Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 15
Parémia do Desapego


Notas iniciais do capítulo

Então... não consegui acabar a história a tempo do desafio ;^; Mas! Vou continuá-la até a acabar de qualquer forma, que não tinha qualquer interesse em deixá-la ao abandono (mais que não seja depois de tanto tempo e trabalho que já deu :B).
Obrigado outra vez a todos os que acompanham, favoritam e comentam! O vosso feedback é super importante para a continuação da história, e agradeço imenso por lerem :'D E como sempre, espero que gostem! o/



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O céu era de arrebol, os seus olhos raiados a carmesim.

O rapaz de cabelos brancos perscrutava o teto do quarto, descascado e com pontos de humidade, enquanto se encostava à porta trancada. Eram quase sete da tarde. O seu tormento começaria dentro de pouco.

Os olhos deslizaram para a janela por onde passava uma brisa suave, e pensou que daria tudo para que aquele momento pausasse, congelasse no tempo, nem recuasse às mágoas passadas nem corresse para o incerto futuro que tanto temia. Havia apenas uma coisa garantida.

Os pulsos ainda lhe doíam. Os braços, nem tanto.

Não tinha saído de casa nos últimos dias, ignorado as pedrinhas jogadas à sua janela pelos amigos preocupados, usado roupas largas e mangas compridas para esconder de si mesmo aquilo que sabia lá estar. Olhava muitas vezes para o faqueiro na cozinha, o armário trancado dos medicamentos, a janela. A janela era a que lhe soava mais apetecível. Tão simples. Uma fração de segundo apenas.

Ouviu o clique da porta da frente a abrir. Cerrou os olhos. Talvez se desejasse com força suficiente…

Sil? Onde estás?

…nada aconteceria.

— Aqui — respondeu, levantando-se molemente. Encostou o peso do corpo à porta enquanto a destrancava, tentando abafar o som. Saiu do quarto a passos curtos, e quando olhou para cima lá ele estava.

— Tinhas a porta do quarto trancada, Sil?

A voz era tão apaziguadora, tão solene. A alguém de fora, pareceria até uma melodia de amor fraternal. Para si, era a orquestra dos seus pesadelos.

— Não — mentiu-lhe em fraco murmúrio. O outro não acreditou, sabia-o. Estremeceu ao ver a mão dele a levantar-se, mas nada de dor, ardor ou grito. Apenas um esgar de riso condescendente.

— Ainda bem — a mão desceu-lhe ao rosto, numa carícia leve — não tens necessidade de te esconderes. Sabes disso, não sabes?

— Sim — assentiu, a pele hipersensível ao toque, todos os seus sentidos alerta. Tentava conter o medo trémulo que lhe arrepiava a nuca, mas tinha a certeza que o outro tinha notado.

— Sabes que se não saíres de casa, as pessoas vão começar a estranhar, não é? — E sentiu a palma a endurecer, os dedos a cravarem-se tão levemente na sua maçã do rosto.

— Só não queria que vissem…

— Arranja uma maneira. Tapa-te. Mas não atraias atenção — a voz também lhe endureceu quase impercetivelmente, emoldurada depois de um sorriso, enquanto lhe deu uma palmadinha amigável, baixou o braço e virou as costas — não queremos gente coscuvilheira em cima de nós, Sil. Não precisamos. Estamos bem.

Estamos bem.

Quando, mais tarde, já longe e aparentemente seguro do tormento que era o seu irmão, se debruçava a pensar na linha de interações que tivera com ele, apercebera-se como tinha sido simples a maneira como o outro o controlara; a violência era sempre abruptamente intercalada com simpatia, e vice-versa. Quando baixava a guarda por notar no outro traços de bom humor, uma dor aguda atingia-lhe a face, uma voz tal silvo a assobiar-lhe porque é que não tinha lavado a loiça, feito um recado que ele lhe havia pedido ou algo absolutamente trivial do género. Quando se encolhia sobre si, a pedir desculpa em murmúrios amedrontados, as lágrimas já a queimarem as suas faces, o frio a descer-lhe sobre o corpo num pânico surdo, o outro acalmava, aproximava-se dele com uma mão nas costas.

Desculpa, Silas, desculpa. Foi sem querer, sabes que perco a paciência. Não me abandones, por favor, não fiques zangado. Só nos temos um ao outro, Silas, não podemos deixar que isto nos abale.”

Se tentasse falar do assunto mais tarde – coisa que deixara de tentar depois de duas investidas, cada uma com pior resultado que a outra, as faces do irmão voltavam a endurecer. “Falas como se tivesse sido o fim do mundo. Por favor, foi um tabefe. Hás de ter de aturar muito pior lá fora. És demasiado mole, Silas. Vê se acordas.”

Esse quase cândido aviso tinha sido a primeira vez. A segunda não envolvera tantas palavras.

Naquele momento, no entanto, não tentava descortinar nenhuma das maquinações mentais que ele exercia sobre si. Só queria que aquele ponto baixo da montanha-russa acabasse, para chegar o mais rápido a um ponto alto. Os pulsos doíam-lhe.

— Sim, Addel, desculpa. Amanhã vou lá fora.

— Ainda bem. Estamos a precisar de umas quantas coisas para casa, vou deixar-te uma lista. Vamos ver se desta vez te lembras.

Por favor, que aquele silvo não fosse outra descida.

E graças a tudo, não tinha sido. Addel bufou e retirou-se para a sala, jogando pelo caminho o casaco para uma das cadeiras do corredor de paredes cobertas de brechas e buracos na cal. Todas as suas roupas estavam impecáveis, apesar de serem o género do vestuário que visam parecer propositadamente descontraídas, descuidadas até. Combinavam consigo, notou – o irmão era aquele género de pessoa lá fora, descontraído, de sorriso fácil e gestos sempre calorosos. Silas era o contrário: assemelhava-se a um roedor, nos gestos bruscos e fugidios, nos modos antissociais e desconfiados. As pessoas nunca suspeitariam de que fora o caloroso rapaz que o tornara assim. Addel era inocente aos olhos dos outros.

Addel dizia “só nos temos um ao outro”, mas ele sabia que isso significava, eufemisticamente, “tu só me tens a mim”. Quando lhe afirmava, como se se tratasse de um qualquer discurso motivador da união familiar, que ninguém lá de fora os ajudaria, Silas lia-lhe nas entrelinhas o que ele realmente significava.

Ninguém lá de fora te vai ajudar.

Estás sozinho, Silas.

Voltou a fechar a porta atrás de si, a visão enevoada novamente pelo choro iminente. Detestava-se. Detestava não ser forte o suficiente, não conseguir responder-lhe, não conseguir lutar de volta. Irónico era que provavelmente até tinha a força física suficiente, mas o medo atrofiava-o. Nunca o saberia, estaria sempre amedrontado, seria sempre um cobarde. Um inútil. Se calhar até era melhor assim; começava a odiar-se mais do que odiava Addel. Começava a perguntar-se se não mereceria.

A janela convidava-o, os vidros a deixar passar a claridade fulva por entre os prédios que o rodeavam tal barras de uma jaula. Limpou os olhos na manga e aproximou-se a passos lentos, como se se tentasse aproximar de um qualquer frágil, fugidio animal selvagem, que escaparia assim que notasse a sua presença. Seria a morte assim tão fugaz? Não, mas a sua coragem era, e precisava de cautela para ela não se lhe desvanecer novamente por entre os dedos.

O coração pulsava-lhe na garganta, os passos mais firmes. Conseguiu levantar um braço, trémulo, dorido, e abrir o fecho de vidro tão devagar, como se o mais pequeno guincho pudesse alertar Addel. Puxou o fecho e as portadas abriram, deixando entrar uma leve brisa quente. Era o momento perfeito. Era memorável, até. Uma linda tarde para tudo acabar, o final perfeito, o último acorde da orquestra, o final da montanha-russa.

E, de repente, sentiu o estômago a revoltar-se, a sua fugaz coragem a escapar-se-lhe novamente, e foi invadido pela maior repulsa que jamais havia sentido. De si próprio, de nunca conseguir agir em situação alguma, de se deixar protelar naquele limbo de existir sem viver, sob a sombra do irmão que o controlava tal marionetista. Ninguém sentiria a sua falta. Ninguém sequer daria por ela.

Foi esse o empurrão final, o passo que conseguiu dar para agarrar a coragem entre os dedos, para saltar da janela. Lembrou-se de achar que estaria um pôr-do-sol magnífico, julgando pelas cores de aquarela do céu, não estivessem os prédios a cobri-lo.

Era um terceiro andar de um prédio velho. O corpo dobrou-se sobre si mesmo na queda, as mãos distenderam-se sem sequer se aperceber. Uma delas aproximou-se demasiado das paredes do edifício, onde um fragmento partido, afiado em bico, de calha de escoamento de ferro se lhe enfiou no pulso. Um grito lancinante cortou o ar quando a sua queda foi retardada pelo rasgar dos seus tendões, enquanto a calha guinchava e cedia, caindo com ele.

A queda acabou por não o matar. Estava inconsciente quando o seu grito atraiu uma pequena multidão à sua volta, uma senhora conhecida que gritou por ajuda, uma médica de olhos verdes que por acaso lá passava que lhe conseguiu estancar o sangramento, um ardina que abandonou o seu posto para ir a uma loja chamar uma ambulância com os poucos trocos que havia juntado. Não conseguiu ver a médica a notar algo de relance no seu pulso são, a puxar discretamente a sua manga para lhe descobrir o negror profundo dos seus hematomas recentes. Não a viu a cruzar olhares com Addel, que só tardiamente se apercebeu do tumulto em frente do prédio, desceu as escadas e se aproximava a passo rápido, ao mesmo tempo que a ambulância chegou a rugir fumo negro para o ar urbano. A mulher disfarçou as suas impressões com um véu de distração, fingiu não notar a voz do rapaz que a urgia que esperasse enquanto empurrava a multidão circundante, que lhe gritava que aquele era o seu irmão. Ergueu o se corpo inerte e pousou-o dentro da ambulância, disfarçando a urgência na voz enquanto dizia aos paramédicos que partissem imediatamente.

Não sabia quanto tempo havia passado até que acordou, num quarto de hospital que cheirava a desinfetante e calor. Marise remexia nas pequenas garrafas de vidro com líquidos translúcidos que cobriam o tampo de um carrinho de metal. Olhou-o, e lançou-lhe um sorriso aliviado.

— Olá. Silas, certo? Consegues falar?

Demorara a responder, tentando acordar a sua consciência por completo. Antes que a expressão da médica pudesse notar sinais de preocupação novamente, ele assentiu.

— Olá. Sim.

— Folgo em ver que já acordaste. Vou deixar-te descansar mais algum tempo, mas quando te sentires melhor gostava de conversar contigo. Posso?

Ele ponderou, os olhos ainda inchados de tanto tempo sem uso a acostumarem-se à luz, a tentar forcar a figura esborratada dela. Acenou ao de leve com a cabeça.

— Sim. Pode.

— Perfeito. Vou mandar um enfermeiro para terminar a tua medicação e para ficar aqui contigo. Quando te sentires melhor, manda-o chamar-me, sim?

Assentiu novamente. Perscrutou-a com os olhos enquanto ela se aproximava, transmitindo-lhe segurança através do olhar e dos gestos firmes, apesar de não sorrir. Ela apertou-lhe o braço levemente, perigosamente perto do lugar onde antes tinham estado as marcas negras, o género de carícia que o atemorizaria numa situação normal em casa — um prenúncio de violência. Mas não houve descida da montanha russa, lado inverso da moeda. Apenas a sua voz soante.

— O que quer que tenha acontecido, estás a salvo aqui — assegurou-lhe — qualquer coisa que precises, por favor diz-me.

E voltou a levantar-se sem esperar por uma resposta. Já na berma da porta, virou-se para trás e atirou, antes de sair:

— Não te assustes com a tua mão. É mecânica agora, não conseguimos recuperar a mobilidade dela então foi substituída. Tudo comparticipado.

O resto tinham sido palavras soltas. Falou com Marise, assim que a sua mente clareou e o seu medo se foi gradualmente dissipando. Ela ouviu com uma expressão séria, a mão sempre pousada na sua. Palavras como maus tratos premeditados e continuados, ordem de restrição, proteção do Estado dançaram-lhe nos ouvidos, como indícios de uma situação tão bizarra, tão longe da realidade, que se perguntava se a sua massacrada mente não tinha criado toda aquela situação como escape. Era um sonho, uma ilusão na qual havia mergulhado enquanto o seu corpo em piloto automático ainda estava algures no bairro, trancado no quarto de costas para a porta, no chão da sala com o lábio a sangrar, de olhos vazios de presença, talvez um coto no lugar de uma mão. Foram pensamentos paranoicos deste tipo que lhe valeram o novo par de palavras: acompanhamento psicológico.

A pouco e pouco, Ala dos Mecanizados tornara-se um lar. O sítio onde deixara de se preocupar se uma mão no seu ombro significava raiva disfarçada, no qual encontrara uma família. Uma família que, sorria sempre ao lembrar-se, a médica de olhos amendoados lhe tinha dado oportunidade de começar.

A mesma família que agora a mesma médica prometia arrancar-lhe.

A sua vida era uma montanha-russa, quer quisesse quer não. Com o irmão, as subidas eram íngremes e as descidas a pique, um rol contínuo e incessante de felicidade efémera e dor abrupta. Com Marise, agora se apercebia amargamente, a montanha russa continuava lá; mas as subidas eram mais lentas, embalando-o numa falsa sensação de segurança. As descidas, novamente a pique.

Não havia maneira de escapar.

Estás sozinho, Silas.

Nunca devia ter baixado a guarda.


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