Seus olhos não me reconhecem escrita por Last Rose of Summer


Capítulo 1
me beije como se quisesse ser amada, ser amada




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— Não olhe agora, mas…

Como sua melhor amiga, Bia já devia saber que Hannah era curiosa. Mais que isso, devia saber que reconheceria a risada doce e o reflexo dos cabelos pintados de roxo (ligeiramente desbotado, àquela altura) na janela. Devia saber que não conseguiria se segurar o suficiente para não olhar, e que olhar partiria o seu coração.

Lá estava Helena, ainda no uniforme do colégio, de mãos dadas com uma garota mais velha. E não era o “de mãos dadas” estilo amiga que ela de vez em quando fazia com Bia quando estavam andando juntas, mas o “de mãos dadas” estilo algo mais. Hannah conseguia ver pela linguagem corporal, pela maneira como estavam perto uma da outra, pela maneira como riam de alguma piada particular, que estavam namorando (ou, no mínimo, ficando).

Hannah sentiu seus olhos marejarem, e Bia pôs as mãos sobre as suas. Ela sabia que a melhor coisa era ficar sentada e fingir que não vira nada, continuar conversando como se nada tivesse acontecido, mas descobriu que não conseguia. Ela se levantou de repente (com mais barulho do que gostaria, era bem verdade) e saiu da cafeteria, sem nem se lembrar de pegar a mochila, deixando Bia para trás.

Hannah estancou na calçada, logo do lado de fora, e olhou para o céu. Era irônico que tivesse sido aquele o mesmo céu que ela comentara que estava bonito, menos de meia-hora antes. Agora o azul parecia zombá-la, só por ter o mesmo tom dos olhos de Helena.

— Hannah… — Mas ela não olhou para trás. Sequer se moveu quando Bia colocou uma das mãos em seu ombro. — Olha, eu…

— Deixa pra lá, Bia. — Hannah pegou a mochila (roxa, como os cabelos de Helena), e jogou de qualquer jeito nas costas. — Acho que vou pra casa.

— Você não tinha dito que queria aproveitar a tarde? É o último dia de aula antes da semana de provas, lembra? A partir de amanhã não teremos mais alma.

— Perdi a vontade. — Mordeu o lábio. — Acho que vou aproveitar o dia no meu quarto.

— Hannah… — E Bia suspirou, pensando no que fazer. — Vem pra minha casa — ofereceu de repente. — A gente pode fazer brigadeiro e falar mal da Helena.

Hannah riu e passou a mão pelo rosto, para enxugar as lágrimas.

— O cabelo dela está desbotado, já passou da hora de pintar de novo.

— Você viu aquelas unhas? Horríveis!

Bia deu um sorriso fraco, e então buscou a mão dela. Hannah, porém, não percebeu: estava distraída observando o interior da cafeteria, através das portas de vidro. O cabelo roxo de Helena ficava particularmente bonito sob o sol.

***

— Eu não entendo! — Hannah colocou a tijela de pipoca em cima do sofá, logo ao seu lado, para que pudesse gesticular. — As meninas desse filme só sabem gritar e correr para o lado errado! Estou quase desejando que elas sejam mortas logo, para que a ação continue!

Bia riu. Ela, particularmente, não se importava em assistir filmes trash. Não se importava se a quantidade de sangue era irreal, ou se as personagens eram estúpidas, ou se o som não se propagava no espaço e aquelas explosões nunca aconteceriam de verdade. Por isso (e por outras coisas), achava divertido que Hannah ficasse tão revoltada com os pequenos detalhes.

— Aposto que o filme não passa nem no teste de Bechdel! — Cruzou os braços sobre o peito, e deixou a cabeça cair no ombro de Bia. — Eu não sei como você consegue assistir filmes assim!

— Eles são divertidos. — Bia colocou um punhado de pipoca na boca, e continuou a falar antes mesmo de terminar de mastigar tudo. — Se eu fosse tão rígida com os filmes que assisto, acabaria não assistindo a nada. E… bem, cinema é uma das coisas que eu mais gosto.

— E eu não sei? — Hannah quem soltou uma risada dessa vez, mas era seca. Não porque achasse particularmente chato ir para o cinema, já que se divertia falando mal dos filmes, mas porque ainda não superara a cena que presenciara mais cedo. Mesmo que sua mente se desviasse do acontecimento por alguns minutos, acabava voltando para o coração partido. — Você já me arrastou para várias sessões de cinema, lembra?

— Não é como se você nunca tivesse me arrastado para lugar nenhum — retrucou. — Bienal do livro, eventos com escritores e até mesmo palestras feministas!

— Tudo muito educativo. E útil.

— Nem tudo precisa ser educativo. — Bia lançou um olhar para a amiga, que encarava a tela da televisão, mas não parecia enxergar o que estava acontecendo. — Ou útil — continuou — … ou certo.

Bia passou o braço por sobre os ombros de Hannah e puxou-a mais para perto. Não tinha segundas intenções, convenceu a si mesma, só queria dar um pouco de conforto para a sua melhor amiga.

— Bia?

Ela não respondeu, não havia o que responder. Ou talvez ela simplesmente não soubesse o que poderia dizer. Desde aquela cena no horário do almoço vinha se sentindo meio estranha. Ela sabia que Hannah gostava de outra garota e não nutria por ela nada além daquela amizade, mas não era como se pudesse avisar isso para o seu coração.

Vê-la tão abalada porque Helena entrara na cafeteria de mãos dadas com alguém fora como um golpe. Era ela com ciúmes dos ciúmes de sua melhor amiga. E, mesmo com toda aquela situação, ela não conseguia odiar nem a Hannah nem a Helena. Só odiava a si mesma. Ao próprio coração.

Ela se sentia como se estivesse num de seus filmes de romance.

Bia suspirou. O filme continuava passando na tela, mas nenhuma das duas prestava mais atenção. Hannah porque encarava, um pouco abobalhada, enquanto a sua melhor amiga chegava perto demais. Bia porque estava ocupada chegando perto.

E seu coração contra o meu peito...

— Bia? — A voz de Hannah saiu como um sussurro, fraca. — O que você…?

Bia a interrompeu. Era um movimento atrevido, já que não poderia saber se aquilo afetaria a amizade das duas, mas sentia que precisava fazer alguma coisa. Já fazia tempo que ela vinha esperando Hannah perceber a realidade — quase um ano! —, mas nada acontecia. Ela continuava olhando para outras garotas e se apaixonando por outras pessoas. Continuava olhando para ela somente como sua melhor amiga.

E isso doía.

Mais do que gostaria de admitir.

Bia tinha medo de sua vida não ser como um filme clichê e de não haver aquele momento mágico em que a pessoa que ela ama percebe que a pessoa que mais a ama sempre esteve ali do lado. Tinha medo de esperar por tanto tempo que Hannah começaria a amar alguém que a amava de volta e ela fosse perdê-la para sempre.

E talvez aquele não fosse o momento ideal, mas se ela ficasse esperando pelo momento ideal para sempre, talvez nunca conseguisse nada. Por isso, apagou todos os medos da mente e colou os seus lábios nos de Hannah.

Eles tinham gosto de pipoca.

Me beija como se quisesse ser amada…

Não houve resistência alguma. Os lábios de Hannah responderam aos seus com avidez e sofreguidão, e foi ela quem puxou Bia para mais perto quando finalmente se separaram. Há uma certa altura, alguém gritou na televisão, mas nenhuma das duas pareceu ouvir. Estavam ambas muito ocupadas.

— Helena… — Hannah murmurou. Bia sentiu seu coração afundar e se partir, mas não tirou os lábios dos dela. Lá no fundo, soubera o motivo de não ter tido resistência. Ela não quisera acreditar, mas soubera.

E não importava! Mesmo que doesse, não importava. Ela só teria que trabalhar mais um pouco, se esforçar mais um pouco para conseguir fazer Hannah se apaixonar por ela. Bia a amava demais para desistir sem tentar. Derrotaria o fantasma de Helena e ficaria com a garota.

Eu estou me apaixonando por seus olhos... mas eles não me conhecem

(ainda)


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