim bateu antes de a entreabrir. Dominic não se virou; não precisava.

— Agora não, Irina, estou um bocado na merda — resmoneou. Esperava ouvir o guinchar da cama quando a rapariga se atirasse para cima desta e o inquirisse sobre o que se passava, mas a resposta chegou-lhe diferente do que lhe era familiar.

— Então? Parecias bem ainda há bocado.

Virou-se de um pulo para confirmar que não era Irina que estava à porta mas Silas, dividido entre entrar e manter-se à porta, ainda de olhos levemente raiados a sangue.

— Silas, oi. Não sabia que eras tu, ehm… como estás? — Mas logo se apressou a acrescentar — Ah, desculpa ter-me metido naquilo, não era suposto estar lá quando…

— Não faz mal. Desde que não uses nada do que sabes contra mim, não me podia estar mais a lixar — o outro deu de ombros — e estou melhor, obrigado. Se bem que também estou um bocado na merda, sinceramente. Posso?

Acenou-lhe quase impercetivelmente com a cabeça. O outro aproximou-se lentamente – talvez a medo, talvez por hábito –, puxou uma cadeira vazia e arrastou-a para o pé de si. Sentou-se em silêncio a seu lado a olhar para a paisagem noturna, a piscar de desconforto à fraca luz dos candeeiros de rua e veículos lá fora.

Dominic queria encostar a cara numa mão, criar uma barreira meramente simbólica para tornar o momento menos inadequado. Ele não era Irina, nunca tivera uma conversa de mais de um quarto de hora com ele e não sabia o que lhe podia dizer ou por onde começar.

— Desculpa — Dominic conseguiu dirigir-lhe de um só sopro, arrancando ao outro uma expressão repentinamente confusa.

— Pelo quê? O que é que fizeste? — Silas tentava ocultar uma ansiosa inquietação na voz, como se estivesse à espera de outra má notícia.

— Não, nada, é só que… — apressou-se a clarificar, ainda que nem soubesse o que dizer. Detestava-se — não sei. Parece que estou a forçar um bocado a minha presença convosco. Nunca foi a minha intenção, nunca vos quis chatear mais desde que… aquelas merdas aconteceram. Desculpa. Só não vos quero aborrecer.

Reparava agora em Silas o quão expressivo o rapaz conseguia ser, ainda que tentasse atenuar-se sob um véu de indiferença. Normalmente o dos cabelos brancos lograva, quando queria, parecer ocluso na sua própria falta de interesse, mas começava-lhe a notar as torções tímidas ao canto dos lábios, o cerrar de sobrancelhas, a forma como os olhos dardejavam sob a paisagem urbana, absorto nos seus pensamentos.

— Do que é que tens medo, Dominic?

A pergunta apanhou o rapaz de surpresa. Notou que o outro agora o olhava fixamente, tomado de uma curiosidade que não se preocupava em esconder. Fitou os próprios joelhos, as arestas do rodapé, evitou fixá-lo de volta.

— Porque é que perguntas?

— Só quero testar uma hipótese — Silas deu de ombros — não sei ao certo até que ponto é que a Teresa te contou as minhas tretas, mas tenho a certeza que já sabes bastante sobre mim. Portanto, faz-me este favor: do que é que tens medo?

Dominic engoliu em seco.

— De demasiada coisa. De voltar a Diavena, de não voltar a Diavena. De ficar cá, de nunca me chegar a ambientar a isto, de acabar por ceder e voltar, de ser morto por eles. De viver infeliz, de não sentir nada, d—

Não. Não, já chega. Não podia fazer isto. Era manipulador, era auto-flagelador, era ridículo. Não queria que Silas ficasse por pena, ainda que tivesse a certeza de que não ficaria por nenhuma outra razão.

— De?

— Nada — resmoneou, voltando a sua atenção novamente para a janela. Só queria que aquela conversa não tivesse sequer começado.

— Vá lá, Dominic. Isto estava a correr bem.

— Não interessa, está bem? Não me leves a mal, mas a sério que não é importante. Esquece.

Quando Silas se levantou da cadeira a seu lado, Dominic sentiu algo pesado, oco, a afundar-se-lhe no peito. Chegava a repudiar a maneira como afastava as pessoas – era quase como uma mestria, refinada ao longo dos anos para o manter numa bolha de solidão provavelmente merecida.

Mas em vez do guinchar da porta a abrir e voltar a fechar, o que lhe chegou à atenção foi o abafado som de algo a cair sobre um colchão e um tinir metálico agudo.

— Ai, cacete — ouviu Silas resmonear. Virou-se a tempo de ver o dos cabelos brancos deitado ao largo na sua cama a olhar para o teto e a girar o pulso à mão metálica, que chocara acidentalmente contra o estrado da cama.

— Porque é que vieste cá, Silas? — Arriscou. Se o rapaz não se tinha já ido embora, duvidava que uma pergunta fosse o gatilho da sua perda de interesse.

Além disso, precisava de perceber. Não conseguia ver a expressão de Silas no seu silêncio sem resposta. Manteve-se sentado à espera do que inevitavelmente se seguiria.

— Não desgostei de ti, apesar de tudo — respondeu. Não distinguia que emoção o outro imprimia às palavras; parecia-lhe monocórdico, de repente — sim, eras uma merda de pessoa, mas tinhas potencial para mudar, e mudaste. Tirando aquele primeiro contacto mal-amanhado na biblioteca, não tenho razão de queixa tua. E sabes que mais? Era uma pena que agora saíssemos do hospital e nunca mais nos víssemos.

Dominic levantou-se e dirigiu-se à cama, onde o outro coçava um olho com a mão de metal. Sentou-se a seu lado sem uma palavra e Silas prosseguiu:

— Não tens de aceitar. E não esperes grande coisa de mim, mas se precisares de ajuda em Rorise…

— Espera. Queres dar-te comigo, mesmo lá fora? — A ideia soava-lhe tão estranha, tão improvável. Queria lançar-lhe outra enxurrada de “porquês”, mas conteve-se ao ouvir o outro a rir.

— Sim, homem, que lentidão a compreender! — Atirou-lhe com um sorriso — Não andei a servir-te de porta-copos para agora nunca mais te pôr a vista em cima!

Num gesto impensado, Dominic alçou o coto do braço para apanhar a almofada e arremessá-la – só depois se apercebeu de que não funcionaria e retraiu-se novamente. Silas notou-lhe a tentativa – continuava a sorrir-lhe puerilmente.

— Vais-me fazer pagar por esta quando tiveres as próteses, não vais? — Silas lançou-lhe. Dominic assentiu e alçou os pés para cima da cama, pontapeando-lhe a perna de leve.

— Quando menos esperares, garanto-te. Vai chover vingança — atirou-lhe de volta.

Assim que o disse, notou no rapaz um brilho malicioso nos olhos – mas quando se preparava para o inquirir sobre isso, em tom também acídulo, Silas jogou-se para a cabeça da cama e alcançou a almofada, arremessando-a às suas costas.

Dominic tentou apoiar-se nos cotovelos e roubar-lhe a almofada a tempo de contra-atacar, mas caiu para o colchão com um guincho estrídulo enquanto Silas aproveitava para o golpear nos ombros e nas costas dobradas.

— Injustiça! Afronta! — Gritou-lhe. Queria soar minimamente ameaçador, se era que tal seria possível, mas o ataque de riso a borbulhar-lhe no peito não lhe permitia nada senão uma fraca tentativa de desviar os ataques do outro — Estás tão fodido, Silas, eu juro-te!

— Ameaças, Zisaro? — a forma como pronunciava o seu nome tornava-o quase um silvo — já vou um bocado tarde para ter medo de ti, não achas?

Num piscar de olhos conseguiu prender a almofada entre os joelhos num aperto firme; se não lhe conseguia devolver a amabilidade, ao menos que não a prolongasse. Após dois ou três puxões tenazes, Silas desistiu, escarneceu e apontou-lhe para o cabelo com a mão metálica. Provavelmente estava pior que desgrenhado, o seu ondulado normal desfeito no que pareceria um texugo morto agarrado à sua cabeça.

— Desceste tão baixo — Dominic sabia que tinha um sorriso estampado no rosto que insistia em não desaparecer. Silas voltou a deitar-se.

— Sim, tenta fazer-me acreditar que estás chateado. Pessoas à beira de um ataque de raiva não têm essa cara de criança de três anos num parque de diversões.

Soltou um esgar de riso e deitou-se também, mantendo uma considerável distância entre eles. O silêncio voltara a instalar-se – mas desta vez era confortável, uma desnecessidade de palavras que preenchesse um momento já de si completo. Ouviu Silas a respirar fundo e a bocejar.

— Vou sair amanhã, eu e a Irina — disse, numa voz já sumida — fica com a Teresa. Ela é boa pessoa, apesar de bruta quanto baste. Quando saírem, nós vamos ter convosco. A partir daí logo pensamos o que vem a seguir.

E o que vinha a seguir assustava-o tremendamente, mas até aqueles rebuscados planos – se é que lhes poderia sequer chamar planos – reconfortavam-no. Pelo canto do olho notou a expressão de Silas a atenuar-se, os olhos semicerrados e as mãos a distender-se.

— Tens medo de ficar sozinho — Silas murmurou-lhe em surdina — não tens de ter.

Não lhe disse mais nada. Ficou a ouvir o ronco distante das motorizadas lá fora e a respiração leve, próxima, de alguém que talvez pudesse considerar um amigo.


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