Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 1
Voz




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Conseguia ainda ouvir o eco das sete badaladas.

A cabeça palpitava-lhe com uma leva de imagens difusas, cores, luzes, um murmurar incessante, incansável. Distinguia a sirene distante da lota, barulho de sapatos a raspar no chão de calcário, sons que se assemelhavam, aos seus sentidos irritados, a unhas num quadro negro. E uma voz, que se elevava acima de tudo, a soar-lhe nítida e clara como um dia de primavera.

O ser humano é um ser natural por excelência.

A voz parecia definir o espaço envolvente, que passava de borrões indistintos a paredes folheadas a dourado, imponentes estátuas alvas de pessoas veladas a fitarem-no com os seus olhos de pedra, aos quatro cantos de um magnânimo salão de teto em cúpula de vidro.

Durante eras temos considerado nosso dever manipular o meio natural, a vontade superior, sem quaisquer preocupações para as consequências e oh, são tantas, não são?

Sabia agora que estava em pé, rodeado por filas e filas de pessoas até perder de vista. Alinhadas, soturnas, compenetradas, os olhos fixos num altar cujas orlas de mármore fulvo e panos de cetim pendurados de ponta a ponta apenas agora se começavam a formar na sua memória danificada.

Quando o detalhe chegou ao orador no centro do altar, a voz ganhou finalmente um corpo.

O que nos trouxe toda esta inovação? Guerras por éter, hordas de pirataria, desordem, caos. O ser humano nunca foi tão pouco humano. E, como se esta desumanização não bastasse, ainda nos tentam afastar mais de nós ao tentarem fazer de nós metal!

Os olhos de pardal do homem grisalho envergando grossas vestes negras raiadas a desenhos em dourado pareciam faiscar de uma intensidade feroz. Sentiu um arrepio frio a subir-lhe a espinha, as palavras cáusticas do homem a picá-lo tal agulhas.

Só se apercebeu que as mãos se lhe tinham fechado num punho cerrado quando outra mão pousou na sua.

Os antigos utilizavam partes humanas para substituir partes humanas. Um pulmão humano por um pulmão humano, um rim por um rim, um coração por um coração. Mas depois, começaram a inserir dispositivos nos nossos corpos, e foi aí que tudo mudou.

Não sabia dizer se o seu coração — orgânico, vivo — tinha descansado ou disparado no momento em que se virou para olhar o sorriso apaziguador do rapaz a seu lado.

Aparelhos para ajudar o coração a bater, ligamentos de metal para ossos permanentemente fraturados, bandas gástricas. Do mal, encontravam-se nessas intervenções o melhor: ao menos os nossos órgãos continuavam a ser o fundamental, o orgânico auxiliado pelo artificial.

Até que veio o caos.

Sentiu a sua mão a ser apertada, distendeu-a para ele a envolver com a sua. “Calma”, leu nos lábios do outro, não podendo ele falar por cima do orador. Sorriu-lhe também, viraram-se novamente para o altar.

Urjo-vos a que repudiem à desumanização, companheiros! Corações de lata, espinhas de engrenagem, olhos de vidro! Quem serão vocês quando tudo o que vos torna humanos desaparecer?

Um som denso e oco envolveu a capela. A mão envolta na sua passou de calorosa a tensa. A multidão de faces indistintas olhou em volta, um vestígio de temor e um murmurar inquietante a assombrar o ambiente.

Até que, através do vidro da cúpula, algo tapou a luz.

Quando o artificial substituir o orgânico que há em vós, como podem clamar que são indivíduos, pessoas, criaturas naturais dignas do vosso lugar no cosmos?

O horrorizado grito do coletivo encheu a capela, silenciada depois pelo sufocante rugir da pedra a cair, o guincho do ferro a ceder e partir, o agudo do vidro grosso a quebrar e a chover sobre a audiência. A proa de um barco voador perfurou o cimo da cúpula, descia com estrondo, o pânico a fazer assemelhar-se a multidão a uma horda, que obstruía as altas portadas de madeira clara numa desenfreada tentativa de escapar.

Até que o rúbeo começou a manchar as tapeçarias.

Que importância darão vós ao templo que é o vosso corpo se este estiver maculado pela vermelha ferrugem?

O rapaz puxou-o pela mão para o lado contrário à atribulada entrada principal, pedaços de pedra e ferro a destruir os bancos a meros metros de si, fragmentos afiados de madeira a dardejar na sua direção. Quando levantou os braços para se proteger, já havia acontecido. Sentiu um calor líquido a descer-lhe pela face.

A dor só veio depois.

Se puderem os vossos membros ser esmagados e substituídos vezes sem conta, sendo eles meras partes descartáveis, não serão também vós descartáveis?

Soltou um grito lancinante e agarrou a cara, uma cascata de sangue a descer-lhe por uma das maçãs do rosto. O outro rapaz urgiu-o a segui-lo, depressa, por favor, os berros a perderem-se no caos.

A vossa vida tem a duração que o cosmos decidir. Tentar prolongá-la não só é uma flagrante exibição de arrogância humana, como algo que vos fará perder o vosso valor como indivíduos. Os vossos tecidos, órgãos, ADN, são únicos. As peças de metal?

E quando olhou para cima, pareceu-lhe que o tempo parou. Um fragmento de pedra, o dobro do seu tamanho, mesmo por cima de si.

As peças de metal são todas iguais.

Na sua voz ensurdecida pelo barulho, trovejou ao outro rapaz que fugisse, disparando na sua direção logo a seguir. A pedra colidiu com o chão, fê-lo perder o equilíbrio momentaneamente antes de retomar a fuga. Saltou por cima de um monte de escombros mas, no seu estado aturdido, aterrou mal no pé ao lado e caiu por terra, a cabeça a fazer ricochete no chão de mármore polido, os braços distendidos ao longo do corpo.

Cópias.

Sentiu que perdeu a consciência por alguns segundos. Quando voltou a abrir os olhos, teve um vislumbre enevoado do outro rapaz, a boca aberta num último grito surdo, os olhos raiados a vermelho e as lágrimas em catadupa.

Sem valor.

Pareceu-lhe ver uma sombra no chão. A sua cabeça estalava, os ouvidos zumbiam. Atirou os braços para a frente, a tentar içar o corpo e levantar-se.

A sua consciência deu de si. Ficou inconsciente no chão de mármore, a meio de fogo e caos, à espera de cumprir o seu ciclo natural.

Nasce, vive, morre. Orgânico, natural, livre.


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